Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Poeta Paulo Rodrigues - foto: divulgação

PAULO RODRIGUES entrevistado por ANTONIO AÍLTON

 

ANTONIO AÍLTON ENTREVISTA

O POETA

PAULO RODRIGUES

  

Paulo Rodrigues (Caxias, 1978) é graduado em Letras e Filosofia. Acadêmico de Direito. Especialista em Língua Portuguesa.Professor de língua materna e literatura da rede estadual de ensino. Foi secretário de educação de Santa Inês e gerente regional de educação do Vale do Pindaré.

É poeta, prosador, ensaísta e jornalista.

É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).

Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório.

Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia.

Conquistou o prêmio Marcus Vinicius Quiroga de Poesia da UBE/RJ em 2024, com o livro Moinhos

É membro efetivo da academia Caxiense de Letras e da Academia Poética Brasileira

 

 

Paulo Rodrigues e seu filho Paulo Neto: sublime poesia

 

 

  1. Antonio Aílton – Paulo Rodrigues, o franco-caribenho Édouard Glissant disse, em um ensaio, que a poesia “é um grito poético cuja função é reunir a morada, o lugar e a natureza da comunidade”. Fale um pouco de como você vê essa relação entre lírica e comunidade/sociedade na poesia feita hoje no Brasil, e a importância disso para a tua própria? 

Paulo Rodrigues – Aílton, meu poeta querido, o questionamento é instigante. Édouard Glissant, que foi um importante escritor e intelectual caribenho, observou muito bem a relação da escrita literária e a vida do povo. Ele baseou seus estudos em vários momentos em Marx e na Psicanálise. Eu tenho uma formação marxista. Estou convicto que a única leitura científica do modo de produção capitalista é a construída pelo o autor de O Capital. O mundo está organizado para explorar o trabalhador, que vende sua força de trabalho para sobreviver e, nesse processo, o capitalista se apropria da mais-valia, gerando o lucro e por outro lado gera a destruição do planeta. O capitalismo é concentração, destruição e crise. Para termos uma ideia, o último relatório da Oxfam aponta que 63% da riqueza do Brasil está nas mãos de 1% da população.  O Brasil é a 10ª economia do mundo e temos nove milhões de pessoas passando fome. As contradições do capital não podem nos cegar. Esses dados me atravessam como uma espada de Samurai.

Por que fiz esse introito? Porque preciso reafirmar que a minha produção literária não pode fechar a retina para a realidade material concreta. Busco construir literatura de alta qualidade, no entanto não esqueço o ensinamento de Louis Althusser: “a literatura não se limita a refletir o mundo exterior, mas sim a mostrar criticamente como nós, como seres sociais, vivemos a realidade”.

Ferreira Gullar foi considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX. Poema Sujo e Dentro da Noite Veloz são livros com poemas críticos, engajados (no sentido mais amplo do termo). A Rosa do Povo do Carlos Drummond de Andrade, que é certamente o grande livro de poesia das nossas letras faz uma leitura sociológica da humanidade. Miró de Muribeca abordou desigualdade, violência e melancolia em seus textos para levantar um corpo-poesia de muita potência.

Então, a minha experiência com a linguagem toca o chão das minhas geografias.

Concluo com uns versos do Gullar: “Meu povo e meu poema crescem juntos/ como cresce no fruto/ a árvore nova”.

 

  1. Antonio Aílton – Por que insistir na poesia, após tantos anúncios do seu fracasso ante o mundo de demandas e tecnologias que atualmente se coloca, o que ela pode dizer a este mundo que outra linguagem não pode dizer? 

Paulo Rodrigues – É preciso insistir com a poesia, porque eu só existo através dela. Fui salvo pelas imagens de Castro Alves, Fernando Pessoa, Ana Luiza Amaral, Nuno Júdice, Frederico Garcia Lorca, Ferreira Gullar, Fernando Abreu, Adélia Prado, Rainer Maria Rilke, Lila Maia, Antonio Aílton e outros tantos.

Eu venho de uma geografia dramática. Vinte dos meus amigos de infância foram assassinados. Cortaram o pescoço do meu melhor amigo da escola, numa calçada no Rio de Janeiro. Um professor de Língua Portuguesa chamado Pedro Filho apresentou para nós os encantos e as lições do texto literário. Agarrei-me ao simbólico para não naufragar.

O Octavio Paz afirmava: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras”. A nossa existência depende quase que exclusivamente das palavras.

A poesia pode comunicar silêncios, encantamentos, liberdade, profundidades humanas como nenhuma outra área do saber humano vai falar. 

 

  1. Antonio Aílton – Poeta, você é de Caxias, Maranhão, uma cidade com forte tradição e identidade poética, terra de Gonçalves Dias, de Salgado Maranhão, de Wybson Carvalho. Mais recentemente também tivemos dali o “fenomênico” Carvalho Júnior, levado pela Covid. Como foi que a poesia te tocou, ou te agarrou, qual a tua conexão poética com o impulso desse espaço?
Capa de O Abrigo de Orfeu

Paulo Rodrigues – A poesia me salvou. Não é apenas uma metáfora. Meu pai morreu quando eu fiz dez anos de idade. Ficamos numa situação sociológica delicada: minha mãe, minhas irmãs e eu. Comemos o pão que o diabo amassou. Eu tive a sorte de encontrar a literatura na quinta série, na antiga Escola Estadual Inês Galvão. Comecei a ler com a certeza que o único caminho possível era aquele.

Lembro do susto enorme que tomei ao ler o Barco Bêbado do Arthur Rimbaud. Os versos ficavam gritando dentro de mim por vários dias: “Toda lua é cruel e todo sol, engano”.

Caxias é para mim uma referência. Gonçalves Dias, Coelho Neto, Salgado Maranhão, Wybson Carvalho, Renato Meneses e o saudoso Carvalho Junior me ensinaram sobre a minha aldeia tanto quanto Alberto Caeiro: “Por isso a minha aldeia é tão grande/ como outra terra qualquer/ Porque eu sou do tamanho do que vejo/ E não do tamanho da minha altura”.

Sou membro efetivo da Academia Caxiense de Letras, Casa de Coelho Neto. Os autores que estão lá têm relevantes serviços prestados à cultura maranhense. A minha poesia abriga as dores e as tragédias da Travessa do Tamarineiro.

 

  1. Antonio Aílton – T. S. Eliot dizia no ensaio Tradição e Talento individual que “nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu significado completo sozinho”. Você tem construído um trabalho riquíssimo, com projetos em união, parceria e afetividade com a turma do Vale do Pindaré. Fale um pouco sobre o que isso representa para você, e sobre quem é essa turma? 

Paulo Rodrigues – T. S. Eliot tem razão. Sozinho até o café fica amargo. O João Cabral de Melo Neto complementa o axioma: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos”.

Eu, Luiza Cantanhêde, Evilásio Júnior, Carlos Vinhorth, Anna Liz e Luís Henrique fundamos o coletivo Vozes do Vale. Nossa intenção é ampliar a formação do leitor proficiente usando o texto literário contemporâneo. Levamos o livro, o autor, atividades literárias para escolas públicas e universidades do Vale do Pindaré.

No dia 30 de maio, por exemplo, nós estaremos na UEMA – Campus Santa Inês. Vamos trabalhar uma mesa de debate com o tema: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA NA UNIVERSIDADE.

Em 2024, publicamos uma antologia cujo título é: O QUE NÃO CALOU DENTRO DE NÓS. E lançaremos outra antologia em 2025, porque entraram mais cinco autores para compor o referido coletivo: Maura Luza, Altemar Lima, Ezequias Silva, Rilnete Melo e Marcelo Henrique.

Acredito que a leitura é fundamental para salvar o filho do trabalhador e da trabalhadora. Como colocava Paulo Freire: “A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito”.

Capa de Escombros de Ninguém – Paulo Rodrigues
  1. Antonio Aílton – O que você tem lido, Paulo, e que de alguma forma te tocou, e talvez te tenha trazido um novo olhar sobre o mundo, sobre tua obra, e que agradaria compartilhar com a gente?

Paulo Rodrigues – Eu li recentemente a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Fiquei muito comovido, muito influenciado, pois tudo amplia nossa sensibilidade. Devo confessar, poeta, que eu gosto bastante de reler. Por exemplo, reli a obra completa do Graciliano Ramos. Ele nos ensina a escrita concisa, objetiva, que busca a máxima expressão com um punhado de palavras.

Devorei Marxismo e Filosofia da Linguagem do Mikhail Bakhtin. Acredito que todo escritor deve aprofundar as leituras em filosofia da linguagem.

Jorge Luís Borges, o autor mais premiado da Argentina, é meu companheiro diário. Leio como se estivesse bebendo água.

Por fim, estou encantado com o livro ALFINETES da Luiza Cantanhêde. É uma poesia cheia de inundações, refúgios e acolhimentos.

 

  1. Antonio Aílton – Há um projeto, na tua produção poética, de estabelecer uma relação marcada entre a estética, a ética e a política, especialmente em obras como Uma interpretação para São Gregório, e nos três livros que você chamou de “A trilogia do humano” (Cinelândia, A claridade da gente e Cordilheira)? Quais tem sido tuas buscas e o que representa essa poesia?
Capa de Uma interpretação para São Gregório – Paulo Rodrigues

Paulo Rodrigues – Não é obra do acaso mesmo. Foi um projeto pensado e trabalhado realmente. O diálogo estética, ética e política atravessa a minha poesia. Preciso esclarecer que não o faço de forma panfletária. Eu quero produzir alta literatura, mas tenho consciência que não posso perseguir apenas ritmo e imagens.

Na montagem sociológica do capital, corpos e linguagem são adestrados. A poesia não pode concordar, portanto ela deve se apropriar da revolução, da subversão, do grito.

Como afirmou o Isaac Souza no posfácio: “Cordilheira parece ser o terceiro ato desta epopeia dos oprimidos”. E é mesmo!

Na verdade, encerrei esse projeto estético com livro Cordilheira, lançado pela editora Patuá no final de 2024.

Moinhos, meu livro novo de poemas, que venceu o Prêmio Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro em 2024, inaugura um novo trabalho estético. Tenho certeza que os leitores vão perceber.

Eu busco algo que o Zé Ramalho explica na canção AVÔHAI: “Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar”.   

 

  1. Antonio Aílton – Não é segredo para ninguém que você tem arrebatado prêmios importantes, nacionais e internacionais. Fale-nos desses prêmios e sobre a própria importância deles para a obra de um autor. 

Paulo Rodrigues – Venci alguns concursos importantes. Por exemplo, tive a sorte de ganhar o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. Logo depois, conquistei o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. E em 2024, ganhei o prêmio Marcus Vinicius Quiroga de Poesia da UBE/RJ, com o livro Moinhos (que é inédito). A cerimônia de premiação vai acontecer na Academia Brasileira de Letras no dia 26 de maio do ano em curso.

Eles ajudam a divulgar a obra do autor. Não podemos negar.

Eu não escrevo pensando em concurso. Escrevo para provocar a sangria no açude das minhas dores. 

 

  1. Antonio Aílton – Como você vê a atual poesia brasileira e maranhense, em termos de significação, experiência criativa e representatividade. 

Paulo Rodrigues – Há um discurso diluído e esvaziado em boa parte da lírica coetânea. Por outro lado, há a ampliação da micrologia do cotidiano que é fertilizante para a literatura.

Eu sou um leitor atento da poesia contemporânea brasileira. Li recentemente N.D.A do Arnaldo Antunes e achei maravilhoso, surpreendente. Alice Ruiz faz uma poesia minimalista de muita qualidade. A Conceição Evaristo trabalha identidade e memória com maestria. Mel Duarte com o livro Negro Nua Crua joga luz nas desigualdades do nosso país. Ela é uma das organizadoras do Slam das Minas, iniciativa fantástica que inclui as pessoas através da poesia.

A poesia contemporânea produzida no Maranhão é riquíssima. Vou citar alguns: Salgado Maranhão, Antonio Aílton, Lila Maia, Fernando Abreu, Bioque Mesito, Neurivan Sousa, Laura Amélia Damous, Samuel Marinho, Eduardo Júlio, Luiza Cantanhêde (são poetas indispensáveis na cena atual).

Capa de A Claridade da Gente – Paulo Rodrigues
  1. Antonio Aílton – Você, como um importante mediador entre poesia e educação, tem desenvolvido um trabalho, diríamos, revolucionário na região de Santa Inês. Como você concebe o papel do poeta na educação e como esse trabalho tem transformado vidas nessa região. 

Paulo Rodrigues – Em todas as sociedades há poetas. Na Grécia Antiga a poesia era uma experiência de aprendizagem, portanto o poeta educava o povo. Albert Camus no ensaio O ARTISTA E SEU TEMPO deixou claro: “O poeta nunca deixa de criar perigosamente”. É um ser capaz de arrancar a humanidade da caverna de Platão.

A poesia é uma ferramenta pedagógica. Ela ensina sobre as subjetividades do homem melhor que a ciência. Pode ampliar a compreensão do mundo.

Eu desenvolvi o projeto Balaio Literário que levou a literatura contemporânea do nosso estado para escola pública em 12 municípios do Vale do Pindaré. Foi uma experiência plurissignificativa sobretudo para os estudantes.

Em Alto Alegre do Pindaré, os meninos e as meninas estão encenando seus poemas autorais. É um espetáculo.

O Darcy Ribeiro tinha razão: “a escola pública é a maior invenção do mundo, pois permite que os homens sejam herdeiros das bases do patrimônio mundial mais importante que é a cultura”.  

 

  1. É possível engajar (mais) leitores na amplitude da poesia? Deixe um recado para eles. 

Paulo Rodrigues – Sim, Aílton. A escola e a universidade são fundamentais para esse engajamento. Os educadores precisam incluir no currículo o trabalho com a poesia clássica e a poesia contemporânea. O texto poético é promotor de muitas aprendizagens. Eu uso as metáforas (em sala de aula) para promover a liberdade do pensamento, a problematização sobre a fragilidade humana. O resultado é sempre muita comoção.  Eu quero dizer aos jovens, aos leitores, aos professores, que leiam os grandes poetas. Eles ajudam a compreender as tragédias e a finitude do homem. O filósofo Aristóteles afirmava: “Não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade”.  O autor da Arte Poética nos coloca que o poeta é um criador de universos que “faz do nada como Deus”, portanto devemos ampliar nossas vertigens através da poesia.

 

 

Capa do livro Cordilheira – Paulo Rodrigues

 

  POEMAS

 

 

DO LIVRO CINELÂNDIA (EDITORA FOLHEANDO, 2021):

 

 

NINGUÉM DISFARÇA O AZULEJO QUEBRADO

  

Alex Cabeça de Gato

bebeu pingos de chuva

nas calçadas do Rio de Janeiro.

 

Perdeu o cobertor,

mudou de endereço.

 

Olha para o céu

 de papelão em punho.

 

A água ainda corre

e afunda

o piso que baixou.

  

 

O CORAÇÃO NÃO PODE CEGAR

  

É só um desenho

esquecido na gaveta

da escrivaninha, tem poeira,

restos de lápis de cor,

um contrato de locação

e um livro de Octávio Paz

cochilando sobre ele.

 

É só um desenho;

os limites foram sacrificados

pela inflação,

balança comercial,

dólar

(a tesoura fez só o pelo sinal).

 

Não carrega a placa

do Profeta Gentileza.

 

É só um desenho:

 

não é um colírio,

a Fortaleza de San Carlos de La Cabaña,

o Memorial da Balaiada,

tão pouco a Praia dos Carneiros,

em Pernambuco.

 

É só um desenho.

(só isso).

 

 

MARIA DA PENHA OU ISABELLE ADJANIR

 

Quando eu disser não,

é não.

 

Não acelere o carro,

não mande flores,

não desenhe coração

nas paredes.

 

Não é não.

Não insista, não provoque Sísifo,

com subidas intermináveis.

 

O amor não quer aeróbica.

Deita no chão

e se esfrega.

 

Quando eu disser não

é não.

 

O motel secou,

as unhas têm freios,

a carroça atravessa o boi.

 

Se insistir

acabou o sereno, é verão.

 

levo uma faca,

na cintura.

 

 

ROLIÚDE

 

Sentava-se na esquina,

de costas pra rua.

 

A mesma camisa,

a mesma calça,

os mesmos sapatos.

 

Era um homem

invisível.

 

Catava feijão.

 

Nunca ouviu falar

em mais-valia.

 

Sonhou com um barranco,

na Serra Pelada.

 

Curou-se da doença.

 

Não do feijão.

 

  

DO LIVRO A CLARIDADE DA GENTE (EDITORA PENALUX, 2023):

 

O poeta Paulo Rodrigues em lançamento de A claridade da Gente

 

BATALHA CAMPONESA

  

não limpem o corpo do morto.

 

a gaiola com duas talas

(quebradas).

 

deixem lá!

 

as unhas arrancadas

com golpes de foice;

fiapos de sangue

no mar.

 

deixem lá!

 

os espinhos

que juntaram os dois

pedaços de braços

como se fosse paixão.

 

deixem lá!

 

não limpem o corpo do morto…

no

 

chão

 

 

O LATIFÚNDIO TEM O PALETÓ SUJO DE SANGUE

  

o jornal noticia

que se passaram vinte e cinco anos

da chacina dos trabalhadores rurais

em Eldorado dos Carajás.

 

uma foto com as covas

em fila

mostrou-me o medo

em preto e branco.

 

homens olhavam de lado

nunca em direção aos caixões.

os meninos juntavam raízes

como se adivinhassem

o aumento da conta.

 

não sei se Dorothy Stang

estava lá.

 

se ela chorou.

 

se Valentim Serra

falou de amor e outras quinquilharias.

 

Jane Julia sofreu emboscada,

mas não entregou a foice

 

nem a revolução.

 

 

A ENÉSIMA EUCARISTIA

 

no dia do

nascimento

de Jesus

Matilde foi

encurralada

por um influencer

da Cracolândia.

 

 rasgou a roupa,

limpou o sangue

e enfrentou as ruas do centro

com o bico dos seios

apontando outra

esquina

 

e pintou a boca

de catchup

sem trocar sexo

por pão.

 

Deus não é o mesmo

(em todo lugar).

 

  

DO LIVRO CORDILHEIRA (EDITORA PATUÁ, 2024):

 

 

EL CIELO DE NICANOR

  

Chove muito nesta manhã

em Santiago, no Chile.

 

Cruzo os braços na janela;

os telhados respiram profundamente

e param por um segundo.

 

Como eu queria

ajoelhar-me outra vez

diante de La Chascona.

 

Ler poemas de guerra,

ajoelhar-me naqueles azulejos

azuis.

 

Deitar-me de abraços abertos,

olhando para as nuvens

sob aquele céu sem nuvens.

 

Rir como uma criança.

 

Chorar quando o livro se fecha.

 

 

A GUERRA CIVIL ESPANHOLA

 

A ditadura sumiu com Frederico García Lorca;

enterrou o corpo, o sinal na boca, as sobrancelhas,

os gestos, as mãos, os pés.

 

Ele estava vestido?

Carregava uma bandeira com a palavra liberdade?

Olhava para cima como se fizesse o último verso

para o carrasco?

Tinha uma rosa colada no paletó?

 

Franco não deixou rastro nem pista.

O amante espera pelo poeta

em Huerta de San Vicente

sentado sobre os seis poemas galegos

desde agosto de 1936.

 

Aos domingos, chora e bebe vinho;

na semana é sério, hetero, treina boxe.

 

Os turistas não querem a assinatura,

anunciando o fim da guerra.

Fazem fotos na Plaza de Santa Ana

e comoram a didática da vida,

nos bares.

 

Eu só consigo pensar

no tamanho do buraco para um milhão de mortos.

 

 

UMA CARTA DE CIGANA NO ALFORJE DE MEU AVÔ

  

O pai de meu pai 

amarrou pedras e geleiras 

nos olhos sujos de mar.

 

Não reduziu o pantanal nas lágrimas,

ainda bêbado de desertos

não secou o desejo de vingança

como se fosse um navio negreiro.

 

Varre os abismos da manhã

com os cabelos da boneca

de sua penúltima neta,

que reclama por um passeio na cidade.

 

O pai de meu pai

não sabe das diferenças entre os povos

da América do Sul,

tentou escrever a apalavra Sudão

no reboco novo da cozinha e não conseguiu.

Chorou feito criança

quando Putin espalhou

as pedras da Terceira Guerra Mundial.

 

Encostou no ombro de Tereza

e removeu um camelo 

que estava estacionado entre os dois.

O pai de meu pai

sentiu vontade de abraçar

todos os vinte seis filhos,

de beijar os pés do Clemente,

que se enforcou no paiol do arroz

numa Sexta-feira Santa

e ele não foi ao velório.

 

Sentiu vontade de arrancar

os ossos de Maria Joana

e limpá-los

como se extraísse cristais

de uma terra seca e bárbara.

 

O pai de meu pai

se detém olhando para as mãos:

são cordilheiras derretendo.

 

 

 

*

 

 

Antonio Aílton, entrevistador, é poeta,  professor, pesquisador, autor de MARTELO & FLOR: forma e experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2028).