A Cor da Utopia: uma análise do poema
CÉU UTÓPICO PARA FAMÍLIA AMARELA
de Antonio Aílton
por César Borralho*
Antonio Aílton revela, em seu laureado poema vencedor do 1º Concurso de Poesia da SOBRAMES-MA/2024, intitulado CÉU UTÓPICO PARA FAMÍLIA AMARELA, uma sensibilidade aguda para com as intricadas complexidades da existência moderna. Destacando-se por sua habilidade em tecer críticas sociais profundas, Aílton constrói uma estrutura lírica ao mesmo tempo densa e multifacetada. Este poema emerge como uma composição onde indivíduo e sociedade se entrelaçam de maneira indissociável, delineando uma crítica pungente ao capitalismo e às dinâmicas familiares que marcam a contemporaneidade.
Dar nome a um poema é uma arte em si. É o primeiro encontro do leitor com o texto, uma introdução que carrega em si a promessa do que está por vir. O título CÉU UTÓPICO PARA FAMÍLIA AMARELA não é apenas uma designação para um poema; é uma entrada para um universo de significados.
A solução encontrada para o título do poema opera como um portal para uma narrativa poética que investiga as tensões entre o ideal e a realidade, a esperança e a desilusão, a fragilidade e a resistência. O título é irônico, contrapondo a ideia de um paraíso perfeito (céu utópico) à realidade opressiva vivida pela “família amarela”. A cor amarela pode ser associada a várias interpretações, incluindo a ideia de algo doente ou deteriorado (amarelo como sinal de doença) ou ainda um sinal de advertência. Tradicionalmente associada à alegria, luz e otimismo, aqui a cor amarela é subvertida para simbolizar a fragilidade e a precariedade da condição familiar. Este uso irônico da cor reforça a disparidade entre a aparência e a realidade, entre o que é prometido e o que é realmente vivido. A família, ao invés de encontrar refúgio em um “céu utópico”, enfrenta um mundo de exigências, conformidades e vigilância, onde suas necessidades emocionais e existenciais são constantemente negligenciadas e suprimidas.
Céu Utópico para Família Amarela não é apenas um nome, mas uma narrativa condensada, uma abertura para um mundo de significados que Antonio Aílton habilmente desdobra em seu poema. É um testemunho da habilidade do autor em capturar a complexidade da experiência humana e transformar uma frase em um reflexo profundo das aspirações e desafios que todos enfrentamos. Ao dar nome ao seu poema, Aílton não apenas define seu tema, mas também convida o leitor a embarcar em uma jornada de introspecção e descoberta, desvendando as camadas de significado que residem sob a superfície de suas palavras.
Passemos ao poema:
CÉU UTÓPICO PARA FAMÍLIA AMARELA
família, pano de parteiras
e toalha de mesa
rasgada, és a única que carrego
na ausência da mãe
estranho os sobrenomes em árvore
que os formulários de carreira exigem
para sondarem meu pedigree
se sou joão-de-barro
ou se sou joão-ninguém
pedem-me isto e aquilo
e vendem-me um apartamento micro:
que eu não seja prolífico em filhos
nem transgrida os quadrados
que eu seja dado — a prazo
como quem confere paraísos ao relento
margens de um horizonte pré-determinado
tudo quanto flui seja morno e destroçado
que, segundo sua panóptica,
não tenham portos os postes da noite
no mais, insistem que eu banque
o previamente imputado
amanheça inseto transformado
e esconda em algum lugar de mim
meus sonhos, minhas
libertinagens
que meu chip de compras
seja um título rastreado on-line
a escorraçar meu abraço de ciborgue
que eu faça ponto em sua zona
de conforto — depois de esbanjar afeto
num velho comercial de televisão
dois cliques e nos colocam na moldura
para estarmos lá, pendurados
em um banco amarelo
família, cifrão cortado
trago por meu signo o teu riso congelado
folder,
utópica flâmula tremulando
aos poucos minha casa se retira
nas beiradas que prenunciam a distância
(Antonio Aílton)
Na edificação do poema, Aílton emprega uma estrutura livre, característica de uma modernidade que rejeita as amarras da métrica clássica. Contrapondo-se à rigidez das estruturas sociais impostas, a forma livre reflete a própria busca por liberdade e autenticidade do sujeito lírico. Despida de rimas convencionais, a estrutura é rica em aliterações e assonâncias que conferem musicalidade ao texto. A ausência de pontuação tradicional intensifica a fluidez e a riqueza da ambiguidade, convidando o leitor a explorar múltiplas camadas de significado. A linguagem coloquial, impregnada de imagens fortes e significativas, cria um contraste entre o cotidiano e a profundidade das reflexões propostas. A repetição da palavra “família” no início e no final do poema atua como um recurso anafórico que sublinha a centralidade desse tema.
O poema aborda temas como alienação, consumismo, e a busca por identidade em um mundo fragmentado. A família é apresentada como um “pano de parteiras” e “toalha de mesa rasgada”, metáforas que evocam tanto o acolhimento quanto a precariedade. Aílton critica os imperativos sociais que transformam indivíduos em meros produtos, ajustados a “um apartamento micro” e a um “chip de compras”. Há uma clara referência à desumanização e à vigilância, refletida no uso do termo “panóptica”, que remete à teoria do controle social de Michel Foucault.
Aílton exibe um domínio notável sobre a imagética e o simbolismo, criando cenas vívidas e perturbadoras. A metáfora do “joão-de-barro” versus “joão-ninguém” questiona a meritocracia e os valores atribuídos ao trabalho e à linhagem. A “flâmula utópica tremulando” sugere um ideal inalcançável, um lar que se distancia conforme se tenta agarrá-lo.
A riqueza intertextual presente no poema Céu Utópico para Família Amarela se revela nas múltiplas alusões e referências a grandes obras literárias e seus temas centrais, magistralmente entrelaçadas na narrativa poética do autor. Aílton, com habilidade singular, estabelece um diálogo eloquente com os pensamentos de Franz Kafka, George Orwell e Aldous Huxley, entre outros mestres da literatura.
A referência a Franz Kafka é particularmente evidente na metáfora da metamorfose em inseto:
“amanheça inseto transformado”
Essa linha remete diretamente à obra A Metamorfose de Kafka, onde o protagonista, Gregor Samsa, acorda transformado em um inseto, simbolizando a alienação e desumanização que ele enfrenta na sociedade e dentro de sua própria família. Aílton utiliza essa metáfora para expressar a sensação de perda de identidade e a imposição de papéis desumanizantes pelo sistema social e econômico.
A crítica ao capitalismo desenfreado e à vigilância lembra as distopias de George Orwell, especialmente 1984:
“que, segundo sua panóptica,
não tenham portos os postes da noite”
A palavra “panóptica” remete ao conceito do panóptico de Jeremy Bentham, popularizado por Michel Foucault em Vigiar e Punir, e utilizado por Orwell em 1984 para descrever a vigilância onipresente do Big Brother. Aílton critica a sociedade de controle que monitora e regula os comportamentos dos indivíduos, subjugando-os a um sistema de vigilância que sufoca a liberdade e a privacidade.
Embora menos explícita, a influência de Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, também pode ser percebida na crítica ao consumismo e à conformidade social:
“que eu não seja prolífico em filhos
nem transgrida os quadrados
que eu seja dado — a prazo
como quem confere paraísos ao relento”
Huxley, em sua obra, descreve uma sociedade futurista onde os indivíduos são condicionados a aceitar suas posições sociais e a buscar prazer e consumismo acima de tudo. Aílton reflete essa crítica ao mostrar como os indivíduos são moldados para se ajustarem às expectativas sociais, evitando a proliferação de filhos e mantendo-se dentro dos “quadrados” ou limites impostos pelo sistema, sempre à mercê de um consumismo incessante.
Aílton dialoga com esses autores ao explorar temas de vigilância, controle e desumanização, criando uma rica tapeçaria intertextual que amplifica a profundidade de seu poema. A crítica ao capitalismo desenfreado e à conformidade social lembra as distopias de Orwell e Huxley, enquanto a metamorfose em inseto remete diretamente à alienação kafkiana. Assim, o poema Céu Utópico para Família Amarela não só se sustenta como uma obra poderosa por si só, mas também ganha camadas adicionais de significado ao se engajar com essas influências literárias.
Céu Utópico para Família Amarela é um poema que não só captura a complexidade da experiência humana, mas também nos desafia a refletir sobre nossas próprias vidas e as estruturas sociais que habitamos. Aílton, com sua linguagem rica e evocativa, nos conduz a uma jornada de introspecção e crítica, revelando as profundezas de nossas aspirações e frustrações. Ao fazê-lo, ele se consolida como uma voz poderosa e necessária na poesia contemporânea, oferecendo uma perspectiva que é ao mesmo tempo pessoal e universal, íntima e expansiva.
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*César Borralho é poeta e filósofo.
Um comentário do poeta Viriato Gaspar, que coloco aqui por impossibilide técnica de ele mesmo fazê-lo nete momento, até que resolvamos este problema técnico:
“Assinalo, na leitura deste número, um duplo prazer: o de me encantar com um grande poema, muito bem travado na estrutura sintática, seja também no aspecto fônico, na escolha rigorosa das palavras, a desdobrarem-se em camadas semânticas e em reverberações sintagmáticas que ampliam sua ressonância, seja na construção efetiva de cada verso, onde nada falta ou sobra. Em suma, um grande poema, que mereceu, com destaque, o primeiro lugar no concurso da SOBRAMES.
Do outro, a análise sempre atilada e arguta do César Borralho, que vem se especializando em desdobrar as camadas de significados dos poemas, sem dissecá-los como um legista sobre o cadáver de um afogado. Mas com a inteligência e a sensibilidade de quem sabe que um poema é um universo vivo, um objeto pulsante e arrebatador, que pode catapultar o leitor a esferas de alumbramento e magia, para além das palavras que o poeta teceu em sua arte. Um duplo prazer: ler um grande poeta e um texto belo e verdadeiro de um crítico que a cada dia se mostra mais acurado e íntegro em seu ofício e arte.
VG”
Aílton é um poeta que há bastante tempo vem consolidando o seu trabalho poético. Muito merecido este título!