A ESTRANHA MANIA DAS ABELHAS
[Rute Ferreira]
Para Ismênias, Olgas e Adelaides.
Amália apanhou o último caco da boneca quebrada do chão e verificou onde ele se encaixava naquele rosto delicado e pálido de porcelana. Estava furiosa e deixou o fragmento cair no pequeno porta-joias, como os outros pedacinhos.
Agora, tudo que queria era esquecer aquilo, e sofria ao recordar suas últimas palavras. Foram tão pesadas, e ela agora se sentia tão hostil. E o pior: a mãe não havia feito ou dito nada que justificasse um comportamento tão agressivo da parte dela desta vez.
— Dona Maria Quaresma! — gritou da rua uma voz anasalada, que Amália reconheceu como a do vendedor de mel, leite e farinha. Foi até a penteadeira, viu os olhos vermelhos no espelho e achou difícil entender que eram seus olhos, tão inchados como estavam. A voz tornou a chamar o nome da mãe de Amália.
— Já vai!
Quando abriu a porta, a cara fechada do vendedor se abriu num largo sorriso. Amália o fitou em silêncio.
— Eu trouxe o mel que dona Maria Quaresma encomendou — começou ele, tirando de um samburá o produto que Amália conhecia bem. Adoçavam com ele quase tudo, e, em outros tempos, ela havia desejado o mel puro. Aquilo tinha sido há muito tempo.
— Tudo bem — respondeu ela, a voz fraca e baixa para que ele não notasse que sofria. Não queria virar assunto, sobretudo entre vendedores, cujas mulheres à noite adorariam saber que ela, Amália Quaresma, estava lutando contra alguma coisa, justamente ela, cuja vida sempre fora tão plácida, exceto por um momento.
— Também trouxe leite, farinha e camarão. Com a Semana Santa chegando é capaz dela querer, hein? Um pargo com molho de camarão, o que a senhora acha? Eu não tenho o peixe, mas posso conseguir se dona Quaresma quiser. E o camarão é dela, já sabe que dou até desconto.
— Acho que não, o camarão dessa vez não.
— Mas, dona Amália, imagine, semana que vem esse camarão vai custar o dobro, talvez o triplo do que eu estou vendendo agora. Não posso deixar dona Quaresma sem camarão.
Amália pareceu pensar um momento, mas não voltou atrás.
— Eu vou ficar só com o mel.
— Só o mel? Mas dona Am…
— Só o mel, sim. E por favor, não venha mais aqui.
O homem arregalou os olhos de susto, balbuciando desculpas.
— Não — interrompeu Amália —, não venha mais, porque vamos viajar. Vamos nos mudar um tempo, pro sítio no interior. Não vai ter quem o receba aqui. Pegue.
Ele recebeu o dinheiro, agradeceu e foi embora, não sem antes perguntar quando elas pretendiam voltar.
— Não sei ainda — Amália respondeu, fechando a porta.
De volta à penumbra da casa (pois tudo estava fechado, portas e cortinas cerradas), Amália olhou a boneca quebrada sobre o sofá, enfeitando o sono de dona Maria Quaresma. Paciente, ela levantou o cobertor, preocupada com o surto de gripe que podia chegar à sua casa, e sentou-se perto da mãe.
A garrafa de mel brilhava como um ponto luminoso na mesinha de canto, e Amália a segurou. O rótulo era artesanal, como todo o resto. Sabia de onde vinha o mel, era uma fazenda perto de casa, e se não fosse tão preguiçosa, talvez comprasse a garrafa por um preço menor, direto com o produtor, pensou. Lembrou de dois anos antes, quando ela e a mãe foram visitar a fazenda, que, além de mel, também tinha queijo e um pequeno açude.
— Não dá pra acreditar que elas façam algo tão doce — disse dona Quaresma.
— Elas quem? — Amália perguntou, distraída.
— As abelhas… — respondeu a boa senhora e, ao se deparar com o olhar de incompreensão da filha, completou: — Afinal, elas têm ferrão.
— Nem todas.
— Bom, mesmo assim. Sempre que penso numa abelha, lembro de dor. Parece que sinto a picada bem aqui no braço, como daquela vez que você era pequena.
— Elas ferroaram seu pescoço.
— Mesmo assim, Amália. Abelhas me fazem pensar em dor, é isso que quero dizer. Sinto como se a dor e esse insetinho fossem assim, ligados pra sempre. Como se fosse a mania delas isso de fazer doer.
E, agora, sentada naquela luz que entrava pelas frestas e iluminava a cabeça branca de sua mãe, Amália sentia mesmo que abelhas doíam, que essa era uma parte daquela estranha mania das abelhas, mesmo aquelas sem ferrão. Abriu a garrafa de mel e colocou um pouco no dedo indicador para provar. A doçura a fez fechar os olhos, e ela aproveitou o momento com prazer. Dor e doçura, pensava agora, lembrando do que dona Quaresma havia dito: não dava mesmo pra acreditar que elas faziam algo tão doce.
Amália desejou como nunca que a mãe estivesse viva. Deus, como ela tinha trabalho! Custava-lhe tanto deixar a mãe daquele jeito, apresentável para as visitas, ou para ela mesma. Custava-lhe ter aprendido tanto sobre conservação de cadáveres, e ter estudado aquilo tudo sobre os egípcios, mas nada disso custava mais do que a separação definitiva de ambas. Porque agora, Amália sabia, estariam para sempre separadas.
Com a separação da alma ela já lidava há mais de um ano, quando a mãe morrera de um ataque fulminante do coração, mas agora teria de lidar com a separação do corpo da mãe e isso lhe doía mais. Porém aquilo já estava ficando insustentável, e pesando muito para ela, mesmo que, sendo solteira e sem nenhuma esperança ou desejo de se casar, ela tivesse à frente muito tempo para cuidar do corpo morto de sua mãe na sala. De modo que era essa a situação: Amália Quaresma, trinta e nove anos, estava cansada de cuidar do cadáver de sua mãe, como vinha fazendo há um ano, desde a morte daquela, e agora se sentia culpada por ter de lhe preparar os ritos fúnebres adequados.
E, naquela manhã, quando viu que os dedos da mãe se estragavam, não importando quão bem ela cuidasse deles, Amália ficou furiosa e atirou na parede a boneca de porcelana que fazia companhia à dona Maria Quarema, quebrando-a em uma centena de pedacinhos, que mais tarde ela tentaria colar. Mas desistiu, dando-se conta da inutilidade da tarefa, do excesso de cuidado, dos olhares dos vizinhos. E entendeu que precisava separar-se da mãe, definitivamente.
Naquela noite, e nas duas seguintes, mal conseguiu dormir, decidindo o que faria, com quem falaria, detalhes de velório com os quais ela não queria lidar. Todos poderiam embalsamar seus próprios mortos, assim ela estaria sossegada agora, pensava. Uma pena que a técnica, tão boa, não virava moda por aqui.
Foi precisamente na Sexta-Feira Santa que Amália decidiu. Pegou o caco da boneca, que deixara na caixinha de joias, a garrafa de mel e um pouco de dinheiro que guardavam numa lata de leite. Abriu as persianas e janelas, desligou todas as lâmpadas, destrancou todas as gavetas. E tendo feito isso, pegou de novo na mão de sua mãe, que dias antes a deixara em fúria, e a beijou, sentindo a morte encostar em seus lábios e repelir seu toque. Ajeitou os cabelos ralos da mãe e saiu porta afora, pensando naquela estranha mania das abelhas de fazer doer, em sua mãe e de si mesma, e desapareceu, como se ela mesma vivendo sua própria Paixão, como ele, como o filho de Deus.
*

RUTE FERREIRA é maranhense, de São Luís. É autora dos livros Terra Batida, Bordado em Ponto Corrente, A Urdidura da Matéria, A Estranha Mania das Abelhas e Eu te Serviria Meu Coração com Vinho Branco.
Parabéns! Um belo conto.
Conto bastante pungente, cheio de vida, de amor e da sempre indecifrável morte.