Claudio Daniel*
Em A moça da limpeza, de Lindevania Martins, o conto que dá título ao seu livro homônimo de ficção, publicado em 2021 pela editora Primata, é narrado em terceira pessoa e ambientado na cidade de São Luís, no Maranhão. A dimensão temporal é contemporânea, embora não haja referência a datas, e há poucos personagens, quase todos mulheres. O ambiente urbano é povoado por carros, elevadores, bolsas de grife, computadores, mas sobretudo pela ansiedade apressada de profissionais que se dirigem a seus postos de trabalho. Clarice Gomes, advogada, é um desses apressados trabalhadores, chegando atrasada ao fórum, onde representa um casal de classe média.
Toda a ação do conto acontecerá nesse local, que representa uma esfera de poder em que até hoje quase todos os seus integrantes são homens brancos de classe alta. Ao entrar no tribunal, com exatos quinze minutos de atraso, dirige-se ao juiz para desculpar-se, mas, para a sua surpresa e incompreensão, quem ela vê sentada no alto da tribuna é uma jovem que ela já vira em diversas ocasiões no prédio, realizando tarefas de faxina. Agora, misteriosamente, a moça da limpeza está sentada no lugar do juiz, numa ruptura e inversão da hierarquia social. Vestida com o uniforme azul-escuro, luvas amarelas, o rosto cheio de cravos e espinhas, a moça, cujo nome Clarice ignorava, pede a ela que continue com a sua justificativa pelo atraso.
Quinze terríveis minutos de atraso. Surpresa, ela permanece calada, lembrando-se da última vez que viu a moça sem nome: ajoelhada no banheiro, limpando o vaso sanitário. Agora, ela conduzia a sessão judicial e indaga a Clarice se é possível uma conciliação entre as partes após a leitura da petição inicial, realizada na ausência da advogada.
Clarice permanece muda, não apenas pela subversão da hierarquia, mais gritante ainda por se tratar de um espaço conhecido pelo conservadorismo, como é o judiciário, como também por observar que todos no tribunal comportavam-se como se nada de anormal estivesse ocorrendo. Como se o ritual da tribuna ocorresse agora da maneira habitual. Indagada novamente pela moça da limpeza, agora em tom mais rude e incisivo, Clarice responde: sim, é possível uma conciliação. O final da narrativa, claro, é totalmente inesperado e revela a habilidade e maestria da autora, que vem se destacando como uma das boas surpresas da literatura brasileira contemporânea.
*Claudio Daniel é poeta, romancista e professor de literatura. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Atualmente, é editor da revista eletrônica de poesia e artes Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção.
Conheco a escrita da Lindevania Martins, e tive a honra de receber dela alguns de seus livros. Estivemos juntos em plaquete da colecao da Editora Sangre,de Belo Horizonte. Realmente se trata de uma autora contemporanea das mais instigantes, e q merece leitura atenciosa.