Natalino Salgado Filho*
Como medir um poeta? Por quais instrumentos e artes se avalia a obra poética de um homem, visto que ela vem de mundos infinitos, todos guardados dentro desta carne-receptáculo precário – que se consome a cada dia?
Sugiro que se meça pela eternidade. Por um quantificador de sentidos ontogênicos, aqueles que nos explicam razões transcendentes. Que inventem aparelhos de luz com carcaça de antimatéria para explicar as coisas que um poeta vê, ouve e escreve. Pois como explicar meu alumbramento e identificação quando leio:
“Vivo como um homem morre: / em solidão e na esperança / guardando a fé que socorre em mim, semivelho, a criança.”
Nauro Machado, a semivelha criança, materializou esta maravilha. E com ela, como um Elias alimentado pelos corvos, é possível caminhar dias. Não se quer perder a forma incorpórea, o humano em nós. O poeta tem o dom de dizer o indizível em nos- sa boca, mas que quando vemos sabemos que é nosso e nós. Toda nossa luta e anseio parece ser em manter esta perene vontade e expectativa, pois em nossos corações, diz o Eclesiastes, Deus colocou a eternidade.
As ruas de São Luís estão marcadas por seu caminhar reto, inteiro a despeito de muitos anos que carregava em suas retinas fatigadas como o diria Drummond.
O chapéu, o guarda-chuva pendurado no antebraço como a desafiar o sol tropical, a chu- va agora escassa. O corpo aparentava fragilidade porque os cabelos brancos e finos e a barba veneranda diziam isso, mas os movimentos eram elegantes e não se pode ver fragilidade em cavalgar nuvens. Nauro se foi? Como é possível se nos deixou impreg nados de sua poesia? Matizados por sua poética?
Nauro era um explicador de gente. Ele era sua própria experiência humana e radical. Quando percebe que “Onde estamos não nos cabe, onde estamos não com- porta” ajuda-nos a desconfiar que nossa existência é para além das comezinhas coisas voláteis, às vezes, para nossa tristeza, que a elas nos apegamos como cracas ao caso do navio. Acha uma solução desde seus fraticidas embates
consigo mesmo e nos alivia com a explicação: “O desejo para fora / a romper-se desde o dentro! / Ah, sairmos do nosso centro/para sempre e desde agora!”
Nauro era altaneiro e ao mesmo tempo próximo. Elevado e ao alcance. Impor tante e simples. O homem de produção literária sofisticada, capaz de arregimentar fis em todas as idades e formações culturais, era protagonista de episódios que demons- traram que a imortalidade também se traveste de mortal.
Lembro que quando fui à sua residência para comunicar a decisão Conselho Universitário da Universidade Federal do Maranhão em distingui-lo como Título de Doutor Honoris Causa, tive que vencer certa resistência demonstrada pelo poeta. Para demové-lo, contei com o apoio de Arlete. Preocupado, ele contrapôs que só dispunha de um terno simples, comprado para a comemoração do centenário de Odylo Costa, filho. Ao que sua doce companheira, retrucou: “Não te preocupes, vou comprar um terno à altura da homenagem que tu vais receber.” Promessa cumprida: no dia da solenidade, eis que o poeta surge trajando um bem cortado terno escuro acompanhado de uma gravata vermelha com detalhes em cinza.
Como é obscuro o futuro: embora tivesse elogiado a elegância de Nauro naquela noite singela, não atentei para todos os detalhes de sua vestimenta, coisa que só vim a fazê-lo quando, emocionado, fui me despedir do poeta na Academia Maranhense de Letras, onde o corpo estava sendo velado. Ali, ao contemplá-lo, vi que o mesmo traje que o acompanhara àquela solenidade que lhe trouxe tanto alegria, também o vestiu para sua última viagem.
Sem nunca ter aceito pertencer ao quadro da Academia Maranhense de Letras, ali estava rodeado de sua família, intelectuais, amigos em geral, Nauro partiu sob a declamação de poesias, vivas e aplausos na Casa de Antônio Lobo, entremeados de histórias diversas contadas pelos amigos e admiradores. O poeta e escritor José Maria Nascimento aproveitou para confessar que entre ele e Nauro havia num pacto: aquele que
partisse primeiro voltaria para contar como são as coisas lá de cima. José Maria disse que cumpriria sua promessa, pois tinha certeza que partiria primeiro. Ao que Nauro retrucou: “não, José Maria. Sou mais velho. Voltarei logo.” José Maria lamentou ter se cumprido o vaticínio do amigo poeta.
Outra história interessante foi contada por duas jovens que disseram sempre encontrá-lo numa padaria no Renascença onde ele, solícito, conversava sobre poesia amada Arlete o aguardava. Assim era Nauro. Gerador de inusitados versos, mas sabia com elas para logo mais adiante, pedir licença para levar o pão para casa, onde sua se disfarçar de comum. Ele não partiu: eternizou-se entre nós, para nós. Vida longa para a memória de Nauro Machado!
*Natalino Salgado é Professor-Doutor, escritor e membro das ANM e da AML.
**Texto publicado no Suplemento Cultural & Literário Guesa Errante / JP: 6 de 12 de 2015
E em Impressões sobre Nauro Machado
Organização Arlete Nogueira da Cruz Machado. Editora Halley S.A. – Gráfica e Editora, 2018, pp. 570 – 571
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