PAULO RODRIGUES ENTREVISTA O AUTOR DE OUTONO DE CARNE ESTRANHA (PRÊMIO SESC/2023), POETA AIRTON SOUZA
Airton Souza é escritor e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor da educação básica. Autor de Outono de carne estranha (Record, 2023), que venceu o Prêmio Sesc de Literatura e foi finalista do Prêmio Oceanos 2024 e Prêmio São Paulo de Literatura 2024. Com o livro Horóscopo de batizar brumas contra a solidão das asas venceu o Prêmio Cidade de Manaus e seu romance Fedor da carne de deus venceu o Prêmio FCP de Literatura, promovido pela Fundação Cultural do Pará.
1. Paulo Rodrigues – Poeta Airton Souza, você declarou em entrevistas pelo Brasil que se transformou em leitor tardiamente. Esse fato criou dificuldades para sua carreira de escritor?
Airton Souza – A pobreza é a pior coisa que existe nesse país. Ela nos priva de quase tudo. Vindo da extrema pobreza eu me vi, assim como vi todos os meus parentes, privados das coisas mais básicas e que, minimente, nos concederia a oportunidade de nos sentimos humanamente humanos, como escreveu Nietzsche. Foi a pobreza que me privou de poder ter tido acesso a leitura, aos universos que somente os livros e as palavras são capazes de criar. Por isso, não tenho nenhuma dúvida que ao me tornar um leitor tardio e um escritor prematuro, o que deveria ser o inverso, vi o trabalho com as literaturas trilhar um caminho mais dolorido. Não só imaginativa, mas corporal mesmo. Isso é tão cruel que é até difícil explicar em palavras.
2. Paulo Rodrigues – Você é um autor muito premiado. O prêmio SESC de romance 2023 deu uma nova dimensão par sua carreira? Como foi andar pelo país falando deste romance badalado?
Airton Souza – Na verdade eu achava que já tinha ido longe demais com as literaturas. Eram quase 50 livros publicados, vários prêmios e muitos projetos ligados ao livro e a leitura, somados mais de 20 anos de história lidado diariamente com isso. Tudo isso me levou a acreditar que eu já tinha ido muito longe. Mas, ai veio o Prêmio Sesc, conquistado pelo romance Outono de carne estranha e vi portas que julgava nem existirem serem abertas. De certa forma o Prêmio ajudou a mostrar um pouco o que eu vinha construindo nos últimos 20 anos com a palavra e deu-me a oportunidade também de falar da minha experiência pessoal, através do Circuito do prêmio. Em parte, o circuito nos ajudou a mostrar um pouco daquilo que Achugar chama de país sem boca, daquilo que foi, historicamente, silenciado, que é a região Norte, as Amazônias. E, as viagens do circuito causaram grandes impactos na vida das pessoas que participaram, e também aguçaram a curiosidade sobre essa parte esquecida, propositalmente, do Brasil. Embora, não foi apenas isso também. Essas viagens contribuíram para realimentar o meu imaginário, constituindo em mim outras geografias sentimentais.
3. Paulo Rodrigues – O Marechal, que representa a força do Estado, diz no romance Outono de Carne Estranha: “A vida é só um caminho para a morte.” É isso mesmo, Airton?
Airton Souza – Para os bárbaros, os torturadores sim, como o Marechal. A vida se resume basicamente a isso. A mostra de força entre viver e morrer. Não à toa em Grande Sertão: veredas, uma das falas mais emblemáticas e que se repete é viver é perigoso. Essa A vida é só um caminho para a morte é a máxima que tenta, a qualquer custo, nos manter mergulhados na extrema pobreza. Nos aparta dos sentidos e sentimentos de humanidade. Contudo, as literaturas estão aí para tentar nos mostrar que a vida é mais que isso. Que a vida pode, assim como a flor drummondiana romper um asfalto, ser também de afetos. Como eu passei muitos anos mergulhado na extrema pobreza juntamente com os meus parentes tinha uma outra coisa que nos mobilizava a acreditar que a vida podia ser mais que um caminho para morte, que eram os sonhos. Foram eles que alimentaram os nossos dias tristes e são eles que me mantiveram de pé até aqui.
4. Paulo Rodrigues – O ensaísta Fábio Pessanha afirmou: “Há intervenções poéticas em Outono de Carne Estranha”. Há mesmo? Como você consegue trabalhar as imagens semióticas da poesia quando está produzindo o romance?
Airton Souza – Há muitas intervenções poéticas, coisa que deve ter causados diversas sensações nas pessoas que leram o Outono de carne estranha. Sensações de várias naturezas, acredito eu, inclusive de repulsa (risos), porque, em parte, nas literaturas brasileiras se convencionou a fazer determinadas divisões que, de alguma forma, prejudica a criação literária. Mas, como que vinha basicamente da experiência de mais de 20 anos lidando com a poesia, não tive como me desvencilhar dessa linguagem para escrever uma prosa pura, naquilo que se convencionou a pensar o que de fato é uma prosa, uma narrativa. Embora, isso não seja nada de novo ou revolucionário. E, todas as vezes que vejo alguém questionar a poética do livro, de imediato penso no incomodo que é poder ler um livro como aquele escrito (por alguém que vem de onde eu vim), isso também explica a repulsa, por mais que queiram negar. Mas, também como o romance traz uma história de barbárie a poética dentro do livro faz parte de um duplo jogo de sentido, contrabalanceando o horror, ou pelo menos tentando isso. Portanto, a linguagem poética está atrelada a essas condições, tanto de estética quanto da experiência que eu tive com a poesia como leitor e como escritor.
5. Paulo Rodrigues – Airton, o jornal Folha de São Paulo destacou numa matéria que o romance Outono de carne estranha sofreu censura. Aconteceu isso mesmo? Outros autores foram censurados no Brasil. Como você avalia a questão do livro nesta quadra histórica?
Airton Souza – Esse foi mais um dos episódios tristes que eu enfrentei ligado ao livro e as literaturas. Foi um momento de verdadeira incompreensão para mim, sobretudo ver o rompimento de uma parceria entre o Sesc e a Editora Record de mais de 20 anos sendo rompida motivada por esse episódio. Mas, enfim, isso já foi superado de minha parte. Sobre a questão da censura, eu sempre a vejo como ato político, como sempre foi no mundo inteiro. É a simbiose em torno do poder, do fundamentalismo e do extremismo que vêm cada vez mais avançando no mundo. Por isso, não há como pensar, antes de tudo, a censura como ato político. Em vários casos no país também está ligada a questão primordial de quem está escrevendo. Com a expansão das universidades públicas no país homens e mulheres pobres começaram a ter acesso ao processo de letramento que só os burgueses sempre tiveram e, com isso, começaram a usar a escrita de fato e de direito como ferramenta, mas isso causou e vem causando aquilo que a impressa, a grosso modo, denomina de incômodo. Nós que viemos da extrema pobreza, que vivemos a experiência de nossos pais sendo lavradores, empregadas domésticas, desempregados, autônomos, entre outros, começamos a escrever, e os burgueses acostumados a dominar o mundo da escrita não gostaram de ver que nós também sabíamos narrar, inclusive, contando as histórias que eles jamais contariam, porque eram justamente as histórias que eles esconderam e silenciaram por quase 400 anos nesses país.
6. Paulo Rodrigues – Henrique Rodrigues foi demitido após a leitura de alguns trechos do romance Outono de Carne Estranha na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Estamos falando sobre um romance gay ou um romance sobre o Brasil profundo?
Airton Souza – Nesses últimos anos eu venho pensando muito sobre o que significa esse conceito ou essa ideia de Brasil Profundo. Embora o que eu venho pensando sobre isso não tem muito a ver com o que vem sendo entendido ou pelos menos a pretensão de entendimento do que venha a ser o chamado Brasil Profundo. Por isso, o que tenho imaginado é um pouco polêmico, por que não seria esse conceito ou essa ideia mais uma maneira de mascará ou de enquadra as literaturas? Não seria essa mais uma daquelas tentativas de menosprezar narrativas importantes sobre a história do país? Por isso, essa desconfiança. Porém, Outono de carne estranha é uma narrativa que traz à tona uma história que é parte de nossa história. É um romance sobre feridas abertas. Mas, essas feridas foram cavadas em nós e elas continuam doendo. E os algozes que as cavaram nunca tentaram sarar, apenas nos amordaçar. E isso, tem a ver com os modos de violências perpetrados no Brasil. Com a maneira com que se olha para as Amazônias. Com a cobiça em torno dos territórios. Com a forma em que cada pessoa nas geografias amazônicas são compreendidas, em grande parte, apenas como força de trabalho. Eu diria que Outono de carne estranha é mais sobre nós do que propriamente qualquer outra coisa.
7. Paulo Rodrigues – Vamos caminhar para o final. O leitor quer saber como funciona o processo criativo do escritor Airton Souza?
Airton Souza – Na verdade eu fui criado para ser um trabalhador braçal, com no máximo o ensino médio concluído. Mas eu rompi essa lógica e fui além, somando esforço com as políticas públicas implantadas no Brasil com o Governo Lula e Dilma Rousseff. Isso favoreceu o meu letramento. Mas, o meu processo de escrita é o mais caótico possível, eu não tenho tempo de escrever. Não tenho um lugar em minha casa destinado a ser o meu canto para escrever. Não tenho escritório e nem mesa, então eu tenho escrito nos mais diversos lugares, utilizando, inclusive o celular para isso. Para você ter uma ideia tanto Outono de carne estranha como Fedor da carne de deus foram escritos em um celular. Esse último iniciado a partir de uma simples frase que julguei ouvir meu pai dizer dias depois de sua morte, enquanto eu dormia.
8. Paulo Rodrigues – Airton Sousa, vem produção nova em 2025? Quais são os novos projetos literários?
Airton Souza – Nesse momento estou reescrevendo o romance Fedor da carne de deus, com o objetivo de poder lançar esse ano, no segundo semestre. É um mergulho sobre como a pobreza e outros modos de violência define vidas, mas também como os afetos, a coragem e as esperanças podem nos conduzir aquilo que Mohamed escreve em A mais recôndita memória dos homens, que é a possibilidade de sermos para sempre irracionalmente felizes.
9 Paulo Rodrigues – Deixe uma mensagem para os nossos leitores.
Airton Souza – É preciso continuar acreditando no poder dos livros, da leitura e das literaturas. Acreditar que cada livro move o mundo, assim como nos move. E essa movência será sempre contra as barbáries!
Trecho do romance Outono de Carne Estranha,
de Airton Souza
A dor do cu de Zuza ao léu, crescente feito uma centopeia úmida. Com o corpo agoniado, ele sentiu vontade de balançar as mãos como se aquele gesto o ajudasse a amenizar um pouco aquela ardência. Sem saber exatamente por que a agonia provocada pela dor o fez lembrar imediatamente a vó, de cócoras, depenando o pescoço de um galo para degolá-lo. A lâmina da faca dilatando a extensão de qualquer ânsia. Zuza parecia enxergar perfeitamente os peitos moles da velha topando nas bolas dos joelhos. Nos olhos dele, a imagem da mulher. Da faca. Do galo. E do quintal cada vez mais diminuto reacendia as últimas sílabas proferidas na novena dedicada a santa bárbara. A velha, com o corpo totalmente curvado, aparentava ser o caminho que levaria qualquer borboleta a entender o que são dunas tristes. Com a metade do corpo fora da janela, era como se Zuza fizesse um esforço mental para comparar a ardência que sentia por dentro com a dor que o galo sentiria quando sua vó atravessasse, de um lado a outro, a faca no pescoço dele. “É pra fazer no molho pardo”, a velha diria, sem remorso, enquanto esfregava a faca na lima. As asas dobradas por debaixo de um dos pés da mulher. O pescoço despenado. A crista ainda mais vermelha. “O que pode fazer um salmo a favor de uma dor no cu?”
Aos poucos, a dormência foi tornando minúscula a única lembrança que Zuza nutria de cristo. Se soubesse ajoelhar de maneira menos triste e sem odiar ninguém, ele rezaria, de uma só vez, as três rezas que sua vó sabia de cor. Porém, a dor o impediu de preencher o peito de perdão, embora tivesse certeza de que aquilo seria somente um incômodo passageiro. Sentiu desvanecer um pouco o forte cheiro de terra molhada grudado nas palhas do barraco.
Ao voltar a olhar as pernas enlameadas, Zuza pôs-se a rir baixinho. Quando parou de sorrir, deixou a boca entreaberta, a língua meio curvada. Sem querer, voltou a sentir o gosto quase de lodo emanar entre seus dentes. Ali mesmo, decidiu juntar as mãos, ambas espalmadas, na frente do rosto. Fechou os olhos como se quisesse ensaiar uma pequena reza, às pressas, mas pensou no que significaria uma pequena reza feita por um gay com o corpo fatigado. Manteve-se incrédulo, os olhos fechados. A garganta seca. Então disse: “Deus, semeia em meu corpo a misericórdia da palavra horizonte. Faz nascer nas mãos dos bárbaros a fome dos jardins, amém.”
Zuza passou a escutar murmúrios e o arrastar de pés se aproximando de seu barraco, ao mesmo tempo que sentia o cheiro forte de melechete e mercúrio. Eram os garimpeiros caminhando na direção da cava. Inconsolável, afastou-se rapidamente de onde estava. Inquieto, cruzou e descruzou os braços. Cerca de dois metros longe da janela, voltou a passar uma das mãos na barriga. Fez repetidos movimentos circulares por cima do umbigo. Ao longe ouviu a voz de sua vó, feito névoa, dizer que era preciso tomar leite de magnésio para o menino nascer branco. Pelo menos uns cinco litros antes do nono mês. A vó tinha mania de receitar isso para as mulheres buchudas. Ela mesma tomou magnésio quando estava prenha e nenhum de seus meninos nasceu branco. Outra vez naquele dia, voltou a sentir vontade de ter embuchado de outro macho. Queria ver sua barriga toda cheia com um menino dentro dela. Uma das coisas de que tinha certeza era que, se isso acontecesse, ele não tomaria nenhuma colher de magnésio.
Manteve a cabeça erguida. Depois, meneou-a levemente diante daquela ideia louca de parir um menino. Gerar em seu bucho a carne inteira de um corpo alheio. De onde estava, olhou, de maneira obtusa, na direção da janela aberta.
A intensidade do clarão vindo da rua irritou, momentaneamente, suas retinas. O barulho dos pés dos garimpeiros cada vez mais perto o deixou incrédulo. Sentindo o lameiro endurecido em suas pernas, pensou em voltar a cuspir entre as poças de lama dentro do buraco, mesmo tendo certeza de que aquilo nunca seria suficiente para matar todas as angústias abraçadas ao peito de deus, ou mesmo toda a vilania dentro dos olhos do marechal. “Parece que é a cor daqueles olhos que oculta a verdade.” Foi o que pensou.
Poemas
in memoriam de meu irmão Júlio Cesar
tombado ao léu do tombadilho
o corpo
[ nau sem porto ]
é quilha entediada de enredos
redobrando ecos
agora és fenda na senda
tuas fibras imersas na rua da renda
são outros dias de teu ser fechado
quantas sílabas sonoras
explicarão esse exílio?
colhe o irremediável
conduz teu barco
no rebento de vogais
e consoantes consonantais
risca o abismo
& não aporte na infância
aquela bandeira de possíveis horizontes
conduzida nos peraus de outrora.
Para o poeta Carvalho Junior
asas crescem ao longe
medram o norte
[ geografia celeste de ilusões e carvalhos ]
nesse chão:
crava tua sombra
ceifa tuas dores
escreve teus fevereiros
nas paredes que respiram bordas
mesmo que chova
leva contigo o invisível
branco de outras páginas e palavras
porque não te resta nada
a não ser poesia estendida
no estopim confessional
de flores & ausências.
III
Para o poeta Ademir Braz onde estiver
a asa de ícaro fareja o nome relva
faz amanhecer dentro do coração
muros, carne e o equilíbrio da angústia
como quem separa a infância das estrelas
ou pincela nas unhas a terra campesina
necessária para florescer ruínas
na garganta solitário dos latifundiários
da disforme asa de ícaro
emerge o cheiro enlevado pelos nomes retilíneos
dos penhascos, dos quaradouros e do inverno
que abraçam os que morrem, inocentemente,
enredando-se de deus, pântano e quintais
dos que estão incrustados de pirilampos e insônia
& amanhã saberão alimentar pedras e umbrais
hoje ícaro sabe que os latifundiários
nunca aprenderão o exato sentido das rezas
porque eles sonham, incessantemente, com muros, carne
e o equilíbrio solitário da angústia
enquanto a terra campesina e seu equador
transmutam-se em cais, nuvens e amor.
*
Paulo Rodrigues é poeta com diversos livros publicados, entre os quais A claridade da gente, Cinêlândia e Cordilheira (em pré-venda pela Patuá), e importantes premiações.
Airton Souza é um dos grandes escritores do Brasil, na atualidade.
Airton Souza quando o conheci há alguns anos em Caxias, por intermédio de Carvalho Junior, achei que fosse um cara calado de poucas palavras. Mas com o tempo fomos cultivando a amizade e pude conhecer o verdadeiro poeta, sua história de vida e sua dedicação com as literaturas. Cheguei certa vez, em um de nossos encontros por aí, divulgando poesia para as pessoas, como ele escrevia tanto? Respondeu-me que arranjava pela madrugada. Cada prêmio que ganhava, de certa forma era uma vitória nossa, porque acreditava e acredito no seu potencial. Outono da carne estranha é grande parte carne da poética que Airton carrega havia tempos, um poeta com uma poética lírica e seca, mas altamente humana. Vais mais longe, meu irmão, porque levas na consciência o efeito de ser e viver a poesia.
O confrade poeta escritor é bastante desprendido, e ousou escrever um romance que muitos escritores brasileiros gostariam de escrever. Mas o fato do nosso país ainda ser carregado de preconceitos, a impafia da intelectualidade, assim também como o doutoramento de muitos e as origens burguesas da educação ocidental impedem de ser despojados como o ilustre autor da obra em análise. Ele teve o desejo e coragem de revelar fatos do cotidiano do trabalhador pobre amazônico, das minas e similares através da escrita. Fatos estes acontecem nas entranhas da nossa cultura e lugares em todo Brasil, na zona rural, nas cidades, nas metrópoles, nos becos e nos guetos do mundo, não somente nos garimpos, como exemplo no de Serra Pelada nos anos 70. Parabéns pela entrevista ao Paulo Rodrigues e ao autor Airton Souza.