Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Romancista e poeta Natan Campos - foto: divulgação

NATAN CAMPOS entrevistado por PAULO RODRIGUES

PAULO RODRIGUES ENTREVISTA

O POETA NATAN CAMPOS

 

 

Natan Campos (Natanilson Pereira Campos) nasceu em São Luís em 1972 e é formado em Letras pela Universidade Federal do Maranhão. Participou dos grupos literários Curare e Carranca na década de 90 e foi premiado no 36º Concurso Literário Cidade de São Luís. Tem publicado o livro de sonetos A Ilha Naufragada, o infantojuvenil O Bicho Palavreiro e o livro Viola de Sete Cordéis. Foi vencedor em 2023 do Prêmio Álvaro Maia de romance, pelo Cidade de Manaus, com A Besta de Três Costas.

 

 

 

  1. Paulo Rodrigues – Natan Campos, Luiz Felipe Cunha afirmou: “escrever é como subir no palco”. Você concorda? O que sente quando escreve?

Natan Campos – Para mim, muitas vezes escrever é como subir ao palco, principalmente quando se trata de texto em prosa, pois subir ao palco exige um preparo semelhante, pesquisa, laboratórios, conversas…. Que é do que me aproprio para fazer prosa. Mas em se tratando da minha rápida incursão pela poesia, o que senti foi algo bem diferente de subir ao palco. Mais parecia a relação de um santo com um cavalo, uma espécie de incorporação de outra entidade que de repente falava pela minha boca, escrevia pelas minhas mãos. Claro que para receber o santo (o cavalo deve estar de certa forma purificado), com as antenas acordadas. As leituras sempre deixam nossas antenas acordadas, “as antenas da raça”, como bem lembrou o poeta e ensaísta Antonio Aílton, em sua entrevista para essa mesma coluna, a definição de Ezra Pound sobre ser poeta. De vez em quando chega uma mensagem de além-marte. 

  1. Paulo Rodrigues – Pode nos contar os primeiros passos na leitura do escritor Natan Campos? A leitura é fundamental para a escrita?

Natan Campos – Sem dúvida. Da mesma forma como ouvir molda o nosso jeito de falar. Tive a sorte de ainda criança ter encontrado um exemplar de Os canhões do silêncio entre as coisas do meu pai. Na época, o texto não fazia muito sentido pra mim, mas me encantei pelo que há de lúdico nas imagens e na música do texto. Minha mãe era e ainda é uma grande leitora de cordéis. Mas a leitura de mundo também é essencial. É muito importante que se olhe pra tudo com os óculos do poeta, como um Miguilim. 

  1. Paulo Rodrigues – Em nossa última conversa, num almoço, em Bacabal, você reafirmava sua capacidade de fabricação do romance. Como convive o romancista e o poeta Natan Campos? 

Natan Campos – Hoje me dedico mais ao romance. Não me sento para escrever poemas, espero que a poesia me procure, caso eu mereça. Talvez por isso eu tenha escrito bem poucos poemas. Mas, é sério, hoje procuro incorporar a poesia na linguagem e imagética da minha prosa, na medida do possível. O romancista e o poeta se dão bem, mas o primeiro se dá mais. 

  1. Paulo Rodrigues – Qual a importância de conquistar prêmios literários? Os prêmios dão visibilidade para a obra? 

Natan Campos – Os grandes prêmios sim, a exemplo do Oceanos, do Prémio Leya, do Jabuti, do SESC de Literatura e o do Estado de São Paulo. Mas é muito relativo. A visibilidade depende de uma constância que deve durar bem mais que a divulgação de um prêmio e os dias de alaridos que a segue. Nos dias de hoje é fácil ter essa visibilidade sufocada com muita rapidez. Quanto à importância das premiações, sem dúvida são importantes, pelo reconhecimento e pela injeção de fôlego e entusiasmo que isso dá a quem escreve. Mas, no meio de tantos grandes talentos que participam dos concursos, sempre me fica uma sensação de injustiça com o segundo, o terceiro e demais colocados. Apesar dos critérios, às vezes bem rígidos, é tudo muito subjetivo. É bem possível que a substituição urgente de um jurado altere todo o resultado.

  1. Paulo Rodrigues – No livro A Ilha Naufragada, você buscou inspiração em Ferreira Gullar, Nauro Machado para louvar São Luís? 

Natan Campos – Neles, em Chagas, em Tribuzi… Em vários momentos eles aparecem no livro, numa epígrafe, numa dedicatória, num jogo de palavras. Deixar de se inspirar nesses grandes nomes, e até de citá-los, seria o mesmo que descrever um sobrado centenário de São Luís sem falar de seus azulejos. 

  1. Paulo Rodrigues – Comente sobre o romance infantojuvenil O Bicho Palavreiro.

Natan Campos – Foi a minha primeira experiência com esse gênero e confesso que fiquei bem reticente em dar continuidade ao projeto. Escrever para o público infantojuvenil pede uma outra sensibilidade que até então eu só tinha como leitor. Não fosse as personagens Valentina e Poliana exigirem de mim que continuasse, acho que teria adiado o projeto. O livro, como o título sugere, é um convite a que se adentre mais ao fundo no mundo da leitura. 

  1. Paulo Rodrigues – O escritor e membro da Academia Maranhense de Letras, José Neres, comentou na apresentação do livro Viola de Sete Cordéis: “Os cordéis de Natan Campos trazem dentro de si mesclas do erudito com o popular”. Você concorda com o mestre? Trabalha muito a linguagem quando escreve?

Natan Campos – Concordo. Para mim, que não sou por tradição um cordelista, foi muito difícil emular a todo tempo a linguagem mais popular comum aos cordéis, então eu tive que fazer essa quebra de paradigma forçada citando autores e obras, fatos históricos e outros dados que só uma formação mais clássica propiciaria. Espero não ter estragado o angu com o novo ingrediente. 

  1. Paulo Rodrigues – Quais são os novos projetos literários do Natan Campos? 

Natan Campos – Eu estou meio ferrado com essa história de projeto literário. Comecei a publicar muito tarde, em dois mil e dezoito, aos quarenta e seis anos, mas venho acumulando papéis e arquivos desde o início da década de noventa. Terei que viver pelo menos até os noventa e tantos anos de idade se quiser colocar em prática todos os projetos. Atualmente estou tentando dar corpo a um romance que surgiu da ideia de que minha mãe, depois de ter tido cinco filhos homens antes de mim, esperava que eu fosse uma menina. E me vestiu assim, como menina, até quase um ano e meio de idade para não perder o enxoval. Felizmente foram as fotografias que se perderam.

  1. Paulo Rodrigues – Deixe uma mensagem para os nossos leitores. 

Natan Campos – Mais do que nunca, o mundo precisa de pessoas com sensibilidade e coragem suficientes para deflagrar um grito de paz. Nós, leitores e escritores, temos as armas e as munições necessárias para isso. Não nos faltam também motivações justas para essa guerra um tanto desigual contra uma política que, para Vargas Llosa, “incorpora à ideia de cultura, como parte integral dela, a incultura, disfarçada (eu diria injustamente) com o nome de cultura popular. A literatura e outras formas de arte são essa munição que deve ser colocada nas mãos das crianças para sensibilizá-las contra o embrutecimento do ser humano regido por uma mídia vendilhona que ataca massivamente nossos olhos com uma nudez broxante e nossos ouvidos com músicas pornofônicas. Nós, leitores e escritores, temos que recrutar, treinar e armar nossas crianças. Por dizer melhor que eu, faço das palavras de Castro Alves as minhas

Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

 

 

 

 

OS POEMAS

 

 

 

III 

para Nauro Machado

 

O poeta preso ao seu cabo de guerra

resiste mais que a própria resistência e

sustenta sobre as pernas a existência

precária e dura de um guesa que erra

 

nos becos entre velhas residências

sem mapa-múndi de nenhuma terra;

no crânio sob o cenho ele encerra

dos ébrios deuses torpes a essência.

 

Com a mão que não se apoia no batente

agarra o próprio peito e de repente

parece que de si um monstro arranca.

 

…E vai, caminha, atravessa uma ponte,

e esguicha versos quando chega à fonte,

em vomições iguais às das carrancas.

 

VII

 

A tarde na dissecação mais lenta                     

da dura matéria de que me fiz                           

constrói na carne a morte sonolenta

de quem veio ao mundo em São Luís.

 

A mesma maré que a vida acalenta

em murmúrios submersos me diz

que uma noite há de ser tão violenta

ao ponto de naufragar São Luís.

 

E enquanto o tempo dura na cidade,

me resta tão só morrer de saudade

do que foi e já não é São Luís,

 

a tornar meu passeio mais difícil

por avenidas e entre os edifícios

de outra cidade erguida em São Luís.

 

XVII

  

Esta cidade me habita as entranhas

ao mesmo tempo em que habito as dela,

numa simbiose silenciosa e estranha

Que em me fazendo oculto se revela.

 

Esta cidade cabe em mim tamanha

é a solidão de quem nascido nela

perde no tempo a vida com que ganha

uma existência que os dias cancela.

 

Esta cidade naufraga em si mesma

igual a algum mineral avantesma

a deglutir o que é sua própria forma.

 

Esta cidade cresce além das margens

para já não caber na paisagem

de outra cidade em que se transforma.

 

XVIII

 

O homem que habita o velho matadouro

vai cabisbaixo, emudecido e gasto             

como se fosse ele mesmo o touro                                                                                  

de quem retira a prole, a carne, o pasto.  

 

Bebe do mesmo bestial bebedouro          

que o animal que de feroz a casto

leva marcada a servidão no couro

e ainda sonha um campo verde e vasto.

 

O homem à semelhança de um boi,

perdido da humanidade em que foi

concebido, rumina a própria vida

 

na maceração lenta e amarga

de quem carrega a descomunal carga

de ter a mesma morte com que lida.

 

XIX

 

O homem bovino pelas campinas

de um bairro em que vive o seu desterro,

como a enxergar o seu futuro enterro,

engole sua angústia e a rumina.

 

Vai, boi de corte, cumprir tua sina

de ser campeado pelos aterros

como a pagar pelo ancestral erro

de ter nascido em condição bovina.

 

Humano bezerro pelos currais

vagindo palavras que nada mais

pedem a Deus que a cura das feridas.

 

Vai, desmamado e perdido vitelo,

curvar teus joelhos sob um cutelo

na derradeira oração de tua vida.

 

XXII

 

Os homens bovinos nos matadouros

ruminam sonhando com campos vastos

de que lhes privaram de outros pastos

e trazem a marca servil nos couros.

 

Ruminam calados os dóceis touros

rações insalubres e os dias gastos,

sonhando ainda canaviais bastos

de sumo e bagaço em sóis vindouros.

 

Os homens bovinos pelos desmundos

vão marchando alheios à própria sorte

com passos incertos de moribundos.

 

Levanta e caminha, êh!, boi de corte,

por ruas do bairro, currais imundos,

pra ceia da festa da própria morte.

 

XXXIII

 

Espero na palavra o meu esteio

no curso do que em se fazer humano

como se a cometer um grave engano

se faz um homem dividido ao meio.

 

E agonizo na forma em que me creio,

invólucro de mil perdas e danos,

igual a quem sob o peso dos anos

está entranhado em si e de si alheio.

 

Espero na palavra o único arrimo

com que em me ser no mundo me redimo

de não caber no tempo em que me fiz,

 

o que da inconclusão de toda obra

é o que se fez, o que falta e o que sobra,

e o que também não cabe no que diz.                    

 

LXI

 

A tarde sangra pelo horizonte

e o rio é curvo como uma serpente

que sente sede de sua própria fonte

e talvez sinta do sangue da gente.

 

Quem viu do rio a boca não me conte

se a viu de perto e foi sobrevivente.

O rio engole o barco, o marco, a ponte

e as próprias margens se o mangue consente.

 

O rio sobe e bebe as palafitas

e as lágrimas o engordam de desditas,

e as mães clamam aos filhos “não me deixes”,

 

quando estes vão brincar nas fundas águas

e o rio desemboca suas mágoas

vingando a mortandade de seus peixes.

 

LXIII

 

para Antonio Aílton

 

Ainda que o meu nome fosse cristo

e um pai me desse a morrer numa cruz

pra só depois das trevas ter a luz

e um corpo celeste depois do cisto,

 

é nesta carne inglória que existo,

feita de esperma, sangue, riso e pus,

que o tempo a quase sombra já reduz

e que carrega um gene de um mefisto.

 

Mas mesmo sendo o inocente bode

que expia de outro a culpa e nada pode

além de ofertar-lhe um grosso escarro,

 

que ao menos este sangue seja o vinho

que encontre em minhas veias o caminho

das mãos que me refaçam de outro barro.

 

LXXI

 

Minha existência é um processo kafkiano

que pelos tribunais sujos se arrasta

com joelhos esfolados e as mãos gastas

e um roteiro feito só de enganos.

 

Passam-se horas, dias, meses, anos

e o meu humano empenho nunca basta

para merecer de um pai que se afasta

as bênçãos que curem da alma os danos.

 

A inútil causa dos dias me draga

e medra em meu corpo como uma praga

o medo de ter os pés sobre um vão,

 

que enquanto caminho nas ruas sinto

que me aprofundo em algum labirinto

em cujo centro eu morra como um cão.

 

LXXXIV

 

Eu quero me curvar, beijar teus pés,

tuas mãos, teus braços de ternura cheios;

e mais tresloucado que outros fiéis

lamber teus ombros e sugar teus seios.

 

Eu vou romper teus véus, ver quem tu és

por trás da imagem santa como eu creio,

e entrar em ti como nos meus anéis

pra te queimar nos fogos que ateio.            

 

Eu vou nos untar com os óleos santos

(de um sexy shop), te enfeitar de lírios,

macular os lençóis que eram teus mantos;

 

e mais devotado que as outras gentes

empunhar com fervor o aceso círio

pra derramar em ti seu choro quente.

 

 

*

 

 

Paulo Rodrigues –entrevistador – é poeta com diversos livros publicados, entre os quais A claridade da genteCinêlândia e Cordilheira (em pré-venda pela Patuá), e importantes premiações.