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JOSÉ CHAGAS, UM CANHÃO NO SILÊNCIO DE NOSSOS EFÊMEROS
*Viriato Gaspar
A primeira vez que vi José Chagas eu era ainda um menino entre sete ou oito anos. Foi quando minha mãe me entregou uma travessa bem sortida de olorosos bifes que ela preparara no capricho, mandando que eu os levasse na casa do “Príncipe”, como ela chamava Bernardo Coelho de Almeida, o único Lorde inglês que já nasceu no Maranhão. Bernardo morava quase defronte de nós, quatro ou cinco casas mais para o lado da Avenida Rio Branco, no alto da ladeira da Rua Jansen Miller. Talvez o homem mais cavalheiresco, mais gentil e educado, que já encontrei nestas mais de sete décadas de peregrinação por este lindo planeta azul.
Quando entrei na casa, além de Bernardo Coelho de Almeida, lá estava o poeta José Chagas e, sentado a um canto da mesa atulhada de garrafas de cervejas, de uísque e de conhaque, estava um rapaz, já com as faces também avermelhadas pelo tanto de bebidas que eles haviam consumido, com um maço de folhas datilografadas nas mãos. Uma década depois, eu reencontraria esse rapaz, já poeta afamado, na inauguração de uma exposição de pinturas do Yedo Saldanha, na rua do Sol, com vários livros já publicados e com um coração e uma alma de genuíno poeta, sempre abertos para nos acolher e incentivar. Chamava-se Nauro Diniz Machado.
Exatamente por esse tempo, instigado por minha mãe, que o admirava enormemente, ousei levar ao Padre João Mohana, na igreja da Sé, alguns exemplos daquilo que, na minha extrema empáfia de adolescente, chamava de “meus primeiros poemas”, alguns descosturados e tatibitates textos que vinha alinhavando desde os 16 anos. Não sei por qual razão, o Padre Mohana parece ter descoberto, sob as várias camadas de lugares comuns e versos francamente horríveis, alguma coisa aproveitável, porque me mandou levar os meus escritos à casa de Arlete Nogueira da Cruz, o que cumpri receosamente numa noite bem amena.
Arlete, a fada madrinha da minha geração, com aquela alma de luz e aquele coração de rosas, que todos conhecemos, recebeu-me com carinho e alegria, ficando com aqueles toscos rabiscos de quem apenas tateava na escorregadia senda da Poesia. Escritos que, nesse mesmo ano, enfeixados num livro, conseguiriam menção honrosa num concurso de poesia da Academia Maranhense de Letras. Por sugestão de Arlete, fui procurar José Chagas, na pensão em que residia à época, na transversal do Beco da Pacotilha.
Chagas tinha fama de homem seco, duro, mas Arlete me instruíra a dizer que ela mesma é quem me mandara procurá-lo, o que se revelou fundamental, porque ele me disse que iria ler os meus “poemas”, “se tivesse tempo”. Quando voltei, 15 dias depois, revelou-se o homem afável e acolhedor que Arlete me dissera que ele escondia por trás da fachada dura e seca de nordestino acostumado a brigar com as intempéries e as durezas do agreste paraibano.
Deu-me uma pequena apreciação de página e meia datilografadas, que os caminhos e descaminho, as voltas e reviravoltas da vida me fizeram extraviar, mas cujo início relembro até hoje como tendo sido decisiva para minha caminhada no ofício. “O que é animador, num moço que estreia com um livro de poemas, é que ele seja capaz de poesia. Viriato Gaspar consegue, em alguns instantes, em meio a muitas oscilações que são características dos primeiros versos, altear momentos de verdadeira e bela Poesia.” Essa abertura de sua apreciação tocou-me como um mantra, um lema, um emblema, uma ordenação, uma missão de vida, um compromisso comigo mesmo, de nunca decepcionar aquele imenso e esplêndido Poeta.
Para mim, José Chagas é um dos grandes Poetas do mundo. Tivesse ido embora do Maranhão para Rio de Janeiro ou São Paulo, sua poesia estaria correndo o mundo e sendo estudada nas melhores universidades da Terra. Mas com sua alma franciscana de caboclo nordestino, de quem enfrentou as durezas da vida em circunstâncias inóspitas e as estruturas desumanas, tomou-se de amores por nossa (maltratada) terra e por nossa (sofrida) gente, tornando-se o grande cantor de nossa Ilha, com obras que vão desde Maré Memória até o quase épico, epopeico, Canhões do Silêncio.
O que já impacta, de saída, o leitor de seus poemas é o domínio praticamente absoluto que o poeta tem sobre os instrumentos e recursos de sua arte. O rimário mais que opulento, paroxístico, a diversidade de temas e enfoques que aborda em sua poética, sempre com domínio e autoridade, a facilidade com que, de forma aparentemente simples, Chagas constrói seus versos e estrofes, como um artesão diligente que tece e entretece, alinhava e ponteia os meandros das palavras e as arranja num buquê delicado e sutil, maravilha o leitor e o conduz por uma viagem encantada pelas paragens mágicas da verdadeira e grande Poesia.
Chagas trouxe de seu distrito de Santana dos Garrotes, no sertão da Paraíba, o viço e a pujança dos cantadores das feiras e das praças, dos desafios pinicados nas violas, dos mourões, dos martelos agalopados, dos 10 pés de martelo alagoano, dos quadrões rebatidos, dos galopes à beira-mar, toda aquela riquíssima ganga poética dos cantadores dos grotões do Nordeste, mestres inexcedíveis na arte do improviso e dos desafios. O próprio Chagas chegou a dizer, em uma entrevista, do seu encantamento de menino diante da arte desses poetas populares e confessou que, durante muito tempo, acalentou o sonho de tornar-se um deles.
Chegado ao Maranhão em 1938, logo juntou-se à boemia literária de São Luís, com seus fiéis companheiros de carraspanas e declamações pelos bares e biroscas da Ilha. Bernardo Coelho de Almeida, Paulo Nascimento Morais, Nauro Machado, uma confraria regada a muita cerveja e poesia pelo centro histórico da velha cidade. Só oito anos depois de sua chegada ao Maranhão, em 1955, o Poeta deu início à sua trajetória poética, com a publicação da “Canção da Expectativa”, modestamente impresso na Tipografia São José, sempre aberta a editar os talentos poéticos de nossa terra à época. “Canção da Expectativa” já anunciava tratar-se de um Poeta maior, da mais alta estirpe, mostrando claramente que Chagas era um mestre em seu ofício, um tecelão de grandezas poéticas e de tessituras vocabulares de uma beleza paroxística e superna.
Na poesia de Chagas identifico também aquela fluidez musical característica, por exemplo, do Romacero Gitano, de Garcia Lorca, aquele passeio melódico em que as palavras parecem dançar e as ideias como que se encaixam e se completam, numa simbiose que chega à perfeição. Chagas não é só um dos maiores do Maranhão, mas seguramente se inscreve entre os grandes poetas do mundo, quer pelo pleno domínio dos recursos da linguagem poética, quer pelas imagens e figuras, por seus achados, pelas cintilações de grandeza e excelência que imprime a seus poemas.
Tenho para com Chagas uma dívida impagável. Foi pela leitura contínua e reiterada de sua obra, que aprendi a escrever poemas. A aliar o rigor técnico na feitura dos versos, na escolha das palavras, ao compromisso com os companheiros de existência, mormente os mais desamparados e excluídos, os que vamos gastando o oxigênio do planeta nesta caminhada rumo a um outro plano sobre o qual não sabemos rigorosamente nada.
Não se pode falar sobre a obra poética de José Chagas sem ressaltar sua maestria absoluta, seu domínio total sobre uma das formas de arte poética mais difíceis e árduas: o soneto. Chagas foi, nesta seara, um Mestre absoluto na confecção desse tipo de poema, a que dava uma leveza e uma enormidade impressionantes. Há, em quase todos os seus livros, no mínimo três dezenas de sonetos que merecem figurar no cânone dos maiores já escritos em língua portuguesa, verdadeiros monumentos poéticos de uma grandeza e beleza que nos tiram o fôlego.
Chagas constrói o poema com aquela lucidez e aquele comprometimento de alma e coração, de ser inteiro, características de um verdadeiro Poeta, fazendo bailarem as palavras e dançarem as ideias entre suas reverberações e cintilâncias. Atinge um perfeito equilíbrio entre a Melopeia, a Logopeia e a Fanopeia, como o mestre que é na nossa arte, neste difícil ofício de garimpar sentido e buscar jogar luz sobre o duro e pesado fardo da nossa cada vez mais desumana humanidade.
Sua obra e seu nome ficarão indeléveis na história da poesia do Maranhão, como um farol, uma meta, um ponto de chegada para todos nós, que nele nos inspiramos e nele buscamos alimento, razão e ânimo para nossa própria obra e para o cotidiano feroz de nossa vida.
*Viriato Gaspar,
poeta Maranhense
2
[CHAGAS]
UM MESTRE DO SONETO
Imenso poeta, reconhecido por todos, digno de figurar entre os grandes da poesia brasileira e universal, há uma faceta no Chagas que o eleva a um patamar raro e diferenciado. Seu domínio praticamente absoluto sobre o fazer poético, um artífice sutil e primoroso das palavras, Chagas trafegava por todos os ritmos e faces do poema, desde os chamados versos livres até a maestria que esgrimia numa fôrma difícil, a forma fixa do soneto decassílabo.
Nesta seara, Chagas alcança cumes soberbos, ares grandiosos de magia poética e de criatividade lúdica com as palavras, tecendo imagens e cerzindo versos que, sem nenhum favor ou bairrismo, o colocam em qualquer antologia séria do soneto em língua portuguesa. Os sonetos de Chagas são verdadeiras joias, trabalhos de uma ourivesaria delicada e sutil, ao mesmo tempo sublime e humana, altissonante e cotidiana, que junta a beleza mais extrema a um sentimento de humanidade, a um sentido de homem capaz de mergulhar nas lutas e pelejas de seu tempo, mas transfigurando o barro em ouro, o ouro em nuvem, a nuvem em amplidão e grandeza.
Confiram-se alguns exemplos dessa safra maravilhosa que nos legou José Chagas:
SONETO DA MANHÃ PRIMEIRA
Quero a manhã exata, a manhã viva,
pois estas luzes e estes voos na aurora,
são só ensaios de manhãs. E agora,
o que eu quero é a manhã definitiva,
a autêntica manhã pura, exclusiva,
manhã nascida de si mesma e fora
desta jubilação falsa e sonora
que só por um momento nos cativa.
Ah, a manhã da última promessa,
manhã de um novo mundo que começa,
mais acessível, mais humano e bom.
Meu Deus, seria como se chegasse
a manhã do primeiro sol que nasce,
a cor primeira e do primeiro som.
DUALISMO
Eu, que nunca termino o que começo,
vou, sem ter começado, ver meu fim,
e já me preparei para o regresso
de uma viagem que não fiz em mim.
Vivo um contraste humanamente expresso,
pois me fiz dois: um bom e outro ruim.
Sendo irmão de mim mesmo, a mim confesso
que, se nasci Abel, cresci Caim.
De antigas eras trago esse conflito,
e ora amaldiçoado, ora bendito,
não encontro equilíbrio em meu redor.
Mas, se não tendo início é que me acabo,
lanço tudo o que sou a Deus e ao Diabo,
e eles que façam como achar melhor.
A ILHA PESSOAL
Guardei em mim uma cidade inteira
e me fiz ilha, numa geografia
que situa essa ilha onde bem queira
ou a esconde de todos e a vigia,
Para assim evitar mão estrangeira
venha ferir sua soberania.
Nesse mar o destino segue a esteira
do sonho e o próprio sonho é que alumia
a trilha onde a poesia mensageira
nem mesmo em seu naufrágio morreria,
e bem maior que o mar segue altaneira,
cercada de maré, cheia ou vazia.
e quanto sabiá, quanta palmeira,
na paisagem que a envolve e que a recria.
LAVOURA AZUL
Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.
Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.
Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.
Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.
I
Não sei se foi invento ou desinvento,
mas era uma mecânica interior
que me impulsionava com seu lento
desabrochar como o de uma flor.
Se era um, se eram dez ou se era um cento,
não sei, porque ninguém é sabedor
de quantos sonhos faz-se um movimento
destinado a ser ódio ou ser amor.
Só sei que aquilo em mim acontecia,
como algo que nasce ou que renasce,
oscilando em tornar-se noite ou dia.
Só sei que isso era assim e assim seria,
se a máquina do sonho não parasse,
enguiçada na própria fantasia.
II
E, por Deus, como nada eu desejara,
nem plantar nem colher, pois meu labor
não se fazia aberto a uma seara
que não fosse a do azul sem sua cor.
Pouco me interessava a manhã clara,
como também um sol já a se pôr.
Eu só queria o tempo que não pára,
tempo a ser tempo enquanto tempo for.
E aquilo veio como necessário
muito mais a si mesmo do que a mim,
que não tinha viagem nem horário.
Veio não vindo e, porque veio assim,
dissipou-se de todo em seu contrário,
como se começasse pelo fim.
Pelo quanto me custa ser apenas
isso que sou, sem mais querer de mim;
por tudo quanto, ó mundo, me condenas,
sem que eu possa deixar de ser assim;
pelas dores que, grandes ou pequenas,
chegam todas servindo ao mesmo fim:
por querer disfarçar as duras penas,
do que é passar por bom, sendo ruim;
pela agonia de que sou o centro,
pelo egoísmo de manter-me dentro
do meu próprio vazio interior,
pago o preço da vida com o salário
que vou ganhando no morrer diário
que esse é, por fim, nosso maior labor.
A noite chega aqui por um descaso
do tempo que esgotou seu próprio dia,
tentando aprofundar-se no que é raso,
mas que nem fere a superfície fria
do quanto se adianta em ser atraso,
como se eterno fosse o que se adia
num lento repetir de ocaso e acaso
para a razão do que aconteceria,
se o mundo não sonhasse a longo prazo
sua verdade e sua fantasia,
e a própria noite nunca desse azo
para um sonho menor que se esvazia
sobre cada desejo e cada caso
aqui mantido em pedra de agonia.
SONETO 12
Minha mãe não sabia que seu filho
iria ser só isso que hoje é,
nem sabe agora que por onde trilho
piso mais chão de mágoas que de fé,
e esse pó de incertezas que palmilho
obriga-me a voltar na vida até
onde, fechado em solidão, me humilho,
a acompanhar um sonho em marcha à ré,
lembrando o tempo em que eu plantava milho,
a abrir o chão da vida com o meu pé,
e mamãe repetindo em estribilho,
toda manhã, na hora do café,
meu nome tão de santo, mas sem brilho,
hoje muito mais chagas que José.
SONETO 36
Meu pai voltou ao pó, mas escolheu
o pó da terra que ele mais queria,
voltou de longe para o chão que é seu,
e ali chegou como semente fria,
pois quem daquele chão tanto colheu,
no mesmo chão também se plantaria
para a safra do além, e apenas eu,
eu não vi o plantio desse dia,
sei só do pranto todo que choveu
sobre a cova recente que se abria
e do quanto ficou para um museu
de saudades, na aldeia em agonia,
mas nunca eu disse a mim que ele morreu
— meu coração não acreditaria.
E, para encerrar com chave excelsa e deslumbrante, esta peça de grandeza poética e humana em nível excelso de magia e encantamento:
O cão nos inspirava confiança
no mundo, e se chamava Surubim.
Latia toda a sua segurança
contra o que nos viesse de ruim.
O cão era bem mais que uma fiança
feita de instinto, e sendo um cão assim,
guardava à noite a nossa ovelha mansa
a ruminar seu sonho de capim.
O cão era constante em nossa andança,
por ser de todos um irmão afim,
e me ficou eterno na lembrança
como o que de melhor guardei em mim.
Pena é só que minha alma não lhe alcança
o dom de ser fiel até o fim.
[Seleção de Viriato Gaspar, poeta maranhense]
*Para mais informações e biografia do Poeta José Chagas, acessar:
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