Rafael Oliveira
O poeta Nauro Machado continua existindo (para nós) em seus livros, poemas, versos, palavras… E a poesia, sua expressão mais simbólica e mais humana, reflete o seu ser como um ente poético, onde apenas importa “A palavra e um homem/se bastando para/se fazerem mundo” (Funil do Ser, 1995).
Na verdade, Nauro re/existe no próprio sentido poético de desvendar a finitude e a infinitude da vida e do tempo pelas palavras. Para isso assumiu a condição de quem precisa transpor os labirintos da linguagem e, com isso, abstrair as verdades e os valores ontológicos que ressignificam a experiência do homem com o poético: “Ocupo um espaço que não é meu/mas do universo./Espaço do tamanho do meu corpo aqui,/enchendo inúteis quilos de um metro e sententa/e dois centímetros , o humano de quebra.” (Do eternoindeferido, 1997).
Daí a impossibilidade de dissociar o cidadão do poeta, vez que ambos dependem da vertigem e do espanto da poesia para existirem como o/um ser que busca os significados poéticos num mundo estereotipado por angústias, desamparos e incertezas que geram dúvidas existências nesse ser, sejam pelas vertentes existencialistas de Kierkegaard, Sartre e Camus. Por outro lado, essa busca significa também uma prazerosa realização estética das palavras. Por essa razão, Nauro transubstancia-se na expressão mais visceral do verbo: “Marquei meu tempo no poema./Comigo e as minhas palavras/vivi o poema.” (O signo das telas, 1984). Assim a poética naurina pode puxar e repuxar a orelha da crítica (literária) com o intuito de cobrar, por direito, uma promissória vencida, e já inscrita na dívida simbólica dos versos: “Nesta São Luís, príamo de um sapo,/limpando o verbo em sujo guardanapo,/não terei a sorte de um Goncalves Dias” (O Cirurgião de Lázaro, 2010). Por outro lado, a cidade natal significa também um peso de mágoas penduradas na lapela da vida e, por consequência, da poesia: “Para de mim saberem/que vivi mendigo em São Luís desde criança,/leiam as muitas cartas que escrevi/pedindo emprego e sem ter esperança” (O Cirurgião de Lázaro, 2010).
Em Nauro, o poético se converte irremediavelmente em metáforas, metonímia, alterações, antíteses, oxímoros, assonâncias, paradoxos, comparações, enjabements… Por isso seus poemas são verdadeiros monumentos linguísticos, onde as amarras e argamassas de sentidos garantem toda a significação que translitera do Eu-lírico de Nauro: “Quando escrevo, algo se apercebe que há um mundo por curar em mim:/uma dor enferma e subterrânea/desde o início que fez do orgasmo e das cicatrizes da linguagem.” (O Calcanhar do Humano, 1981). Por isso, Amadeu Amaral tem razão em dizer que as ideias são apuradas “admiravelmente na maravilhosa retorta da forma”. E Nauro, nesse sentido, é mestre em apurá-las em versos livres ou não, tornando-se, desse modo, um poeta fecundo, criativo e original para a nossa literatura. Essa originalidade transparece nos próprios títulos de seus livros que, de um modo ou de outro, impactam pela inter-relação simbiótica dos signos entre si, como nestes que, ao mesmo tempo, instigam e intrigam pelo jogo imprevisível do fonético e do semântico: Campo sem base (1958), Zoologia da alma (1966), Os órgãos apocalípticos (1976), A antibiótica nomenclatura do inferno (1977), Masmorra didática (1979), O anafilático desespero da esperança (1987), Funil do ser (1995), Pão maligno com miolo de rosas (2005), Percurso de sombras (2013), O baldio som de Deus (2015)… Esta estranheza estabelece relações micro e macro com toda a obra desse maranhense, transpondo-o para a esfera superior da literatura como um poeta que abstrai o mistério e o encanto da(s) palavra(s) para conjugar densidade estética e simbólica em sua tessitura poética.
Por essa razão, Nauro escreve (compõe?), versos com uma perfeita cadência sonora (melopoeia), inspiração imagética (fanopeia) e consciência reflexiva (logopeia). Por ser consciente operário da poiesis, Nauro dispõe signos no(s) verso(s) com a mesma ambição do ourives que imagina a melhor forma para uma joia rara. Por isso Nauro se entrega ao exaustivo exercício imaginativo no laboratório da linguagem. Daí ser fácil perceber o efeito encantatório e fascinativo do poético naurino, como nestes versos escritos com extrema maestria: “Prefiro a fala de um verbo que é mudo/como uma tela sem nenhuma tinta,/para que a ideia,/a estar comigo em tudo/pinte uma forma que somente sinta” (O Cirurgião de Lázaro, 2010).
Nauro transita com brilhantismo também pela desafiadora seara do ensaio e da crônica, sempre com o olhar preso às intermitências da realidade e suas circunstâncias, conforme Ortega y Gasset. Como ensaísta, escreveu interessante ensaio sobre quatro escritores reconhecidos na literatura maranhense: Bandeira Tribuzzi, José Nascimento Moraes, José Chagas e Erasmos Dias. Na obra Esfera Lineares (1996, 2009, reedição), conseguiu garimpar na bateia da própria sensibilidade o ouro que cada um deles dispersou entre as sutilezas da linguagem lírica e prosaica. Em Província – o pó dos pôsteros (2012), Nauro deixou impresso em várias cônicas suas ávidas e agudas observações do mundo ludovicense, sem, contudo, perder o foco na literatura, onde a produção literária é trazida à tona por meio de reflexões impares, justas e, portanto, fundamentais para a historiografia literária. Por isso, Província – o pó dos pôsteros, como Esfera lineares, torna-se referência para se compreender o momento histórico-humano-social-literário que emblematiza o espaço-tempo desta São Luís que tão bem serviu de inspiração à intelectualidade e à criatividade de Nauro Machado.
No livro Impressões Sobre Nauro Machado, Halley S/A-Gráfica e Editora, 2018, 626 p, a escritora Arlete Nogueira da Cruz compilou 264 textos de 131 autores que, por prismas diferentes, reconhecem a grandeza desse poeta que se dedicou à arte de escrever poemas… Aliás, por isso, Nauro impulsionou a inteligensia crítica de muitos leitores, tanto daqui quanto alhures. Basta citar, por exemplo, as palavras de Ricardo Leão para se constatar a genialidade desse poeta que fez morada existencial na poesia: “A obra naureana situa-se entre aquelas obras de apelo universal, atemporal, que indagam a brevidade da existência, a consciência, a angústia, a morte, a vida, o sexo, a religião, a existência ou não da divindade, e, como não poderia deixar de sê-lo, as equívocas e lamentáveis incoerências humanas.” (p.399).
Enfim, uma das mais interessantes definições para Nauro talvez esteja implícita em Octavio Paz :”A palavra do poeta se confunde com ele próprio”. Sem dúvida, Nauro Machado se confunde com a própria poesia. Ou será o contrário?
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