POESIA COMO REDESCOBERTA DO MUNDO E DE NÓS MESMOS
Conversa entre poetas:
Paulo Rodrigues entrevista Carlos Vinhorth
PR – Poeta Carlos Vinhorth, o Alberto Pucheu disse numa entrevista: “A poesia é a redescoberta do mundo sob nossos olhos”. Você encara a poesia assim também?
CV – Sim! No entanto, vejo além da ótica e perspectiva de Pucheu. [Poesia] é também, senão, a redescoberta de nós mesmos.
PR – Observo que a literatura contemporânea está conectada com o cotidiano. A sua poesia caminha nesse sentido?
CV – A poesia contemporânea tem a alma do cotidiano. Minha poética por vezes descansa às sombras do dia a dia, e vai se moldando entre coisas e acontecimentos que se misturam harmonicamente à minha poesia em tons vibrantes.
PR – Poeta, o Brasil é um país que esquece as memórias com uma rapidez absurda. Como você trabalha a questão da memória na sua produção literária?
CV – Durante o meu processo de criação vou guardando em meu relicário alguns elementos in memoriam, entre tantos, não só as boas e velhas lembranças ; grandes momentos, ínfimos instantes, bem como o aroma de todos eles. Pois, o cheiro também tem memória, alimenta a nossa imaginação.
Para melhor ilustrar esse pensamento, eu cito o poema Certas Memórias, do meu segundo livro (Santuário de Ausências, 2023):
Estou sempre revisitando/ antigos vividos/ presente antepassado/ futuro feito de ontens/ mas tudo se molda/ para reacender na memória/ o seu barril de pólvoras/ cravejado de certas memórias/ desse antes que vivo agora/ que ainda me serve café e o pão /de cada dia.
PR – Carlos, você faz conto, romance, teatro, música e poesia. Como consegue conciliar o trabalho com gêneros literários tão distintos?
CV – Do 1° ao 3°ano do ensino médio, tive a honra de ter como mestres de língua portuguesa e literatura, dois notáveis professores: Pedro de Araújo Filho e Antônio José, que me apresentaram a poesia, não apenas teórica, mas, de forma sentida e vivida. Desde então se deu instantânea e avassaladora a minha paixão pela literatura. Cada vez que eu lia uma escola literária eu me sentia como se fizesse parte dela, foi assim, desde o trovadorismo ao pós-modernismo, tanto em poesia, romance conto e crônica, como se o universo literário tivesse na palma da minha mão, ora queria ser poeta, romancista, contista, cronista, trovador e assim, me debruçava a estudar todos esses gêneros com a mesma intensidade, porém a poesia ainda me tocava mais forte.
Tanto em poesia como em outros gêneros, tive influência da maioria das escolas literárias e seus principais autores e obras: Luís Vais de Camões, Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Lima Barreto e principalmente os autores da segunda e terceira geração do Modernismo brasileiro: Cecilia Meireles Mario Quintana, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector dentre outros, como: Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Rubens Braga e tantos outros. Eis portanto, a minha flexibilidade em conciliar alguns gêneros tão distintos em minha lavra.
PR – Quando vai lançar o romance? Há diferença entre escrever poesia e escrever uma narrativa longa?
CV – Tenho uma produção literária extensa entre (poesia, romance, conto e crônica), que infelizmente não se comparam às publicações que são poucas, devido as dificuldades de publicações solo.
Publiquei meu primeiro livro de poemas, intitulado: Do eu ao outro, um trajeto poético (2016) e o segundo livro, também de poemas que tem como título: Santuário de Ausências (2023). Portanto as publicações seguem um itinerário circunstancial. A priori , devo lançar ainda esse ano o livro de Micro Contos com o título: O mínimo dos contos e em sequência o Romance para (2025).
Diria que a poesia é uma viagem instantânea entre abstrações e labirintos, onde “o subjetivismo é a gloria do poeta”. Enquanto a prosa percorre um itinerário bem mais extenso onde o triunfo maior se transfigura na riqueza explicita dos mais ínfimos detalhes. Eis a diferença.
PR – Quando leio alguns poemas seus, vejo uma sensibilidade acima das águas. Você explora valores humanos quando escreve? Como funciona seu processo criativo?
CV– Numa sociedade individualista como a nossa, os valores humanos são imprescindíveis para romper barreiras e paradigmas.
Em relação ao processo de criação não tenho uma formula concreta para imprimir, em mim acontece de repente “Não mais que de repente”; uma imagem, uma paisagem, um sopro de vida, uma necessidade, como a própria vida a escorrer nas veias. Sim, a minha sensibilidade caminha acima das águas, do mar, dos males, sob a regência de um coração coletivo e olhos fraternos, capazes de ver e sentir a dor do outro e das coisas. Como pontuei no poema Sensibilidade à flor da pedra, do livro Santuário de Ausências:
O poeta sentiu a sensibilidade da pedra/ e chora com ela/ a sua bruta fragilidade.
PR – Como você analisa o cenário da poesia contemporânea maranhense? Quais autores você destacaria para nós?
CV – A poesia contemporânea do Maranhão vive um cenário de grande efervescência, com uma gama de bons escritores e uma vasta produção literária, que já faz por merecer uma atenção maior, não somente do poder público, no tocante as políticas de incentivo a cultua, mas também da sociedade como um todo, no que se refere o reconhecimento cultural dos nossos autores, no sentido de conhecer e valorizar suas produções literárias.
Como destaque de autores maranhenses eu posso citar: Ferreira Gullar, Nauro Machado, Salgado Maranhão, entre outros, cito também com mérito as nossas produções, que merecidamente vêm conquistando espaço no cenário cultural do estado e do pais.
PR – Qual é a sua avaliação da antologia O QUE NÃO CALOU DENTRO DE NÓS?
CV – A antologia chega com a força magma de tantas vozes, que juntas cristalizam-se formando uma grande rocha. nossa bandeira foi hasteada, nosso espaço demarcado no campo cultural do nosso estado e avançando Brasil afora. Nossa voz erguida, nosso grito aceso não há de apagar o que não calou e nem pode calar dentro de nós.
PR – Deixe uma mensagem para os nossos leitores.
CV – Que a nossas vozes
e tantas outras
não se permitam calar
que possam ecoar
universo afora
calando afundo
o preconceito do mundo
humanizando o que se diz humano.
3 POEMAS DE CARLOS VINHORTH
OBRIGAÇÃO DA SEMENTE
como quem vive da terra
sem terra
eu planto sonho com as mãos
sonhos profundos
sem latifúndio
o que enche a barriga de fome
não alimenta o homem
é obrigação da semente
que o fruto cresça
e floresça
sal a sal
sol a sol
nessa lavra
arada
de pedra
e
pó
de crepúsculo
em crepúsculo
a vida segue seu curso
no solo
no colo
das manhãs
a colheita de bom grado
o fruto sagrado
enchem barriga da fome
a gestar esperanças
no chão do homem
sob ferro e concreto
é da natureza humana
nascer das pedras
florescer os desertos
DESCOMUNGADO
quem dera
que o ofício com a palavra
fosse apenas lavra e não lâmina
basta um dedo apontado
para que todos o apontem
o poeta está fadado ao abismo
a comer pedra
a beber vidro
como um cristão descomungado
que despensa hóstia
e engole navalhas
ALÉM DO ABSTRATO
O que tenho eu com as pedras?
senão, a dureza da existência
embrulhada no concreto.
Às vezes me reinvento,
finjo ser outros
para me restar um pouco.
É esse mel pingado da ternura
a conservar-me feito o sal
que adoça as palavras.
A poesia é um vício,
vez por outra
serve um vermute,
acende um cigarro.
Além do abstrato
é preciso romper
o véu da ausência,
resgatar as estrelas caídas,
o boi do matadouro,
a pele do curtume,
“a última Flor do Lácio”.
Por vezes me desinvento.
Enquanto rio,
enquanto pássaro
é impossível domesticar
a minha natureza
(ainda que mude
o curso e a pelagem).
Entre animais domésticos
eu continuo selvagem.
Carlos Vinhort |Santa Inês/MA, 1975|. Poeta, contista, cronista, compositor e romancista brasileiro. Membro da Academia de Letras de Santa Inês (ALSI) e da Academia Vianense dos Esquecidos de Letras, Arte e Ciências (AVELAC). Vencedor de vários concursos, integra a antologia de poetas maranhenses Safra 90 (1996). Recebeu o título de Cidadão Vianense pela Câmara Municipal de Viana no ano de 2005. Foi recebido, em Caxias, como autor homenageado no I Encontro de Poesia Na Pele da Palavra (2016). Como convidado de honra, participou com intervenções poéticas nas comemorações dos 750 anos de Viana do Castelo (Portugal). Possui vários trabalhos inéditos. É o autor de Vida e Morte do Cutia (cordel, 1994), Do eu ao outro – um trajeto poético (2016), Santuário de Ausências (2023).
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Paulo Rodrigues (Caxias, 1978) é professor de literatura, poeta, ensaísta.
O poeta Carlos tem bom e contributivo trabalho na cena literária maranhense brasileira. Parabéns.