Kissyan Castro (Barra do Corda, 1979)
É poeta e pesquisador maranhense, graduado em Letras pela Universidade Federal do Amapá, e em História pela Unifahe, especialista em História do Brasil e Literatura Brasileira, membro efetivo da Academia Barra-Cordense de Letras, da Academia Maranhense de Trovas e correspondente da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes. É autor de Vau do Jaboque (edição do autor, 2005), Bodas de Pedra (Chiado, 2013), Poesia Esparsa de Maranhão Sobrinho (360º, 2015), Rio Conjugal (Ética, 2016), O Estreito de Éden (Penalux, 2017), Maranhão Sobrinho – O poeta maldito de Atenas (Penalux, 2019), Pássaros Lacunares (Penalux, 2023) e Fruto Farpado (Patuá, 2024). Com participação, entre outras, nas coletâneas Caleidoscópio (Andross), Além da Terra Além do Céu (Chiado), Babaçu Lâmina (Patuá) e Haicais e Tankas (Persona), tem publicações em diversas revistas literárias, entre as quais Germina, Caqui, Mallarmargens, Literatura & Fechadura, Acrobata, Variações, Aboio, Athena, The Bard e Portal de Poesia Ibero-Americana.

- Paulo Rodrigues – Kissyan Castro, o Nauro Machado disse no poema Parto: “ser poeta é duro e dura/ e consome toda/ uma existência”. Ser poeta é duro mesmo?
Kissyan Castro – Se entendermos a condição de poeta como a recusa à anestesia que o cotidiano impõe, então, sim, ser poeta é duro. É estar permanentemente exposto, sem a blindagem confortável das convenções sociais. O poeta não dispõe do luxo da indiferença: tudo o atravessa, tudo se inscreve nele como ferida, como marca. Escrever é, nesse sentido, um gesto que nasce do confronto, da escuta radical do que muitos preferem silenciar — a dor, a morte, o tempo, a solidão, a ausência, a memória, o próprio enigma da linguagem. É duro porque a poesia, ao contrário de outras formas de discurso, não se satisfaz com a superfície; ela exige mergulho, exposição, um convívio prolongado com o abismo. E é duro também porque, na ordem social em que vivemos, o poeta ocupa um lugar “marginal”: pouco espaço, quase nenhum reconhecimento, e, além disso, a poesia não se converte facilmente em moeda. Mas é justamente nesse espaço de dureza que reside sua força. Nesse sentido, ser poeta é duro, sim, mas é também a maneira mais intensa de habitar a existência.
- Paulo Rodrigues – Poeta, desde quando escreve poesia? Se não escrever, morre?
Kissyan Castro – Comecei a escrever poesia tardiamente, embora desde a infância já estivesse em contato com outras formas de expressão artística que, de certa maneira, prepararam o caminho para a palavra escrita. Primeiro veio o desenho, depois a pintura, a xilogravura e, por fim, a música instrumental. Sou um saxofonista frustrado — precisei interromper os estudos por conta de um problema no maxilar, algo que ainda lamento. Apesar de ter crescido cercado de livros — meu pai era leitor assíduo de romances de faroeste, e nossa estante reunia tanto obras técnicas quanto de ficção —, o gosto pela leitura e pela escrita só despertou em mim depois dos vinte anos. Isso aconteceu durante umas férias na casa de um tio, em Presidente Kennedy, no Tocantins. Era uma pequena cidade em processo de esvaziamento, mas havia ali um atrativo inesperado: uma modesta biblioteca exatamente ao lado da casa do meu tio. Por falta do que fazer, acabei lendo praticamente todos os livros disponíveis. Foi nesse período que conheci um jovem poeta, que me mostrou seus versos e me incentivou a escrever. Relutei a princípio, mas acabei arriscando um soneto, assinado com pseudônimo. Quando ele leu e elogiou, confessei que era meu. Foi o empurrão que faltava. A partir daí formamos um grupo de sete jovens — todos professores universitários, exceto eu — e criamos o coletivo “Fênix”. Nossos encontros semanais eram permeados por música e declamação de poemas. Conseguimos, inclusive, patrocínio para publicar uma antologia: Sete Amores em um Só. Esse foi meu início literário. Depois, voltei ao Maranhão e nunca mais deixei de escrever, o que, de certa forma, responde também à segunda parte da pergunta: sigo escrevendo e, por enquanto, vivo.
- Paulo Rodrigues – Nauro Machado é um poeta fundamental da literatura maranhense/brasileira. Influenciou muitos autores. Como foi o seu contato com a obra do autor de Nau de Urano?
Kissyan Castro – Quando voltei ao Maranhão e passei a frequentar as bibliotecas da minha cidade, deparei-me com a poesia visceral de Nauro Machado. Foi um choque. Aquela linguagem densa, o sortilégio e rigor, causou-me profundo impacto. Senti, ali, que a poesia podia ser outra coisa. Quis conhecer o autor, e isso aconteceu anos depois. Sempre que ia a São Luís, fazia questão de visitá-lo. Nossas conversas sobre poesia e literatura eram longas e inesquecíveis. Nauro leu os originais do meu livro Bodas de Pedra e, generosamente, escreveu o prefácio. A última carta manuscrita que recebi na vida foi dele. Sua influência, no início, foi por contágio, um fascínio inevitável. Com o tempo, porém, à medida que fui amadurecendo minha consciência estética, senti a necessidade de buscar outro caminho. O distanciamento foi necessário e me permitiu pensar a partir da realidade e encontrar a minha própria forma de expressão, sem deixar de reconhecer a importância de sua presença na minha formação. Hoje, o que mais procuro aprender com Nauro, Ferreira Gullar, Ungaretti, Juan Liscano, Salgado Maranhão e tantos outros poetas do passado e atuais, é o ofício, esse exercício contínuo de construção/desconstrução do ser/linguagem, e não a mera repetição epigônica.
- Paulo Rodrigues – Sua poesia trabalha muito a solidão e a angústia existencial. É um trabalho consciente, poeta?
Kissyan Castro – Em parte, sim. Esses temas emergem de forma espontânea, como se já estivessem inscritas em mim desde muito cedo. Mas com o tempo, percebi que essa recorrência — solidão, angústia, finitude — não era acidental: ela revelava uma inquietação diante da vida, de Deus e da eternidade. A perda trágica de amigos ainda na infância e adolescência talvez tenha acentuado essa sensibilidade para o efêmero e o irremediável. Sou uma pessoa religiosa, não no sentido institucional. Já tentei pertencer a algumas denominações (fui até missionário e pastor local em duas igrejas), mas por questionar e pregar algo fora da cartilha, acabei sendo expulso. Já li a Bíblia 19 vezes, aprendi grego e hebraico antigos para entendê-la nos originais e chegar à raiz da coisa, compreender a minha própria condição. Esses conflitos aparecem na minha poesia como confrontos, reflexos de minhas angústias, não como afirmações. Nesse sentido, a poesia, para mim, é também uma forma de enfrentar o que não tem resposta.
- Paulo Rodrigues – Como é o seu processo criativo?
Kissyan Castro – Não escrevo poesia quando quero e nem com frequência. Já passei até mais de um ano sem escrever nada em matéria de poesia. Esse hiato temporal vem de um alheamento mesmo. Mas num dado momento insuspeitado, em que estou mais sensível à poesia e percebo a sua proximidade, decido escrever, e continuo “conectado” por meses, até que aquilo se acaba. Quando o fluxo que gera os poemas cessa (e quase sempre resulta em poemas suficientes para um livro), a sensação que tenho é de desconforto, uma espécie de depressão pós-parto, se assim podemos dizer. Não quero mais saber dos poemas e os deixo de lado, esquecidos por um tempo, e vou me envolver em outras coisas, até que meses depois os revisito, já alheio aos mecanismos que os conceberam. Quanto aos fatores externos, não escrevo poemas em gabinetes, posso estar em qualquer lugar quando me vem uma ideia, uma imagem interessante a partir da qual o poema vai se desenvolvendo, mas, quase sempre, resulta em algo diferente do inicialmente proposto. A música, a leitura de outros poetas e, principalmente, de prosadores, funcionam como catalizadores durante esse processo.
- Paulo Rodrigues – Fale um pouco sobre o livro “O Estreito de Éden”.
Kissyan Castro – Lembro que O Estreito de Éden foi escrito quase todo durante os meus plantões noturnos no hospital onde trabalhava, em meio aos sobressaltos próprios do ofício. Recebi, inclusive, reclamações por usar o “verso” em branco dos receituários para compor os poemas. Foi uma experiência incrível para mim. O poema que dá nome ao título do livro, dedicado, inclusive, a Nauro Machado, remete a um outro, de título homônimo, presente em Bodas de Pedra, e traz no cerne o sentido de regresso; voltar para onde tudo “supostamente” começou, ao “hímen de Tudo”; voltar para se reorientar, sobretudo no âmbito da experiência estética. Assim, O Estreito de Éden é, ao mesmo tempo, livro e travessia, resultado de uma vivência marcada pelo limite físico e emocional, mas também gesto de retorno às origens, na busca de renovar o diálogo com a palavra e com o sentido da criação literária.

- Paulo Rodrigues – E Pássaros Lacunares que também foi publicado pela Editora Penalux de São Paulo? Você manteve o projeto inicial de escrita? Ou foi modificando ao longo da caminhada?
Kissyan Castro – Penso que, a partir de Pássaros Lacunares, minha poesia inicia um processo de abertura em direção a uma linguagem mais comunicativa, capaz de estabelecer vínculos mais diretos com o leitor. Esse movimento representa um deslocamento em relação ao “penumbrismo” que havia marcado meus livros anteriores, nos quais predomina uma dicção mais introspectiva. Tal transformação não ocorreu de forma abrupta nem planejada, mas como resultado de experiências de leitura e do contato com tradições poéticas que, em sua essência, dialogam imediatamente com a coletividade. Refiro-me, sobretudo, à poesia popular — especialmente o cordel e a trova —, cuja oralidade, ritmo e concisão me abriram novos caminhos de expressão.
Essa aproximação, contudo, não modificou minha posição crítica diante daqueles que entendem a poesia apenas como veículo de ideias ou mensagens sociais. Continuo convencido de que a poesia não pode ser reduzida a um discurso social ou mesmo racional. As imagens poéticas possuem força própria, uma energia autônoma que prescinde de explicações ideológicas; muitas vezes, criam uma visão paralela da realidade, revelando aspectos que não se deixam perceber de modo direto.
Nesse percurso, compreendi que simplicidade não se opõe à densidade, e que a clareza pode ser igualmente portadora de complexidade estética. Em Pássaros Lacunares, esse equilíbrio começa a se manifestar, permitindo que minha poesia preserve sua intensidade reflexiva ao mesmo tempo em que se abre a uma comunicação mais imediata com o leitor.
- Paulo Rodrigues – Kissyan, o livro Bodas de Pedra é potente. Eu lembro de um verso do poema INVENTÁRIO: “o silêncio atroz que me navalha/ é tudo o que hoje ostento”. Pode comentar estes versos? O silêncio é realmente fundamental para a criação do poeta?
Kissyan Castro – O poema a que você se refere – presente não em Bodas de Pedra, mas em O Estreito de Éden — nasceu de uma experiência de despojamento, ao constatar a ausência de qualquer herança material que pudesse me servir de amparo. Diante dessa falta, o que resta é o silêncio — não como indiferença ou contemplação, mas como navalha que corta e, ao mesmo tempo, define uma condição de existência. O poema Inventário é justamente esse balanço em que nada de concreto se acumula, exceto o silêncio. Esse silêncio se impõe como limite e como vazio, obrigando o poeta a confrontar-se consigo mesmo e a arrancar daí qualquer coisa, “um artefato, uma bandeira”, como diria Gullar. É um silêncio doloroso, mas também fecundo, porque nele a linguagem encontra espaço para emergir, livre das distrações e do excesso de ruído. Por isso digo que o meu silêncio chega a ser biológico: é condição vital, quase orgânica, que sustenta a minha escrita.
- Paulo Rodrigues – Está com algum novo projeto de livro em curso?
Kissyan Castro – Publiquei recentemente, pela Editora Patuá, meu último livro de poemas, Fruto Farpado, que em breve pretendo lançar também em São Luís. Paralelamente, venho trabalhando na produção de um livro sobre a história de minha cidade, com o objetivo de trazer ao público fatos pouco conhecidos e, ao mesmo tempo, corrigir equívocos e imprecisões que, ao longo do tempo, foram se perpetuando em nossa historiografia local. A História, afinal, é minha segunda paixão e também minha formação acadêmica, razão pela qual esse projeto tem para mim um valor especial.
- Paulo Rodrigues – Deixe uma mensagem para os nossos leitores.
Kissyan Castro – Vivemos sob o domínio do imediatismo. O ritmo acelerado da vida contemporânea impõe a busca por resultados rápidos, respostas instantâneas e consumo imediato de informações, enfraquecendo a imaginação criadora. A enxurrada de conteúdos que atravessa as telas não abre espaço para a reflexão profunda, nem para o amadurecimento das ideias, sufocadas pela pressa. Cria-se, assim, a ilusão de cultura, quando na verdade se alimenta apenas o mundo superficial da aparência. Contra esse quadro, a poesia, a literatura, as artes em suas múltiplas manifestações, podem reordenar o ser humano, devolvendo-lhe o tempo da escuta, da contemplação e da criação.
*

POEMAS
DE
KISSYAN CASTRO
DO LIVRO “FRUTO FARPADO” (PATUÁ, 2024)
masmorra
posso no trotar do sonho
ser o sulco dos rastros
que circunscreve a manhã
ou do cavalo o tumulto
de incontáveis léguas
que nos cascos sonha
posso ser todo distância
a chegar em mim
bouchetiana
percorrer as palavras
para lhes dar nomes
não dos que ardem
no fogo ou comungam
com pedras
mas pedras sem silêncio
frutas que não despencam
palavras colhidas
na fúria
de palavras sem ideias:
chegar antes das ideias
preenchimento do branco
antes eu era imaginário
rosto sem tráfego
algo que alguém deixou
passar
mau apanhado pelo dia
hoje sou o que foi feito de mim
o costume de estar vivendo
velhice
nenhum hóspede povoa o dito
que na palavra quer ser mundo
só navios latejam no fim do rosto
do meu poema até os pombos
já voaram
continente
a mão fechada
do vento:
uma gaivota dentro
como certas coisas
em seu tempo
e espaço de exílio
mais um pouco
e serei de mim mesmo
o domicílio
leopardos não jejuam
realidade é aquela imaginação
que se pode ver e que portanto
podemos lhe dar palavras
portanto a fome não é uma crença
os dentes nos garantem
os dentes sempre estiveram no poder
matrioska
que vontade de me meter
outra vez no menino
despir o incêndio da idade
ser o desperdício de mim
em pés alheios
com a urina demarcar
o enigma do totem:
um circuito de cicuta
no beiço da memória
abrir em mim mesmo minha fuga
dar de cara enfim
comigo
corpo fechado
na poesia como na vida
nenhuma pista:
fui chegando chegando
até me perder de vista
sobre a natureza
anaximandro como um bom malandro
deitou sua proposta numa pera
e se mandou
anaximandro inventou a perícope do útero
dizendo que o privar da pera nos garante
o ilimitado
da partida
contra toda investida do tempo
– um poema
não com tinta
com a ferocidade doida
de quem se prende à terra
pelas unhas:
iludir no papel esta certeza

*
Paulo Rodrigues, entrevistador, é poeta e jornalista, autor da trilogia poética Cinelândia (2021), A claridade da gente (2023) e Cordilheira (2024).
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