Antonio Aílton**
O que convida à leitura de um bom livro literário é a sua atmosfera, dada por um tom, é o seu teor, que se entrega à degustação, lenta ou ligeira. E no sentido do tom ou do “sabor de leitura”, este Cartas ao neto, de Daniel Blume é dos mais fluidos e saborosos livros de poemas de que tenho conhecimento, nestes anos de muita escrita boa, mas também de abundante literatura insípida.
Um livro leve e, por que não dizer, divertido, pois esse é um efeito da sua intenção também, ser uma sátira ao estilo da antiga tradição da ironia, do escárnio e do sarcasmo, e cujos traços mergulham inclusive na máxima “ridendo castigat mores” – a qual expressa justamente a crítica moral aos (maus) costumes dos grupos e tipos sociais, recorrendo-se ao riso. Além disso, Cartas ao neto não deixa de se inserir no espírito das literaturas que floresceram em toda parte pelo barroquismo crítico, de cunho pícaro, façanheiro e caricaturesco, da América Latina, e do qual o Brasil é mestre.
Blume evoca, portanto, neste seu novo trabalho, uma estrada longa que vem desde Luciano de Samósata, passando pelos romanos, os contos picarescos e bufões medievais, o universo das farsas (em geral, em versos) de Gil Vicente, a sátira social do Thomas Morus de Utopia e Cartas da torre, Molière e Voltaire, dentro outros; e, nas terras tupiniquins, nada menos que os poemas satíricos e burlescos de Gregório de Matos, o Arthur Azevedo do teatro de revista e dos contos, e o humor gráfico de Aluísio Azevedo, que, além de romancista, foi painelista anticlerical, antimonarquista, e desenhou a política como uma prostituta. A lista perpassa ainda por Ariano Suassuna e por muitos dos nossos dramaturgos, como o Dias Gomes de O Bem-Amado. Quer dizer, é todo um universo confluente dessa veia, não restrita à poesia. Nesta, porém, lembramos ainda como um forte representante da atualidade a sátira porno-homo-política de Glauco Mattoso. Agora, Blume também radicaliza aspectos já presentes em obras suas como Penal (2015), Resposta ao terno (2018) e Delações (2020), e nos faz entrar no jogo do motejo e da arte burlesca da artimanha maquiavélica.
Ao contrário do que muitos podem pensar, esse não é um viés fácil. Exige perspicácia, percepção de sutilezas e práticas humanas, capacidade literária para operar com as formas da ironia e do litote (abrandamento de um pensamento pela expressão do seu contrário – discursivo, neste livro) e, no caso da crítica social, uma experiência com as questões que envolvem os meandros da sociedade, as relações e as consecuções do poder.
Não à toa, Blume recorre, em sua sátira, justamente a Maquiavel, como expressa o subtítulo do seu livro: versos maquiavélicos. O autor de “O Principe” é invocado no livro em duas diretrizes do seu discurso. A primeira, aquela da relação entre o ser e o parecer, conforme é expressamente colocado na epígrafe do livro: “todos veem o que parece; poucos percebem o que é” (frase que, como epígrafe, se torna também um alerta ambíguo em relação ao próprio livro, que não pode ser considerado apenas pelas colocações aparentes de um velho maganão). E a segunda diretriz é aquela mesma abstraída nas leituras regulares do imortal Maquiavel, de que os fins a serem alcançados justificam qualquer astúcia. Daí, validando as astúcias para ganhar a “guerra”, altos estrategistas são também convocados, das armas, da política, do intelecto ou das palavras: Sun-Tsu, Bismarck, Churchill, Nietzsche, Balzac, Rui Barbosa… E que guerra é essa? Só há uma: a guerra pelo poder e seu jogo, em todas as instâncias, das grandes ações às mais comezinhas. E as relações são postas como um jogo de baralho num theatro mundi, de apostas na hipocrisia, nas maranhas, cartadas e blefes.
Neste sentido é muito pertinente, logo no poema que encabeça o livro, Cartadas ao neto, a presença do personagem avô, um político experiente nas velhacarias, que precisa doutrinar o neto, “jovem deputado federal” com seus conselhos pragmáticos – presença aquela que é, na verdade, uma voz criada pelo poeta.
Podemos recolher trechos dessa doutrinação cínica, inescrupulosa, cuja forma talvez só coubesse mesmo no regime da sátira: “— Meu amado neto/ jamais esqueça./ Nossas gravatas/ significam seriedade de propósitos./ Use-as/ especialmente/ ao mentir”… Ou: “Esteja disposto/ a abrir mão/ do que acredita/ por aquilo/ que pretende”… É longo o rosário desfiado nessa “cartada”, das lições desse avô que, do leito de um hospital, deixa essa sórdida herança ao neto, corrosiva, corruptora do espírito, numa visão das pessoas como títeres ou como objetos a serem utilizados: “Não se afina viola/ no grito. / Use dinheiro se necessário”.
Depois desse poema de base epistolar, “escrito a mão trêmula” pelo avô, do leito de hospital, a sombra dessa visão se estende sobre os demais poemas, agora a meio tom entre a voz do avô e a voz do eu poético, em conversa direta com o leitor. Aqui, Blume reassume aquela forma concisa e incisiva dos livros anteriores, porém dentro de uma feição ironicamente pragmática perspectivada pelo contexto, como neste inteligente poema Capital, que relativiza as ideologias em prol da negociação satisfatória no tempo: “— Nem tanto ao Marx, / nem tanto à Terra/ reconhece a Era”, bem como no poema Ao rei, manifestamente uma síntese do livro e confluência de vozes (do poeta, do avô, de Maquiavel), fora outros tantos poemas também fortes e elegíveis. Na sequência, encontramos uma saborosa galeria de tipos, na qual reconhecemos tantas figuras emblemáticas da sociedade, e, quiçá, a nós mesmos.
Cartas ao neto – versos maquiavélicos é, sem dúvida, um livro diferente para estes tempos, mostrando a reatualização possível de gêneros como o satírico e o burlesco para a poesia contemporânea, marcando a singularidade, a inventividade e a plena autonomia do poeta Daniel Blume. Claro, uma obra neste sentido, em tempos do politicamente correto, pode ser um risco. A própria ambiguidade que tanto o litote quanto a ironia deixam vazar já são riscos, na medida em que podem não ser entendidas como tais. Mas reconheçamos que não estamos aqui diante de um blefe, estamos diante de uma poesia de verdade, a única que nos autentica. Com este livro, Daniel nos convoca ao sério e ao lúdico, e assegura mais uma vez a cabeceira da poesia, mostrando, com segurança e vivacidade, o domínio da Mesa.
* Prefácio do livro Cartas ao neto – versos maquiavélicos.
*Daniel Blume é brasileiro de São Luís do Maranhão, nascido em 27.10.1977. Escritor traduzido para o espanhol, o francês e o italiano. Membro do PEN Clube do Brasil e da Academia Internacional de Cultura. Titular da Cadeira n. 15 da Academia Maranhense de Letras. Titular da Cadeira n. 15 da Academia Ludovicense de Letras. Autor dos livros de poemas Inicial, Penal, Resposta ao Terno, Delações e, agora, Cartas ao Neto: versos maquiavélicos.
[Locais de venda do livro: Amazon e Livrarias. No Maranhão, estará na livraria Leitura e na AMEI, no São Luís Shopping]
**Antonio Aílton é poeta e crítico literário.
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