Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

O OCEANO PARTICULAR DE NAURO MACHADO

O OCEANO PARTICULAR DE NAURO MACHADO

 

Bioque Mesito*

 

 

Um oceano particular, Nauro Machado (2021) – capa

Tales de Mileto simboliza uma ruptura paradigmática na tradição do pensamento ocidental, ao deslocar a compreensão do cosmos do campo mitológico para a fundamentação na experiência sensível e no exercício da razão discursiva. A proposta filosófica de Mileto representa o momento em que a cosmovisão ocidental abandona as tradições míticas e passa a buscar fundamentos explicativos por meio da razão e da evidência empírica.

Vernant (1987) corrobora com esse enunciado, ao conceber a água como fundamento originário, promovendo uma passagem do domínio das narrativas simbólicas para a explicação racional, que busca causas naturais sem descartar completamente sua herança mítica. Ao definir a água como a essência de todas as coisas, ele desencadeia uma transição epistemológica significativa, na qual o conhecimento se volta para causas naturais, sem abandonar por completo as influências simbólicas do passado.

Essa transformação dá origem ao logos, um novo paradigma de pensamento que visa apreender o cosmos por meio da razão articulada e do método sistemático. Com essa mudança, uma modalidade cognitiva se propõe a interpretar a realidade de forma racional e ordenada. O que promove o surgimento do logos, uma nova configuração do pensamento dedicada à compreensão do real mediante o uso da lógica pragmática.

O cenário pluralista e cosmopolita de Mileto foi fundamental para a gestação da filosofia, onde exemplificou o encontro entre empirismo e especulação filosófica, consolidando a interlocução entre ciência e pensamento filosófico inicial, pois propiciou o ambiente ideal para a inovação filosófica, que integrou seu conhecimento prático à investigação abstrata, fundindo ciência e filosofia autóctone.

Seu legado demonstra que o pensamento crítico emerge da inquietude e da coragem para desafiar o senso comum, promovendo a abertura a novos horizontes epistemológicos e a uma contínua reconfiguração do conhecimento, preservando sua historicidade. O que evidencia que a crítica reflexiva nasce da curiosidade ativa e da disposição para problematizar as certezas estabelecidas, impulsionando o avanço do saber sem desvinculá-lo de suas origens históricas (Nunes, 1991).

A dialética entre mito e razão revela um movimento contínuo, que estabelece a filosofia como um terreno de encontro entre a narrativa simbólica e a argumentação lógica, ou seja, a passagem suave entre o universo mítico e o raciocínio estruturado, inaugurando uma filosofia que dialoga simultaneamente com o passado mítico e a busca racional por sentido. Esse entrelaçamento marca a flexibilidade e diversidade do pensamento originário, que não anula o passado, mas o ressignifica dentro de um novo horizonte epistemológico (Bogéa, 2023).

A filosofia emerge como um exercício constante de autonomia intelectual, no qual cada resposta abre espaço para novas interrogações, simbolizando a busca contínua do ser humano por sentido e compreensão do universo. Se configura como um percurso sem fim de liberdade intelectual, onde cada resposta é simultaneamente um convite à dúvida, refletindo a essência da indagação humana sobre o mundo e sua existência.

Bachelard (2018) assinala que a concepção da água como princípio fundamental atravessa filosofia e literatura, instaurando-se como símbolo arquetípico de gênese, fluxo e metamorfose. Ao perpassar o pensamento filosófico e a criação literária, configura-se como metáfora universal de nascimento, dinamismo e mudança, pois articula-se como imagem universal da origem, do devir e da renovação. Mesmo em expressões distintas, mantém-se o princípio vital: a água, como força originária, nutre o universo e a existência, convocando tanto a razão filosófica quanto a sensibilidade poética a sondar seus segredos. O sentido essencial resiste, sendo a água matriz dinâmica que sustenta cosmos e vida, convidando razão e imaginação a imergirem em sua simbologia.

A Travessia do Ródano, Nauro Machado (1996) – capa

Ao afirmar que “tudo é símbolo e analogia”, Fernando Pessoa traduziu a fluidez simbólica da água, erigindo-a em metáfora da constante transmutação existencial, fazendo da água a expressão metafórica da metamorfose contínua do ser, cristalizou na imagem da água o emblema da incessante mutabilidade ontológica (Paz, 1982).

Enquanto Tales de Mileto concebia a água como elemento físico primordial, Pessoa a ressignifica como representação da profundidade psicológica, demonstrando a vitalidade simbólica que transcende tempos e linguagens. Assume o papel de signo da subjetividade e das intricadas camadas do ser, revelando a continuidade de seu valor simbólico na história do pensamento.

Na poesia de Pablo Neruda, a água encarna a “transparência do mundo”, expressão estética de uma percepção que busca penetrar a essência para além do visível em gesto poético que traduz o anseio de ver com clareza aquilo que se oculta sob a superfície, metáfora sensível que convida a ultrapassar o véu das aparências. símbolo de um olhar que procura alcançar o real para além de sua máscara fenomênica (Bachelard, 2018).

Tal perspectiva dialoga com a do filósofo, empenhado em decifrar o cosmos pela via racional; a água emerge, assim, como ponto de interseção entre a lucidez do saber e a densidade da vivência sensível, que se articula à busca filosófica de compreender-se a realidade pela razão, fazendo da água um elo simbólico entre a nitidez conceitual e a intensidade da percepção, síntese entre o esclarecimento cognitivo e a profundidade do sentir.

Na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, a água assume estatuto de totalidade poética, início e término, núcleo essencial da existência, transcende o elemento físico para tornar-se princípio universal, simultaneamente gênese e plenitude do ser, o começo e o fim, essência plena, condensando a totalidade ontológica do viver (Heidegger, 2015).

Em sua criação lírica incorpora a percepção tradicional da água como elemento que integra e sustenta a vida, traduzindo em vivências sensoriais a profundidade do mistério natural, conecta e preserva a vida, expressando a grandeza do mistério natural por meio da sensibilidade, transmutando a magnitude do enigma natural em sensações perceptivas.

Para Clarice Lispector, a água representa a liberdade, cuja característica fluida simboliza a transformação constante e a adaptação às circunstâncias, destacando sua mobilidade como metáfora da mudança e da flexibilidade existencial, no que expressa a dinâmica da transcendência contínua, a proposta em inconformidade com as circunstâncias (Bergson, 2010).

Essa essência corresponde à vida em constante fluxo, não como desordem, mas como uma liberdade ordenada que sustenta o cosmos, evidenciando a conexão entre o pensamento filosófico e a expressão poética, onde a liberdade não é caos, mas a força que mantém a harmonia cósmica, mostrando o entrelaçamento harmonioso que rege a natureza, revelando a continuidade intrínseca entre filosofia e poesia.

O poeta e crítico literário Antonio Aílton (2018), em seu livro Martelo & Florhorizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea, enfatiza que a poesia transcende o mero reflexo do eu criador; ela comunica e direciona a atenção para realidades que ultrapassam sua própria materialidade. Ainda que se apresente como uma construção imagética desvinculada da reprodução mimética, ela encerra em si uma intricada complexidade ontológica. Contém uma densidade metafísica profunda que não se reduz à autorreflexão do sujeito; ela constitui um discurso que revela outras dimensões do real. Embora por vezes se configure como uma imagem isolada, distante da imitação da natureza, carrega em seu interior uma riqueza conceitual complexa.

Neste intuito, a percepção, segundo Merleau-Ponty (2018), sobretudo no campo estético e poético, não reproduz o mundo mecanicamente, mas estabelece uma relação vital e complexa com ele, revelando dimensões essenciais do existir e do sentido. A obra de arte, nesse contexto, emerge como uma expressão ontológica que ultrapassa a simples réplica ou introspecção. Desta forma, revela uma densidade ontológica que ultrapassa o simples reflexo ou a expressão individual.

Para Gadamer (2015), a experiência estética constitui um encontro vivo e dialógico entre o sujeito e a obra de arte, onde o significado é construído na interação recíproca, permeada pela abertura e pela síntese de perspectivas distintas, mas emerge da interação dialógica, caracterizada pela fusão e abertura de horizontes interpretativos, que converge de diferentes horizontes de compreensão.

A poesia configura uma relação ontológica profunda com a realidade, não se limita à reprodução do mundo, mas instaura um diálogo vivo que expõe a essência do ser, onde o significado surge da interação aberta e da fusão de horizontes interpretativos. Essa dinâmica encontra expressão na metáfora da água na poesia, símbolo universal de fluxo, transformação e profundidade, que espelha a fluidez do sentido e a renovação contínua da experiência estética, fundindo filosofia e criação poética num processo incessante de revelação e interpretação.

Antologia Poética de Nauro Machado, 1998 – capa

Quando esta análise se aproxima à obra do poeta Nauro Machado, no  que tange ao desdobramento com o princípio da água, há um guião que se instala em poemas no seu transcurso, desde Campo sem base (1958), perpassando por Exercício do caos (1961), Segunda Comunhão (1964), Zoologia da Alma (1966), Necessidade do divino (1967), Noite ambulatória (1969), A vigésima jaula (1974), Os Parreirais de Deus (1975), As órbitas das águas (1980), O signo das tetas (1984), Mar abstêmio (1991), A travessia do Ródano (1996) e em alguns dos últimos livros póstumos, organizados por Arlete Nogueira da Cruz (O pombo negro dos sobrados, 2020, Um oceano particular, 2021 e Um iceberg para a Praia Grande, 2025).

Nauro Machado estabelece uma conexão quase orgânica com a água em sua poesia, concebendo-a como a corrente invisível que permeia seus versos e confere significado ao fluxo da existência, dando coesão e sentido ao movimento vital do ser. Em sua poesia, Nauro Machado integra a água como uma energia, um dínamo impalpável que atravessa a estrutura e o combalido caminho da vida, pois esta energia invisível que permeia seus textos se sustenta no ritmo incomensurável da existência.

Em sua visão, a água não é fixa, mas tempo em fluxo, uma memória que escapa pelos poros da alma, fazendo da poesia uma correnteza de sensações e significados metafísicos. Vejamos no poema Angústia larvada no tempo (Exercício do caos, 1961): “Onde incontida aurora já me banha as fibras do anjo, na minha matéria”. Ou em Enchente (Segunda Comunhão, 1964): “Na invasão das marés, o porto da memória ausculta o mangue, a verdade proscrita ao outrora da infância afogando canoas no alagadiço, onde gaivotas pedem paz à vã matéria”. Ou ainda no belíssimo Metamorfose inicial (Campo sem base, 1958): “No banho seu odor me penetra – sabre. Foi e já não é, coube e já não cabe: cai, ressequida, lúcido ódio! Me crio em nova forma. Não esta, mas outra maior, dia meu, mais árduo, onde meus ócios secam, apodrecidos, no tédio das palavras”.

Ele concebe a água como um tempo dinâmico, uma lembrança líquida que se infiltra na alma, tornando a poesia um curso de experiências sensoriais e metafísicas. Em suas palavras, a água se configura como tempo e memória fluida, que percorre os recantos da alma, transformando a poesia num contínuo desdobrar de vivências sensoriais e metafísicas. No poema Carta de Ribamar em quarto crescente.

 

[…]

este é o mar onde atroz barco flutua,

em pranto, sobre o afogado enfim rei

de um oceano há muito enlouquecido.

Choro pensando em ti, minha alma, mãe

do meu delírio, chagas de Maria,

hóstia dos aflitos e pão amado.

 

[…]

Pobre mãe! Espáduas de peixes purpúreos

cosem a solidão dos mares velhos,

onde o teu filho afunda um barco em lágrimas.

(Caixão futuro bóia sobre as ondas

de outro Danúbio em sal valsificado).

Tu, pedalando estrelas do crepúsculo.

 

Noite ambulatória (1969).

 

Em vários poemas, a água aparece sob múltiplas formas: calmaria ou torrente impetuosa, simbolizando um princípio constante que atravessa tanto o indivíduo quanto o cosmos. Às vezes esse repouso sereno desmistifica a fé e o abandono em meio a forças avassaladoras, mas invariavelmente como um elemento estruturante do ser e do mundo e a totalidade do real. Vejamos.

 

Se em mim sou o crescer

de uma água em vazante

– aonde banhar-se -,

eu me encho de que,

se não encho um instante,

se o tanque, perdido

secou no ar?, se

todo o mar, crescido

flore sem espinho

visível, roaz

por dentro, daninho

entre menosmais?

Entre o não a crescer

e o sim a secar,

aonde, água, o Ser

aonde banhar-

me em porções de mins

fedidos no olfato?

Pés, mãos, ânus, rins,

pênis, feto, fato,

eu me encho de Verbo

esvaído exangue,

no instante superbo

do vinho e do sangue.

 

Essa versatilidade da água reflete a concepção pré-socrática de um elemento primordial, que assegura a continuidade e a mutabilidade do cosmos, para os quais a água representava o princípio originário que dá sustentação e promove a mudança. Nauro traduz em seus versos a herança primordial ao identificar na água o princípio do devir e da circularidade infinita, manifestando-a como o pulso ativo que rege o cosmos em mutação incessante, como se observa no poema Regressão.

 

O fundo da água é trincheira calada,

barril de pólvora de almas noturnas,

onde as matérias desencarnam peixes.

 

O fundo da água é a bóia do universo,

o parto lúgubre destes sobrados,

onde os silêncios mendigam navios.

 

O fundo da água apodrece altos céus

banha os foguetes da nossa tristeza!

Sombreado o convite do sol à carne.

 

no funeral do dia ensanguentado,

restará o fundo da água – corpo negro

nos ossos brancos de uma lua cheia.

 

Barril de pólvora de almas noturnas,

o fundo da água é trincheira calada:

apaga os olhos, o céu e a lamparina.

 

Zoologia da alma (1966).

 

Ou ainda em Pântano:

 

Terra que a alma afasta

do céu que se sonha:

minha alma em ti pasta,

banhada em vergonha.

 

Terra que, viscosa,

sobre o ser se abate:

minha alma é uma rosa,

que em vermes me bate.

 

Terra que no sangue

Em mim já trescala:

Minha alma é um mangue

Vivendo da fala.

 

Ouro noturno (1965).

 

Fundamentada em sua obra, a água emerge como força vital na poesia de Nauro Machado, instigando a consciência da incessante metamorfose do ser, do tempo e da linguagem. Essa presença líquida simboliza o dilema perpétuo que molda a existência e a expressão, transformação do eu, da temporalidade e do discurso, revelando a fluidez intrínseca da realidade. Este é um aspecto bastante diluído na obra Os parreirais de Deus (1975), pois apresenta uma gama considerável de poemas correlacionados em torno da água, que é a base desta fundamentação temática. Neste livro, Nauro amplia o conceito ontológico, que permeia todo o aporte nevrálgico de sua trajetória poética, como podemos contemplar nos poemas abaixo deste aclamado exemplar.

 

Clara e Gema

 

Dentro do ovo

rastreamos outro ovo

que vai da boca

às vísceras.

 

Dentro de nós

a morte chora

em surdina.

 

Só o fogo e a água

enfim se combinam.

 

Ato conclusivo

 

A infância não volta.

Os porcos ruminam

os sonhos deixados

na maré do tempo.

 

Clausura

 

Contemplai o poço que é o universo.

Na fundura da nossa angústia.

As estrelas estão aqui embaixo,

junto à nossa fome e esperanças.

Varre, vento, os últimos frutos

apodrecendo em murchas bocas

na orla das praias noturnas

onde resta o ventre dos peixes.

[…]

 

À deriva

 

[…]

De outros poços tenho sede,

Bebendo águas de amargura.

Há bons anos deito em redes

E em abastanças de usura.

 

[…]

Lua alheia, sol avaro,

noites, dias que perdi,

na onda expectante, paro

no oceano do porvir.

[…]

 

Os parreirais de Deus, Nauro Macchado (1975) – capa

Além destes poemas, encontramos ainda diversos outros com a temática da água em Os Parreirais de Deus, como são os casos de Mareação, Corrente, Vestígio, Ponte delituosa (no qual faz um alerta sobre a degradação do Rio Anil), Leito nupcial, Alienação, Os tateantes, Canto do amor cotidiano, e no longo poema Cofo de misericórdia (composto por um agrupamento de sonetos em quarenta partes). Mas o poema que mais chama a atenção, por aludir a um livro que seria lançado postumamente Um oceano particular, 2021, é o sintético e enxuto, mas não menos importante poema Abrangência.

 

Tenho sede de oceano

porque se afunda na minha alma

um peixe

 

Os Parreirais de Deus (1975).

 

Um oceano particular foi lançado em 2021 como um dos livros póstumos do Nauro, e este título dá início ao primeiro poema da obra em questão. Um poema que de algum modo tem uma reminiscência verbal com o poema Abrangência (1975), encartado em Os Parreirais de Deus. Explico. Parece que os dois poemas guardam a lama do ser náufrago do Nauro, um ser que se esquiva da própria existência, mas que sobrevive mesmo em discordância com o que Ser que o circunda e/ou o habita. Parece que tanto no poema Abrangência quanto no Um oceano particular, o poeta professa a mesma proposta existencial que anuncia o contexto dos versos. Quando Nauro reverbera no poema Um oceano particular: “[…] não temos boca e nem mais os braços. Nada, nadador, nada como um náufrago!”, a potente metáfora: “Tenho sede de oceano porque se afunda na minha alma um peixe”, ganha altivez nos dois poemas, pois há um silogismo pelo desejo de continuidade da existência.

No instante em que Nauro Machado expõe seu “oceano particular”, o que transborda não é mero líquido, mas a matéria viva do existir. O verso “não temos boca e nem mais os braços. Nada, nadador, nada como um náufrago!” converte o afogamento em metáfora da resistência humana, onde o impulso de seguir adiante sobrevive à ausência de recursos. Ao declarar: “Tenho sede de oceano porque se afunda na minha alma um peixe”, o poeta ultrapassa o mero ornamento poético e insinua uma revelação ontológica: há em nós um princípio vital que só se realiza nas profundezas, um sopro que encontra sentido apenas no mergulho íntimo e abissal do Ser. É como se, em Nauro Machado, a vida fosse um nado incessante em mar aberto, não para evitar algo, mas para continuar a ser. O oceano encarna o próprio tempo, e cada gesto aquático é tentativa de manter-se à tona diante da corrente inexorável.

Logo, ao escrever sobre sua “sede de oceano”, Nauro exprime mais que um desejo físico; revela a vocação humana de se integrar ao infinito. O peixe que habita a alma é a porção do ser que só encontra respiração no enigma, necessitando da densidade abissal da existência para manter-se. Entre ternura e vertigem, o verso insinua que a vida é o reconhecimento da condição de náufrago. Não se trata de sucumbir à falta, mas de descobrir no gesto de nadar o sentido último. Desprovido de braços ou ar, o ser ainda avança. A palavra poética expande-se em mar: imenso, imprevisível e necessário. Quando o poeta anuncia seu “oceano particular”, converte seu mundo interior em um conjunto fragmentado de memórias, dores e encantos. A água simboliza tanto o risco do afogamento quanto a possibilidade de redenção. Essa dualidade é compreendida e habitada por Nauro com um olhar filosófico aberto e sereno. Assim como o rio segue ao mar, renovando-se incessantemente, não há retorno ao ponto inicial. O poeta convida à aceitação da tempestade como parte do processo vital e o redesenho interno promovido pela maré simboliza transformação e crescimento.

O último livro póstumo de Nauro Machado se intitula Um iceberg para a Praia Grande (Lume, 2025). Sobre esta obra, o poeta e geracional de Machado, Viriato Gaspar, destaca: “Nauro, neste Iceberg gigantesco que põe a navegar pelos nossos olhos quase apagados pelos falsos brilhos deste tempo de imposturas relinchantes, nos conduz pelos sextetos deste poema único, indiviso, denso e pesado, quase claustrofóbico, versos que parecem vomitados do mais imo e mais fundo de um self torturado pela busca quase irrespondível do que salvar de seu naufrágio humano, existencial, poético e visceral” (Gaspar, 2025).

Portanto, em Nauro Machado, a água habita o limiar entre o real e o ideal, o corporal e o transcendental. É simultaneamente essência e limite, meio incessante e ponto de ruptura. Essa ambivalência abre caminho para uma poesia que questiona o absoluto. O convite é para navegar nas águas instáveis do transitório e do incerto, ou seja, o leitor é chamado a explorar a incerteza e a beleza do passageiro. A água transcende o tema para se tornar guia do percurso poético, simbolizando uma jornada contínua, sem destino fixo. Cada gota representa um significado singular e irrepetível. Assim, a poesia de Nauro Machado se configura como viés ininterrupto de sentidos.

 

 

O poeta Nauro Machado em seu cotidiano na Praia Grande, São Luís – MA

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BOGÉA, Diogo. O mito da razão e os pensadores do desejo. São Paulo: Vozes, 2023.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método Vol. I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica: Volume 1. São Paulo: Vozes, 2015.

GASPAR, Viriato. O Poeta no Cimo do Iceberg. In: SACADA LITERARIA, São Luís, 12 ago. 2025. Disponível em: https://sacadaliteraria.com.br/poesia-prosa/o-poeta-no-cimo-do-iceberg/. Acesso em: 12 ago. 2025.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. São Paulo: Vozes, 2015.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1991.

MACHADO, Nauro. Antologia poética / Nauro Machado. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

MACHADO, Nauro, Os parreirais de Deus. São Luís: Func-MA, 1975.

MACHADO, Nauro, Um oceano particular. São Luís / Teresina: Halley, 2021.

PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SILVA, Antonio Aílton Santos. Martelo & flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea. São Luís: EDUFMA, 2018.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

 

 

 

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          *Bioque Mesito: Poeta, autor de cinco livros de poemas publicados.