Poema de Antonio Aílton, escrito em 2005 e publicado no livro Os dias perambulados & outros tOrtos girassóis, de 2008 (Concurso Cidade do Recife – Prêmio Eugênio Coimbra Junior, Prefeitura Municipal do Recife)
Rua do Giz, São Luís – MA
IMAGINE SE PONGE VEM BEBER NA PRAIA GRANDE
[Poema em prosa para São Luís*]
Nunca andamos de camelo, e certamente também você não conhece os desertos de Nabak ou Chatira. Mas quem já galgou o áspero animal, arremedo de jangada e escada de Jacó ao mesmo tempo, não estranharia a mesma sensação no subir e no descer do pescoço destas ruas.
O deslocamento ondulado para cima e para baixo instaura, ao olhar, um ponto de fuga: invoca sugestões da memória, entranhadas desde antanho entre a penugem aérea do mar e o couro enrugado de suas águas. No intermezzo entre o (digamos) observador e a modorra plúmbea alastrada na distante cinza do oceano, escamam-se placas côncavo-retangulares cobrindo o dorso de um bicho antigo, cujos nódulos se revelam a uma visão mais próxima como solares modorrentos e rústicos sobradões. Cambiam-se neles o eterno movimento de Auroborus, nas auroras que lhes são enrodilhadas desde o sol, e que aí fingem finar-se dia após dia, toda vez que exsudam em sua plástica uma espécie de ouro velho, sangrando, tarde a tarde – para recomeçarem no dia seguinte, assustados que lhe tenham crescido musgos de 400 anos!
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Vamos que você venha de muitas sedes e, qual seu indócil ruminante, fareje de longe um salitre humoso, cambiando a qualquer coisa de lavagens e estuários primordiais. Descendo direto das corcovas e becos para beber nas toscas fontes de salmoura, nos urinóis corroídos, nas bodegas e bares pés-sujos à sua frente, saiba isto: que essa descensão, melhor dizendo, essa corrupção da “Scala Dei”, corresponde, simbólica e proporcionalmente, à mesma distância do dorso às narinas fumegantes de um dinossauro-dragão. A descida é íngreme, o território é sagrado, fique esperto. Baratas e rola-bostas hão de compartilhar aí, com você, o existir fóssil dos escombros: você na Praia Grande.
Sob o silêncio furta-cor, que, sabe-se, foi entregue desde sempre ao emplastro dos cocôs de milhares de pombos e andorinhas, esconde-se todo o frêmito larval de uma fauna bizarra – a qual se torna tanto mais perceptível quanto mais se adentra, nódulo a nódulo, o vento surpreendente e estonteante. Ó mundo de fatuidades, atinges aí tua perfeição! Para ali afluem e ali se encontram as mais variadas espécies e formúnculas: de bichos de crista a bichos de estopa; de áscaro-lumbricóides a pavôneo-ciliares. Podemos dividi-los a bel-prazer, como se faz com a horda estouvada de um hospício gigante ou com um ajuntamento de babuínos. Abaixo, uma possível formulação desta fauna.
- Por grau de importância e por sua cada vez mais escassez: quase às cinco, as careadas e velhas opulências a que chamam “moradas” cospem de suas entranhas taciturnas ou frívolas, mas sempre desgastadas senhoras que, de tão afeitas a antigos móveis, tetos, baús, frejós, jacarandás e decadentes escadarias, lembram o branco da pele e o macilento cheiro de cupim. Até então, elas estavam ocupadíssimas com seus armários, botijas, consoles, cristaleiras, bisautés e biscuits que preenchem diariamente sua infindável tarefa de Arquivo e Memória. Seguindo um ritual já fossilizado em sua caduquice, fazem certa higiene com água morna e talco tabu, lustram seus cabelos com resinas vegetais e óleo de amêndoa, expurgam sua osteoporose com óleo de baleia e, então, nessa umidade fabricada, vão espanar nas varandas o fogo-fátuo dos maridos que não voltam mais.
(Abra-se um parêntese para contemplar as que nem mais se aventuram a descer, e que apenas fazem arrastar seu corpo-naftalina para as sacadas e janelas. No alto, são escoradas por vigas e travessas para não desboroarem de vez da natureza e da atmosfera saudosa de seu tempo. Exaustas, logo se decepcionam e cedem ao apelo de suas escolioses e de seus rins: lá vem a dor – seria o sono?)
- O cerrar das pálpebras (ou quase) dessas dignas senhoras dá lugar à epifania de suas rivais de outrora – faustinas e cortesãs provincianas –, hoje já não tão, digamos, abundantes nem fornidas, mas partícipes das mesmas condições pouco meritórias daquelas ilustres supra. Até por isso, o mesmo universo que as condena também redime e irmana. O tempo lhes foi inclemente. Contudo, sentadas às portas de suas luzernas, de paredes rebocadas com seu carmim vulgar, e tão reluzentes de obesidade quais ogivas, elas expõem orgulhosas ao burburinho do primeiro anoitecer sua extensa fatura de serviços prestados.
- Você poderia dizer que aqui as coisas referentes ao tempo se distendem, caem num espetáculo de redundância das quatro para as cinco horas, e acumulam-se na luz dos beirais, por não quererem avançar. Não é mera impressão. Mas é também este o momento em que, outrossim, e levando-se em conta as referidas notações de relógios hesitantes, uma concentração infindável de funcionários públicos – assessores, auxiliares, arraia-miúda, adidos, anexados, agregados, adjuntos, perfilhados, subalternos, apadrinhados e prosélitos – começam a autoliberarem-se e esquivarem-se de suas funções ou de seus chefes imediatos, os quais, para evitarem retrancas e complôs, vão fazendo vista grossa e aderindo pouco a pouco aos vícios da massa. É assim que, como uma lúbrica turba, descem para a cachacinha nas lourdes e nas tulhas. Ali, eles põem e depõem governos, gabam-se de sua influência e de seu irrisório poder, inflam-se, pavoneiam, chispam, aliciam, cospem, proseiam, passam a mão nos fundilhos uns dos outros. E quando não se adjutoram nessa empresa azeitada e corrupta, depravada desde sempre, somem no ar, desaparecem: ausentam-se para terceiras e quartas dimensões, ficando este mundo entregue ao bel-prazer de seus irmãos menores, os ratos e as baratas, que sobem para um inferno de papéis e fichas empilhados no arquivo-morto do último entardecer.
- Ao rumor de badaladas em alguma velha igreja, lâminas do dia finalmente deixam-se amortecer sob uma prostração baça e mortiça, a gravidade dos sobradões e dos edifícios. Isso passa a sensação das coisas que os homens não sabem perder, a tradição e a eternidade. As lâminas-bisturis tomam forma de cutelos vítreos anil-alaranjados, estendidos de par em par, cada um deles azulejando uma lembrança. No mais tardar, chegou a noite.
Essa passagem, entretanto, não haveria de dar-se de maneira tão abrupta. Postes de lampiões a gás que sobreviveram em forma de verniz e simulacro acendem, como que por uma ordem, sua fantasmagoria de lâmpadas pálidas e introspectivas. É como se, iluminando, morressem, forçando, contudo, em agonia, o vago lume de seu permanecer. Num quadro ou noutro, esbatem na superfície dos paralelepípedos sua condição de decaídos.
Mas não se engane. Se em algum momento esse espaço se manteve como um inconsciente austero, sagrado, ideal à metafísica e à ponte entre o minério e os homens, também esta sensação logo se perturbará imperceptivelmente. Beba de um gole seu crepúsculo, encha o pote. Num abrir e fechar de olhos, acorrerá para essas parcas ruas uma precipitação massiva e recrudescente dos mais diversos e imprevistos seres, movidos pelo sentimento lúbrico da contemplação e do extravasamento. São corpos! Olhados de longe, essa leva de passantes, sócios boas-praças, cadeiras-cativas, sabichões, intelectuais, pés-no-saco, doidivanas, malucos, pés-inchados, porras-loucas, cínicos, turistas, prostitutinhas, frangotas, boçais, neo-hippies, narigudos, farsantes, apastelados e mambembes mais parecem uma trempe de caricaturas, humanoides e estrovengas tirados da insanidade bélica de George Lucas. Sabe-se porém que, no fundo, obedecem a impulso – como o seu – muito anterior à sua própria corporificação afetada e excedente: atiçados pelo instinto e pelo vigor, pelas instâncias da fecundidade, do gozo e da fatalidade erótica, eles querem dar continuidade a esta pulsão febril e grandiosa chamada Vida.
Não se espante de que toda esta celeuma se constitua em terreno propício para as fabulosas garras do capital.
Aí, ele estende seus tentáculos para cima e para baixo, bifurca-se, aproveita-se tanto da sensibilidade quanto da desgraça, e é isso que dá a certeza de que tudo que lhe pareceu “alheio” é igual em qualquer parte do mundo: agências de turismo, butiques, lojinhas de artesanato, souvenires e burundangas que se multiplicam como praga, e cujos objetos lá estão mais como Conceito, afastando-se por pausteurização, dia após dia, da própria realidade que é preciso cada vez mais macaquear, e que é preciso fazer existir ao menos como Venda. E há, então, o fosso, a mais profunda revelação dessa tira em preto e branco, os pedintes, dezenas deles, pequenos, médios, grandes: centenas, dezenas de milhares! Chegam de supetão: seriam anjos? Demoninhos? Mortos-vivos esmolambados? Escravos do passado reencarnados na pele de vendedores de ovos de codorna, amendoim e lambugens? São perebas.
E lá vêm mais hippies… Você não havia ainda se dado conta de quanto são numerosos! Aparentados remotos das matas ciliares e dos musgos, fazem parte de um enraizamento que vai tomando conta das calçadas, provocando rachaduras, invadindo intimidades. Ali crescem e dali se alimentam acarinos e anopluros, fungos, lagartixas, sapos e aranhas, centopeias, chatos, lacraus, carunchos e todos os pequenos bichinhos, ainda, que vivem de sujeira e resto. Não se pode condená-los: são telúricos! E aos cabelos, cachos, línguas, saias, narinas, umbigos, dobras e genitálias desses homens e mulheres de boa vontade vão se agregando, de onde passam, mapas, trecos, conchinhas, fósseis, couro de cobra, dentes de tubarões e jacarés, cordões, resinas, penduricalhos e mulungus, fora uma infinidade de sementinhas diversas e variadas – daí nasceram seus artesãos, do que fazer e de como embrulhar com essa infinidade de nadas e carrapichos que se lhes agarram na tosca penugem. Tragédia žebracza! Na desculpa de viverem do sol, da chuva e da erva, à revelia do sistema e do capital, são, na verdade, herdeiros da mais antiga arte da ciganagem e da insaciabilidade. É preciso entender o paradoxo do que nos cerca. Esse mundo vegetativo que se manifesta como “hippie” é ao mesmo tempo o legado e a nota promissória daquilo que entendem por liberdade. À “paz” e ao “amor” também é preciso pagar. Contudo, aqui, mais que em qualquer outro lugar, vigora a inquestionável verdade de que o todo é sempre mais que a soma das partes. Esta é a metafísica do abraço, e se alguém busca uma fonte para beber e inebriar-se, deixar-se contaminar de tão grande irmandade nos parece inevitável.
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Devem ser 20h, pois é justamente nesse instante que certo senhor, com um zelo de guardião de masmorra, fecha as últimas grades que dão acesso à composição labiríntica, estomacal, chamada Casa das Tulhas. Daí em diante, o portão oriental da Casa terá a força de um esfíncter: ninguém mais entra. E lá estará o mesmo senhor, controlando, no escorrer das tripas, a saída dos gases de jabiraca e cerveja azeda, dos vendedores de farinha d’água e camarão seco, dos açougueiros, feirantes e fregueses diversos, e um sem-fim de cachaceiros, ambulantes, alcoólatras de carteirinha, mocinhas, descoladas, caça-níqueis, bagaceiras, pequenos produtores, politiquinhos, compositores alternativos e poetas viciados.Tal processo de defecção do gigante leva, nos bons dias, cerca de duas horas, quando, então, toda a configuração externa já teve também sua oportunidade de MUDAR.
Há, agora, um sistema estruturado de línguas preparado especialmente para convencer, um esforço de significação para coisas tais como “chique”, “alternativo”, “típico”, “regional”. É certo que há também já um sutil entusiasmo no ar, um mundo mais solto e maduro, uma necessidade de liberdade e de se acreditar piamente nisso, nessa vontade de blues, “metals” e marleys, e de se esconder entre uma picuinha e outra, na mais recôndita província da alma, qualquer esforço de manifestação da palavra “chinfrim”. Aqui também, de bar em bar, de pop em pop, de mesa em mesa, é preciso aprender a diferença entre termos como “numerário” e “mixaria”. Em meio, pois, a toda essa garçoneria de taças, pedidos e linguagens, perdem-se todos falando e rindo, rindo e falando, falando e rindo para não morrer.
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Que alquimista começou a encerrar a geometria das pedras e dos símbolos matemáticos, círculos, triângulos, quadrados e lemniscatas o hermetismo da escuridão edo assombro, mesmo da morte e da existência eterna? Cada projeção aberta, debruçada como um olho octagenário a partir do vão frontal dos mirantes que você percebe – ou, antes, que do alto o veem – guardam espectros recalcitrantes,os quais, impossibilitados de partirem desta para melhor, comunicam-se apenas como vagos, desenhos, escombros, escuridão e suspeita. Há muitos: um, dois, uma família inteira que, sem ter volume, se fazem abertura, e de lá observam o festim. Sopesam, dividem os viventes por sorteio e adoção. Riem: “Quantos anos ainda terá aquele beberrão? E aquele gringo? Vou esperá-lo…” É um jogo em que irão medir forças de agora em diante. Pouco a pouco, você vai se dando conta do tempo. Propagam-se mais e mais os surtos do passado. Aqui passavam bondes no século XIX, ali… em qual vértice, em qual rua? O que sabem e o que viram essas escadarias que não são suas? Você sente saudades, você mata uma barata oval a seus pés. Ao derredor, retângulos dormem.
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Desenho representativo de São Luís do Maranhão – Mazé Leite; fonte: artemazeh.blogspot.com
Rua Portugal e Rua do Giz, São Luis, MA – fonte: perdididoporai.com
Esse universo adquiriu, com os anos, as estratégias da burla. Mumifica-se, mas deixa acesas as suas tochas. Ao sopé das paredes, os guardiões, soldados-trastes que amanhã (hoje?) estarão a postos para o cambalear de um novo dia. Você se encontra num largo cemitério, não um qualquer, mas um daqueles medievais, repletos de heras, de gárgulas e de górgonas. Você também já empedrou. Tal pensamento seria fascinante, não fora, por acaso, esbarrar em dois ou três jovens que, sentados à sua frente, comem dois ou três cachorros-quentes noite adentro. Logo mais, uma avenida sem rumor de ônibus. Um taxista esperto aguarda os remanescentes. Você já perdeu, há muito, a ideia do camelo, e vem apenas arrastando a imaginação pelo cabresto. Além do deserto, o mar é telos.
Desenho representativo da beira-mar de São Luís do Maranhão – Mazé Leite; fonte: artemazeh.blogspot.com
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Antonio Aílton. Os dias perambulados & outros tOrtos Girassóis. Prefeitura do Recife. Prêmio Cidade do Recife, Prêmio Eugênio Coimbra Júnior – POESIA [2006], 2008.
* Este poema-mélange/poema em prosa, também foi publicado na seleção do livro Cerzir – livro dos 50, em 2019.
Não tem como não aplaudir tão belo poema. O profundo raio X feito pelo autor poeta escritor, professor Dr. Antônio Aílton. Ele descreve e narra com maestria a vida cotidiana da cidade histórica, patrimônio cultural e material da humanidade. O seu centro histórico de raríssimas belezas é mazela, na mais ampla certeza e propriedade de vivência do seu povo que ali habita no seu dia! Seja como Barnabé do Estado ou do Município, com seus visitantes, turistas e ou estudantes em busca de informações, diversão, compras de souvenirs, artesanato e outras coisas. Encerro deixando aqui o meu agradecimento ao autor que teve este ímpeto em observar toda essa gama mulfacetada cultural da Ilha Rebelde com muito interesse, cuidado, exatidão em um poema prosaico de muita veracidade. A minha grata satisfação em lê-lo e entendê-lo.
Fico grato pelo seu precioso comentário, Francisco. É um poema que conversa com o estilo descritivo pongeano, sem a objetividade daquele, mas trazendo um retrato desse mundo que é núcleo do Centro Histórico de São Luís, a Praia Grande (ou, mais recentemente, Reviver). A um modo que é também inseparável do meu trabalho, uso dessa visão dos cenários comuns, “pés-sujos”, como chamam, realistas, diuturnos e comuns a quem a frequenta, saindo daquele imaginário sublimizado dos sobradões, sem descartar sua importância.
É isso meu amigo, teria muito a falar, mas acho que a leitura é mais importante para um mergulho nesse mundo. Valeu!
Excelente poema em prosa do poeta Antônio Aílton que vira São Luís pelo avesso, revolve as suas entranhas e retira delas não apenas palmeiras e sabiás, mas também o lado obscuro e sombrio que tudo que é humano tem que ter. E nada mais humano que uma cidade.
Grato pelo teu olhar e tua fala, Fontenele. Você é participe desse lugar provocativo do humano.