Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Poeta Félix Alberto Lima - foto: divulgação

O poeta FÉLIX ALBERTO LIMA entrevistado por PAULO RODRIGUES

  

Quem sabe a poesia sirva para lembrar que há um lado inútil da vida que é indispensável, extraordinário. É esse lado inútil, quase invisível e descartável na velocidade dos dias, que interessa ao poeta. Não creio que a poesia vá salvar o mundo, mas talvez ela ajude a suportá-lo, a enxergá-lo por uma luneta mais imaginativa.”

[Félix Alberto Lima]

 

Félix Alberto Lima, poeta  e jornalista- foto: divulgação

 

 

Félix Alberto Lima, poeta e jornalista, nascido em Presidente Dutra (MA), é membro da Academia Maranhense de Letras e autor de Guajá, a odisseia dos últimos nômades, Almanaque Guarnicê, O que me importa agora tanto, Um pouco mais de mil palavras, Maio oito meia, Filarmônica para fones de ouvido, Nas profundezas desses olhos rasos, Destempo agora e A curva dos Noventa.

 

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  1. Paulo Rodrigues – Félix Alberto, o Fernando Pessoa disse: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. O poeta só finge? Ou é um criador de outros mundos? 

Félix Alberto – Fernando Pessoa é um poeta imenso que não apenas escreveu a sua obra com outras vozes; ele mesmo era essa persona de múltiplas vozes. Poesia é subjetividade. E talvez por isso ela carrega por aí essa casca mística do fingimento alardeado por Pessoa. Algo de muito cômodo e até altruísta para qualquer poeta. Aprendemos a lidar com isso. Não é que o poeta, quando escreve, deixa de ser ele mesmo. Mas ele mascara um pouco a realidade. Inventa uma realidade só dele. É como um artista que pinta uma tela, que dá cores à imaginação. Aquilo só é real na cabeça dele. Então o poeta só finge? E há quem finja ser poeta? Melhor desconfiar de tudo. Porque, no fundo, somos todos fingidores, por alguma circunstância: distração, culpa, intuição, ciúme, resignação, medo, solidão… O leitor é também um fingidor. Finge pra si mesmo que conseguiu encontrar o fio da meada no poema. Mas, na maioria das vezes, mal bate na trave. Às vezes há pistas falsas nas imagens do poeta. E sobre criar outros mundos, admiro quem seja capaz de chegar a tanto. Prefiro mirar os desassossegos deste nosso mundo aqui – o que já não é pouca coisa. 

 

  1. Paulo Rodrigues – Você é poeta, jornalista, compositor, ou seja, é um homem dedicado ao campo das Letras. Como a poesia chegou na sua vida? 

Félix Alberto – Sempre gostei mais de música que de poesia. De canções com poesia na letra e na melodia. Ouvir música é hábito antigo que adquiri dentro de casa, com meus pais e meus irmãos. A música me acompanha desde muito cedo. Achei, em certo momento, que poderia ser músico. Mas não deu certo. Não levo jeito. Então busquei enveredar pela escrita jornalística cada vez mais leve, menos presa à técnica dos manuais de redação. Isso fez com que, sem que me programasse para isso, meu texto se aproximasse da música, da poesia. Percebi que algumas crônicas cantavam, ainda que baixinho. Daí comecei a escrever letras de músicas e fui exercitando essa prática do verso, do malabarismo com as palavras. Quando me dei conta, a poesia já fazia folia em minha vida há algum tempo. O desafio então era me expor como poeta. Me guardei um pouco. E acho que ainda hoje me guardo, por entender que ainda não sou um poeta. Mas parei de me preocupar com isso, de acobertar os meus escritos e dei a eles asas. Pode até ser poesia. Pode ser a continuação da crônica, agora mais experimental. Pode não ser.

 

  1. Paulo Rodrigues – Félix Alberto, e o jornalismo na sua vida, o que significa?

 Félix Alberto – O jornalismo foi e continua sendo uma grande escola na minha vida, a primeira escola da palavra. Do pouco que sei, aprendi com os livros, com o ensinamento dos mais experientes e com a vivência na redação de jornal, na matéria-prima da notícia. Foi no jornalismo que aprendi a ouvir o mundo, a decifrar as entrelinhas, a dar forma à linguagem. Antes de qualquer ambição literária, fui atravessado pela urgência da notícia, pelo compromisso com os fatos e, ao mesmo tempo, pela consciência de que toda narrativa é uma escolha, um ponto de vista. Optei por um jornalismo mais narrativo e aos poucos fui me familiarizando com a ideia de contar histórias, de captar o lado humano em cada contexto narrado. Ainda hoje escrevo tentando manter essa toada. O desafio permanente é a concisão. E aí, quando chego mais perto dessa concisão, alcanço de viés a poesia.

 

A curva dos 90venta, Félix Alberto Lima, 2023

 

  1. Paulo Rodrigues – O Carlos Drummond de Andrade repetia em algumas entrevistas: “Eu releio muito. Perdi o interesse pela literatura nova”. Você tem interesse pela literatura contemporânea brasileira? E pela literatura contemporânea do Maranhão?

 Félix Alberto – É compreensível a declaração de Drummond. A releitura é um retorno àquilo que nos dá a chave do conhecimento inaugural. E certos livros não envelhecem nunca. Mas, ao contrário do poeta, não perdi o interesse pela literatura nova. Pelo contrário. Estou sempre buscando coisas novas, linguagens que dialogam com a contemporaneidade.  Me interessa observar como novos autores, brasileiros ou estrangeiros, estão quebrando formas, alargando temas, misturando vozes e rompendo modelos que antes pareciam fixos. Isso vai da poesia ao romance, passando pela autoficção. Vejo com atenção e entusiasmo os movimentos literários recentes que vêm da periferia, das mulheres, das juventudes negras, indígenas, LGBTQIA+. Enxergo no Maranhão uma literatura que floresce, especialmente no campo da poesia, com alguns excelentes autores de fôlego aguçado alcançando visibilidade no círculo literário nacional. Temos bons poetas e, se procurar com atenção, também potenciais ficcionistas. Releio, sim. Mas quero saber pra onde a literatura está caminhando agora.

 

  1. Paulo Rodrigues – Para que serve a poesia nesta quadra histórica?

Félix Alberto – Tentar entender a utilidade da poesia em tempos tão turbulentos é algo complexo demais. Poesia pra quê e pra quem? É o que se passa pela cabeça de muita gente, principalmente pela cabeça de pessoas que perdem um tempo precioso da vida alimentando os discursos do ócio e do ódio. Confesso que não tenho a mínima ideia da utilidade da poesia. E talvez por isso ela me interesse tanto. Tudo o que tem utilidade demais acaba virando manual de instrução. Não há bula. Não há fórmula. Quem sabe a poesia sirva para lembrar que há um lado inútil da vida que é indispensável, extraordinário. É esse lado inútil, quase invisível e descartável na velocidade dos dias, que interessa ao poeta. Não creio que a poesia vá salvar o mundo, mas talvez ela ajude a suportá-lo, a enxergá-lo por uma luneta mais imaginativa. Acho que a poesia, no fundo, não serve a ninguém. Mas há uma malta de sobreviventes que, como nós que aqui estamos, se serve dela noite e dia.

 

  1. Paulo Rodrigues – Fale um pouco sobre o livro “O que me importa agora tanto” para os nossos leitores. Ele conversa com “Filarmônica para fones de ouvido”? 

Félix Alberto – “O que me importante agora tanto” foi o meu livro de estreia, em 2015. Era o meu cartão de embarque no terreno movediço da poesia. Um livro inaugural, despretensioso, escrito com a simplicidade e a objetividade de quem pede licença para chegar. São poemas curtos que evocam um pouco essa linguagem instantânea dos nossos dias. E essa objetividade flerta abertamente com a poesia marginal, sem qualquer pudor, embora entenda que isso não chega a dar ao livro uma estampa datada. Ele tem um certo cheiro da tinta do mimeógrafo, é verdade, mas no conjunto traz também o frescor da poesia contemporânea. Não creio que “O que me importa agora tanto” dialogue com “Filarmônica para fones de ouvido”. Este meu segundo livro já é um tanto discursivo, mais subjetivo, sem qualquer preocupação com o agora, com estilo, refinamento ou escolas de poesia. É um conjunto mais solto de poemas, que se integram na cadência lírica, na musicalidade. Uma virada na chave do poema, sem aquela preocupação de seduzir o leitor. A poesia é só. É o que importa.

 

Maio oito e meia, Félix Alberto Lima, 2017
  1. Paulo Rodrigues – Na obra “Nas profundezes desses olhos rasos”, está estampado: “O poema não é o que você lê”. É o que então, poeta? 

Félix Alberto – “Nas profundezas desses olhos rasos” foi um livro publicado pela Editora 7Letras em 2020, que fora engolido pela pandemia, sem que tenha havido um lançamento sequer.  É um livro que traz a mesma dicção de “Filarmônica para fones de ouvido”, com uma poesia ainda mais arejada. Apesar do delicado período da publicação, não tenho mais um único exemplar comigo. Há uma reedição em curso. Acredito que tenha circulado bem entre os amigos. Quanto ao que está estampado no verso “O poema não é o que você lê”, é menos um aviso e mais um desvio. O poema, pra mim, é aquilo que escapa à leitura literal. O que está impresso é só a casca, a superfície; o poema pode ser aquilo que pulsa por trás, entre um silêncio e um sobressalto. Vivemos num tempo em que se exige clareza imediata. O poema, ao contrário, exige um outro tipo de presença: aquela que desacelera, que escuta o que não é dito, que percebe o estremecimento sutil de uma imagem, de uma palavra deslocada. O verso dá a entender que o poema não se deixa consumir numa leitura apressada. O poema está no que se vive a partir da leitura. E essa leitura mais ao fundo, numa época entorpecida pela velocidade e pela literalidade, talvez seja uma atitude subversiva. 

 

  1. Paulo Rodrigues – Félix, no poema ODE AO MUNDO LÁ FORA, temos: “se fosse solidão/ eu saberia/ mas no fundo/ é só uma casa/ dentro de mim/ vazia/ de tanta multidão”. Não é solidão o que o homem sente na pós-modernidade? Pode explicar para nós? 

Félix Alberto – Talvez seja mais fácil criar o poema que tentar explicá-lo, entendê-lo. Quando nos esforçamos demais para explicar o poema, despencamos no chão pedregoso da ciência, filosofia, da psicologia. E cada um de nós pode interpretar livremente o poema depois de publicado, à revelia do poeta. Mas vamos lá. Estamos extremamente conectados, mas rarefeitos. Cercados de vozes e imagens, e ainda assim com a sensação térmica de estarmos sós dentro de uma casa interna, como diz o poema, “vazia de tanta multidão”. O verso nasce dessa contradição: não é a ausência de gente que nos fere, mas o excesso de presenças que não nos dizem nada. É a multidão que atravessa o corpo sem deixar vestígio. Não se trata, portanto, da solidão clássica, melancólica, que os poetas românticos cultivavam como paisagem da alma, como matéria-prima. É uma solidão habitada, congestionada, paradoxal. Gregária. Estamos tão distraídos de nós mesmos que confundimos presença com proximidade. O poema tenta nomear esse vazio saturado, a sensação de exílio dentro do próprio peito. 

 

  1. Paulo Rodrigues – Eu pergunto. Seco como um tiro. Qual é o poema preferido do Félix Alberto? Por quê? 

Félix Alberto – Há poemas que nos marcam mais que outros, e por isso mesmo acabam ficando entre os preferidos. Tenho uma queda pelo poema “Hoje não é todo dia”: uma página em branco/ é tudo o que tenho agora/ sou de lua/ e até procurei a palavra mais quente/ nessa constelação de hipóteses/ seria um risco apenas/ já nasci antigo/ sem meta/ e não é todo dia que estou pra poesia/ pode ser um truque/ mas hoje não há nada na cartola/ além do coelho esquálido/ e um rinoceronte/ sem dentes. O poema fala da página em branco, que é a realidade do poeta às vezes em busca da palavra mais envolvente, mais quente. Mas há dias em que o poeta não está mesmo pra nada, nem pra poesia. Ele não é mágico, não consegue tirar um coelho da cartola no horário de expediente. Mas eu poderia ser mais literal ao responder à tua pergunta, “seca como um tiro”: todo homem com uma arma na mão/ é um infausto que não aprendeu a amar/ e confia como um tolo na execução sumária/ do argumento antes de se arrepender./ todo homem com uma arma na mão/ é um inurbano sentado no banco de igreja/ pedindo perdão a deus aos domingos pelo credo que alimenta o ressentimento./ todo homem com uma arma na mão/ é um poltrão que ao tirar a vida de outro homem/ em verdade mal sabe que foi ele/ – maldito homem com uma arma na mão –/ o primeiro a morrer. 

 

 

  1. Paulo Rodrigues – Quais são os novos projetos literários do poeta Félix Alberto? 

Félix Alberto – Acabei de enviar pra Editora 7Letras os originais do meu novo de livro de poesia, “Com o coração na boca”, que deve sair até setembro deste ano. Esse trabalho fecha uma trilogia que nasceu ao acaso, inicialmente com o “Filarmônica para fones de ouvido” e depois com “Nas profundezas desses olhos rasos”. Não foi algo planejado, mas quando me dei conta, estava montando um mosaico parcial dos sentidos. E poesia é também o sentido. Da vida. Das pessoas. Das coisas em volta. Os três livros têm uma certa amarração lírica, sem disciplina ou didatismo. O fio condutor é algo de muito frugal, quase imperceptível. “Com o coração na boca” não é uma repetição dos livros anteriores. Tem voz própria. Tem uma musicalidade renitente. Não tenho ainda nenhuma ideia de lançamento, quando ou onde.   

 

  1. Paulo Rodrigues – Encerrando, deixe uma mensagem para os nossos leitores e leitoras. 

Félix Alberto – Acho que há uma mensagem necessária que compartilhamos todos os dias: escrever é um exercício sem atalho. Não há mapa ou método infalível. A palavra, quando ensaia ser poema, exige escuta, insistência, vício. O poema às vezes nos impõe a própria desconstrução da palavra. E isso requer uma entrega silenciosa ao trabalho de burilar o que às vezes sequer sabemos dar nome. Poesia não é um bicho de sete cabeças, mas também não é uma ave mansa. Tem seus caprichos, suas esquivas, suas exigências. Pede leitura, convivência, tempo. Pede troca. Tenho aprendido muito na escuta de outros poetas (Adriana Gama de Araújo, Eduardo Júlio, Fernando Abreu, Luís Inácio Costa) nos grupos de leitura, nos pequenos saraus onde o verso é dito em voz alta e ganha corpo, ritmo, respiração. É nessa partilha fraterna que a poesia se expande. Ainda estou aprendendo. A cada encontro do grupo, saímos de lá com a sensação de que o poema não se escreve sozinho, nem se lê sozinho. 

 

Destempo agora, Félix Alberto Lima, 2024

 

 

POEMAS

de Félix Alberto Lima

 

 

QUINTAL DAS FLORES

 

o poema não é o que você lê

não é a palavra polida e âmbar

pinçada no labirinto do dicionário

ou a métrica perfeita como se a lírica

fosse mera combinação matemática.

 

o poema não é o que você vê

não é a camisa listrada

o buquê de begônia sobre o verso

ou o saveiro singrando a aurora

de um pescador sem terço ou romã.

 

o poema não é nada

nas mãos de um homem

que mal ouve as queixas de um antúrio

e quando ouve

– pobre homem!

não sabe o que fazer.

 

 

VESTÍGIOS

 

se puder

ouça o bramido das palavras

elas perecem na escuridão

e são como o sol

que no horizonte de uma tarde sem cor

não tem onde cair morto

 

 

DESCALÇOS NO ÚLTIMO VAGÃO

 

vem comigo

vamos correr mundo

invadir os becos

cultivar as sobras

o refugo das palavras

que os sábios abandonam

na periferia

 

vamos remexer no lixo

nos monturos baixos

sob as galerias

pelos matadouros

e feito lazarentos

mendigar às portas

pratos de poesia

 

 

CORES DE UM ITINERÁRIO

 

tomo meu café

enquanto escrevo frases

e alguém na minha pele

que não sei quem é

passeia por entre cerejeiras no parque

como quem saiu pra alimentar o cão

 

e as frases vão caindo como flores

ganem feito loucas

são agora versos no papel

até virarem pão

 

 

TROVA EM CARMIM

 

há um musgo que cresce

desembuçado e ermo

na fina pele do poema

não sei se quer abrigo

ou se assim verdinho

quase limo

quer encobrir

esse vermelho amargo

que não vale a pena

enquanto escrevo

 

 

NO OCO DA PORTA

 

o olho mágico há dias

não vê teus passos

e derrama queixas pelo corredor

 

 

UM VERMELHO SOL

 

o bem-te-vi canta

e canta alto para chamar minha atenção

não lhe dou ouvidos

não reparo no topete amarelo

na sobrancelha branca

no mergulho raso e folgazão

continuo lendo os trovadores na varanda

ele insiste bailando como um louco

sobre a jabuticabeira

eu desisto e então cantamos juntos

             arrebatados

qualquer canção de escárnio

                       naquele crepúsculo da vida

 

 

ODE AO MUNDO LÁ FORA

 

se fosse solidão

eu saberia

mas no fundo

é só uma casa

dentro de mim

vazia

de tanta multidão

 

 

QUANDO ENFIM ELA CHEGOU

 

morri ontem às duas horas da tarde

mas era noite

não houve outro jeito

estrebuchei

antes de perder a alma

enquanto ela concupiscente impiedosa

rastejava em meus lábios

feito musgo em pedra quente

mas era noite

e fomos em vida sem versos

filhos da mesma malta

vampiros degenerados

com bolsas de sangue entre os dentes

 

 

A CÂMERA OBSCURA (DO ALZHEIMER)

 

o tempo se esvai

como aquele abraço

que jamais foi dado

o beijo que faltou

a senha que assanha

a lágrima

 

teu corpo agora

estúpida máquina

de alma desalmada

ínfima miragem

tatuada na memória que secou

porque intacta ficou

a vida lá fora

            vazia

e pouca

                          toda ela pra esquecer

 

 

Poeta Félix Alberto Lima – foto: dvulgação

 

 

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Paulo Rodrigues, entrevistador, é poeta e Jornalista, autor de Cordilheira (Litteralux, 2024), entre outros livros importantes e premiados.