Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Capa do romance O andrógino, de Alberico Carneiro

O ANDRÓGINO, de Alberico Carneiro, na apresentação de Bioque Mesito

MEMÓRIA DO CORPO EM TRANSE

 

Por: Bioque Mesito

 

Pecado Original, de Ismael Nery (1900-1934)

A literatura brasileira, em seu papel de instrumento crítico e libertador, por vezes encontra autores que ousam desafiar as convenções sociais mais rígidas. O Andrógino [1975], de Alberico Carneiro, é uma dessas obras transgressoras. Seu enredo é construído em torno de personagens marginalizados, inquietos, mas intensamente humanos, oferecendo uma reflexão profunda sobre identidade, liberdade e afeto em uma sociedade que reprime o que não compreende.

Além de seu caráter existencial e simbólico, O Andrógino é, sobretudo, um romance policial. A narrativa se desenrola com o ritmo de uma investigação velada, onde as pistas sobre a verdadeira identidade da Organização, seus métodos e objetivos sombrios, são reveladas aos poucos, em meio a reviravoltas e suspeitas constantes. O leitor se vê envolvido num jogo de tensão crescente, onde o perigo espreita em cada esquina e a verdade está sempre camuflada por interesses obscuros e moralismos de fachada.

Com um tom nitidamente novelesco, o romance explora excessos, exageros e paixões levadas ao limite. Há uma teatralidade deliberada nos diálogos, nas cenas de violência, nos encontros amorosos e nas perdas trágicas, que remete às telenovelas mais intensas, sem perder a densidade literária. Essa combinação entre o melodrama e o suspense confere ao livro uma linguagem envolvente e dinâmica, que prende o leitor desde o início e o arrasta até a última página com fôlego narrativo e emoção à flor da pele.

O submundo retratado por Alberico Carneiro é também um espaço de desregramento e transgressão. Bares cheios de néon, bebidas em excesso, corpos sedentos por prazer, sexo e poder. Drogas circulam como escape ou condenação, e a sodomia aparece não como tabu, mas como força vital que desafia os limites impostos pela moral tradicional. Nesse cenário, a linha entre o desejo e o perigo é tênue, e é justamente nesse abismo que o autor mergulha seus personagens. Entre chantagens, mortes inesperadas e traições, o romance revela um mundo de sombras e luzes, onde tudo pode mudar de direção a qualquer instante.

O jovem Baco, Caravaggio, 1595

No centro da narrativa está Cristiano, advogado na casa dos trinta, morador da Rua Augusta. Ele leva uma vida dupla: de um lado, atua no mundo jurídico como representante do Clube dos Homófilos; de outro, frequenta os bares noturnos da diversidade, como Calígula, Messalina, Apollo, Pôr do Sol e Barsalto. Nestes ambientes, Cristiano encontra refúgio e reconhecimento, espaços em que se sente pertencente.

Seu compromisso com as causas LGBTQIAPN+ é também o que o coloca em risco. Em determinado momento da narrativa, Cristiano é sequestrado por uma Organização clandestina que combate os direitos das minorias sexuais. A partir daí, o romance mergulha em um campo simbólico e político profundo: o corpo e a identidade são sequestrados junto com ele.

Nessa prisão oculta, Cristiano é submetido pela Organização a uma série de procedimentos que visam apagar sua masculinidade normativa e torná-lo um andrógino — símbolo de neutralização e reconfiguração forçada da identidade. A experiência é ao mesmo tempo física e existencial, e revela o caráter opressor de uma sociedade que nega o direito à diferença.

Ao longo do romance, Cristiano é confrontado com diversas realidades. Em seus encontros com Sanches, um travesti homossexual assumidamente feliz, ele reconhece a força da liberdade interior. Sanches é figura vibrante e acolhedora, que, mesmo à margem, vive sem negar quem é. Sua presença no romance humaniza e fortalece a ideia de que viver sua identidade é um ato de coragem e resistência. No entanto, o destino trágico de Sanches marca profundamente a trajetória de Cristiano: Sanches é assassinado, vítima da intolerância que o romance tão bem denuncia.

Ada, que trabalhava no aeroporto, representa o elo com o mundo cotidiano, uma mulher sensível, observadora, que compreende a dor de Cristiano e lhe oferece afeto e compreensão. Porém, sua história também tem um fim brutal: Ada é morta, silenciada por aqueles que não toleram sua empatia com os “inadequados”. Sua morte simboliza o custo da solidariedade em um mundo hostil à diferença.

Após essas perdas devastadoras, Cristiano decide partir. Vai ao Japão em busca de um caminho de cura, inicia uma dieta restauradora e encontra no Zen-budismo um espaço de reestruturação de si. Não mais advogado, nem apenas um corpo violado, Cristiano se transforma em monge. Sua androginia, antes imposta, torna-se símbolo de reconciliação interior e superação.

No último capítulo de sua jornada, Cristiano está a bordo de um avião, cortando os céus. A aeronave fora-lhe deixada por Sanches, num gesto de afeto e liberdade que agora ganha novo sentido. Do alto, a cidade se desfaz em miniaturas, enquanto dentro dele o passado se adensa. As luzes noturnas, vistas da janela, acendem memórias, os bares Calígula, Messalina, Apollo, Pôr do Sol, Barsalto, lugares onde riu, amou, dançou, chorou e viveu intensamente. A trilha sonora de sua vida toca baixinho em sua mente: vozes de Sanches, de Ada, dos amantes breves e dos amigos de luta que a noite lhe deu.

Recorda o riso escandaloso de Sanches, travesti feliz, que zombava da dor com uma taça na mão e olhos brilhando de quem sabia mais da vida que muitos doutores. Lembra de Ada, com seus olhos calmos e mãos sempre estendidas, como se o mundo ainda pudesse ser acolhido. E pensa nos momentos em que quase se perdeu de si mesmo, nos dias em que a Organização tentou apagar sua essência, transformando seu corpo à força, reduzindo sua existência a um experimento.

Mas ali, nas nuvens, ele compreende que sobreviveu. Que transformou a dor em impulso, e a violência sofrida em sabedoria. Ele não é mais o mesmo Cristiano, advogado do Clube dos Homófilos, frequentador da Augusta, mas carrega cada pedaço desses tempos com dignidade e amor. A androginia que lhe impuseram virou caminho de descoberta e transcendência, não um fim, mas um renascimento.

O pensamento suicida, que tantas vezes lhe rondou nos porões do medo e da exclusão, já não encontra eco. Cristiano entende agora, com clareza serena: nenhum ser humano deve matar-se, ainda que esteja desesperado. Viver é sempre maior, ainda que entre ruínas.

Enquanto o avião atravessa o céu em direção ao inesperado, ele fecha os olhos e medita. Já não busca fugir, mas chegar. Sua vida, marcada por tragédias e encontros intensos, ganha contornos de fábula realista e esperançosa. A memória o acompanha, mas não o aprisiona.

A obra constrói, assim, um arco narrativo denso e trágico, mas também profundamente filosófico. Cristiano, em sua travessia, representa todos os corpos e identidades violentadas por uma sociedade que teme o que escapa às normas. E sua reconstrução aponta para a possibilidade de uma existência livre, mesmo que às custas de muita dor.

Escrito em um tempo socialmente fechado, O Andrógino ousa evocar a liberdade individual, o afeto entre iguais, a possibilidade de se amar sem se curvar aos padrões. Não se trata apenas de um romance sobre sexualidade, mas sobre o direito de ser, plenamente e com dignidade.

Nos dias atuais, a obra O Andrógino ressoa com uma força ainda mais intensa diante do cenário político e social marcado pelo avanço de grupos conservadores e religiosos que frequentemente promovem discursos de exclusão e intolerância. Esses grupos, em sua defesa rígida de uma ordem moral tradicional, resistem à diversidade sexual e de gênero, impondo barreiras à liberdade individual e ao direito de existir em plena autenticidade. Tal resistência reflete o mesmo tipo de opressão e violência que Cristiano e seus companheiros enfrentam no romance, mostrando como temas como a identidade e o amor continuam sendo palco de batalhas sociais e culturais.

A perseguição e marginalização de pessoas LGBTQIA+ permanecem evidentes, manifestando-se em políticas públicas retrógradas, discursos de ódio e até violência física. Essa realidade ecoa a trama do livro, onde a intolerância é representada pela Organização que sequestra e mutila Cristiano, um símbolo das agressões institucionais que muitos ainda enfrentam hoje. A luta por reconhecimento e direitos civis, que no romance se manifesta na coragem e resistência dos personagens, é ainda uma necessidade urgente na contemporaneidade, que clama por mais empatia, respeito e inclusão.

Por outro lado, o romance também oferece uma mensagem de esperança e transformação, fundamental para os tempos atuais. A jornada de Cristiano rumo ao autoconhecimento, ao amor próprio e à reconstrução espiritual inspira uma reflexão sobre a importância de resistir às imposições sociais que negam a diversidade. Em um contexto marcado por retrocessos e polarizações, o romance reforça que a liberdade individual e o amor são forças revolucionárias capazes de desafiar estruturas opressoras e abrir caminhos para uma convivência mais justa e humana.

Ao final, Alberico Carneiro nos entrega uma obra que desafia as convenções literárias e sociais. Um romance que expõe feridas, homenageia os que tombam pela liberdade e aponta caminhos para um futuro em que amor e identidade possam coexistir sem medo. O que resta de Cristiano não é tão-somente a representação de um personagem, mas uma metáfora viva da resistência, da transformação e da esperança.

 

 

Andrógino, de Ismael Nery (1900-1934)

 

 

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Bioque Mesito é poeta, autor de cinco livros de poemas publicados.