Viriato Gaspar*
Entre encanto e espanto, entre engasgo e alumbramento, defronto-me com este testamento poético do meu imenso irmão e mestre Nauro Machado. Aqui sobejam luzes, cintilações, lampejos – em graus supernos – daquela escavação ontológica que o “opus” nauriano, desde “Campo sem Base”, de 1957, delimitou e instaurou, na Poiésis da nossa terra.
Nauro é, seguramente, o maior poeta maranhense desde Antônio Gonçalves Dias. A densidade, a envergadura e a amplidão vocabulares, a par da extrema angústia de existir e a busca exasperada de um sentido para a lab(r)uta humana, colocam-no num patamar de excelência somente alcançada por Poetas de excelsa magnitude. Sem que haja maiores pontos de contato entre as duas poéticas, a não ser a pujança e a dor de existir e resistir no humano, percebo o maranhense Nauro Machado e o paraibano Augusto dos Anjos como duas vozes próximas, embora bastante distantes entre si pelo tempo, características próprias e timbres inconfundíveis, como duas solitárias vozes de mais elevado ressoo na Poesia brasileira dessa dor universal e inexplicável da aventura humana, da busca pelo sentido maior do nosso estar-aqui.
Pela capacidade de colocar nas palavras uma tal voltagem, uma amperagem vocabular crispada e paroxística que chega a doer ao reverberar na alma de quem os lê, entre esmagos, engasgos, soluços e soçobros, dilaceamentos e flagelações.
Nauro, neste Iceberg gigantesco que põe a navegar pelos nossos olhos quase apagados pelos falsos brilhos deste tempo de imposturas relinchantes, nos conduz pelos sextetos deste poema único, indiviso, denso e pesado, quase claustrofóbico, versos que parecem vomitados do mais imo e mais fundo de um self torturado pela busca quase irrespondível do que salvar de seu naufrágio humano, existencial, poético e visceral.
Não fosse o autor de outros 42 livros de poemas, este Iceberg que Nauro põe a navegar na Praia Grande de sua amada/odiada São Luís, seria o suficiente para colocá-lo como um marco, um farol, um ponto de excelência, altíssimo e altíssono, na prateleira mais alta da Poesia do Maranhão.
Este testamento poético, nessa altitude e voltagem pinaculares, só podem deixar-nos, ao final da leitura, perplexos e maravilhados, angustiados e deslumbrados por esses versos perfurantes e agônicos, crispados e convulsos, quase como bofetadas sonoras em nossa epiderme rasa, anestesiada por simulacros e por selfies que nada mais refletem ou influenciam senão obesos vazios sem tutano.
Viva a literatura maranhense, capaz de ostentar gigantes como este imenso Poeta e seu gigantesco, hercúleo, irretocável Iceberg vocabular. Ninguém passará rasamente acomodado e meão ao ser tocado pela magia agônica deste petardo de um Poeta absurdamente maior.

Nauro Machado (São Luís, 02 de agosto de 1935 – São Luís, 28 de novembro de 2015). Seu primeiro livro foi Campo sem Base (1958), e o último, que permanecia inédito, publicado postumamente por sua esposa Arlete Nogueira da Cruz, é Um Iceberg para a Praia Grande (2025), em comemoração aos seus 90 anos.
Um Iceberg para a Praia Grande será lançado no dia 14/08/2025 às 19 horas no Convento das Mercês/Fundação da Memória Republicana, São Luís – Maranhão, em evento comemorativo.
*
Viriato Gaspar é poeta maranhense radicado em Brasília, autor de Manhã Portátil (1984) e Fragmuitos de Mim (2024), entre outros livros.
O que Viriato nos oferece em O Poeta no Cimo do Iceberg é mais que uma leitura: é um mergulho vertical na ossatura da poética de Nauro Machado, sem medo de enfrentar as águas gélidas e profundas que sustentam a ponta visível. Ao nomear Nauro como herdeiro maior da estirpe que vem de Gonçalves Dias, e ao colocá-lo em ressonância com Augusto dos Anjos, ele não se limita a fazer um elogio comparativo: constrói um mapa de intensidade, onde o território é delimitado pela dor e pela busca de sentido, e o relevo é marcado pela densidade vocabular e pela pulsação de um existir que não se deixa domesticar.
A lucidez do comentário reside na capacidade de articular, em um mesmo gesto, a dimensão histórica e a experiência sensível. Viriato não descreve apenas um “testamento poético”; ele inscreve esse Iceberg na cartografia da literatura maranhense e brasileira como um ponto fixo, um farol que se opõe aos “falsos brilhos” e “imposturas relinchantes” do presente. Ao fazê-lo, mostra que a grande poesia, quando nasce de uma escavação ontológica profunda, não se deixa consumir pela espuma das modas: resiste, cortante e indócil, ao tempo e à distração.
Há, também, um mérito raro: o de ler Nauro pela matéria de que ele é feito, não só os temas ou a biografia, mas a energia elétrica das palavras, “a amperagem vocabular crispada e paroxística” que provoca dor física e espiritual no leitor atento. É uma leitura que não se intimida diante do peso ou da claustrofobia do poema, mas que sabe ver, nesse mesmo peso, a prova da grandeza.
Por isso, o texto de Viriato não é apenas uma homenagem; é um ato de preservação de memória e de consciência crítica. Coloca Nauro, e por extensão a própria poesia, em um lugar de exigência ética e estética, lembrando-nos que quem se aproxima de um iceberg desses não pode permanecer “acomodado e meão”, mas precisa sair tocado, transformado e, talvez, um pouco ferido.