A Claridade da Gente
ou um café com os mortos
Isaac Souza*
Num texto publicado no site Sacada Literária (sacadaliteraria.com.br), Antonio Aílton comenta o livro A Claridade da Gente, de Paulo Rodrigues, sob o signo da luz. Ao lado de O espaço da claridade, de Sandro Fortes, o livro é lido como “rejeição de sombras, que deixa(m) entrever a poeira e o cisco pairando na atmosfera, sob a luz que se projeta sem alarde, porém firme, até o alcance de uma amplitude que se coloca para nos fazer ver: claridade”.
Certamente, essa é uma leitura possível. No entanto, ao ler o livro de Paulo Rodrigues, tive sensação contrária. Longe de rejeitar as sombras, o poeta as acolhe em sua poética; e longe de seguir fios de luz para encontrar plenitudes de visão, poema a poema, ele penetra mais fundo nas trevas da existência, em sua crueldade, precariedade, feiura e tristeza. É um livro que exuma corpos, que abre covas (algumas nomeadas, outras anônimas) e que se lança para dentro da escuridão onde se escondem os assassinos.
Claridade da Gente é um livro dos mortos. Nele, Paulo Rodrigues parece reagir à exortação do filósofo judeu alemão Walter Benjamin: “é preciso convidar os mortos para o banquete da história”. Os mortos, neste caso, são os excluídos, os derrotados, os escravizados, os perseguidos, os explorados. Os judeus vítimas do genocídio nazista, os palestinos vítimas do genocídio israelense. Os Yanomamis vítimas do garimpo, os favelados vítimas do estado burguês higienista. Os trabalhadores sem terra assassinados por PMs ou jagunços, vítimas do latifúndio. Todos os violentados da história são acolhidos na significação de personagens como Dorothy Stang, Filó, Matilde, Gonçalo, Pedro e Luciana — e em ecos de poemas como Reforma Agrária, que narra um assassinato, e Batalha Camponesa, que repete: “não limpem o corpo morto”.
Não se trata de um livro de denúncia — nenhuma justiça é esperada, nenhuma salvação é prometida, nenhuma esperança é ventilada. A esperança é objeto de um orçamento — sabemos bem que é cara demais para o pobre comprar — e sua imagem é a de crianças que não brincam e corpos que caem como mariposas sem asas. Aliás, nenhuma imagem poderia ser mais tenebrosa do que esta: o animal que vive atraído pela luz alijado do seu direito natural de voar. O humano, nessa coleção de poemas, é a todo momento ameaçado pela incessante e sempre incompleta violência colonial.
A estrutura do livro parece respirar: parte da amplidão da questão agrária, passa por pequenas experiências urbanas e familiares até se afunilar na intimidade da memória, do diário e da solidão da noite interminável, para em seguida se expandir de novo inflando com ironia a bandeira da revolução (a “consciência de classe”, é “para as paredes” que ele discursa). Nesses três níveis, ou cenários, é sempre a mesma violência que se manifesta. Desde os cães que comem o velho no campo, ao corpo de Rafaela consumido pelo sexo fácil em lugar público, ao poeta cuja tragédia a mãe já previra — tudo parte de um mesmo sistema, da mesma máquina de moer gente que força o poeta a dizer “não tenho um cambo de alegria a oferecer”.
Sim, eu vejo em A Claridade da Gente, um mergulho nas trevas da história, como se Paulo Rodrigues buscasse os mortos de que fala Benjamin, um a um, para o banquete da história. Mas, como esse banquete não está servido, o poeta lhes oferece um (amargo) café.
*Isaac Souza, poeta, compositor, membro da Academia Caxiense de Letras.
Ainda não li o livro do poeta escritor, letrologo e filósofo Paulo Rodrigues. Mas a crônica feita em relação a obra: “A Claridade da Gente” é existencialista e de uma profunda sensibilidade com a problemática que vive a humanidade, principalmente o povo brasileiro neste mundo capitalismo neoliberal de acumulação de riquezas, onde a pobreza cresce de maneira automática e expoleada pela sociedade produtora de bens de consumo. Onde as classes sociais trabalhadoras são sobreviventes e alienadas de uma forma padronizada. Os menos afortunados vive na efervescência da morte e fome nos campos de batalhas sem terra e sem perspectiva de vida digna em nome de uma falsa dignidade política social democrática. Parabéns pela abordagem crítica e franca do texto sobre esta belíssima obra poética do Paulo Rodrigues.
Isaac Souza é um ensaísta de uma discursividade profunda. O texto ficou muito instigante. Eu gostei.
Isaac Souza conhece bem a literatura brasileira contemporânea. Fiquei feliz com a leitura que ele fez do meu livro A Claridade da Gente.