Os prazeres da pedra
*Paulo Rodrigues
“subir foi demorado, descer é outra arte”.
(Affonso Romano)
Sísifo teimou com a autoridade. Queria sonhar uma nova vida. Enganou os deuses do fundo da terra, por isso foi condenado a carregar uma pedra até o topo da montanha. Toda vez que chegava lá. A pedra rola e volta. Então, é preciso reiniciar a tortura. O mito parece com a vida? Sim. As repetições da vida são castigos, aprendizagens, momento para catarse.
Affonso Romano de Sant’Anna é professor, ensaísta, jornalista, poeta (um dos grandes nomes da literatura brasileira, na atualidade). Sabe cortar a linguagem com a lâmina das virtudes. Nos encanta com a capacidade de revelar o irrevelável.
Acabei de ler Sísifo desce a montanha. Em muitos poemas fui tomado pelo mistério profundo, do diálogo. Eu não busquei respostas, nem ele nos oferece. No entanto, oferta mais. Sai deixando pitadas de sensações das muitas mortes do poeta. É o tema geral do livro (a morte). Ele vai além? Claro. Apresenta suas filosofias da linguagem, as angústias do esquecimento coetâneo, as imagens marginais do cotidiano.
Destaco, de início, a primeira parte do poema NUM RESTAURANTE, que está na página cento e dois. É uma aula de prazer. Com uma didática emocional, acima do lirismo vazio da literatura contemporânea:
Alguém
preparou para mim
a comida
ali no fundo deste restaurante
e não vejo seu rosto.
Ouço ruídos.
A boa, má e anônima comida
chega à minha mesa
como se navios avançassem
sem que suarentos braços
alimentassem suas caldeiras.
Roland Barthes – no livro O Prazer do Texto – que eu tenho a quarta edição, de mil novecentos e noventa e seis (Editora Perspectiva) diz: “o texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra”. O crítico literário francês nos mostra a necessidade do texto conquistar o leitor. Não posso negar os desejos nos meus olhos. Leio a cena muitas vezes. É instigante. Desdobra-se como um tsunami dentro de mim.
Parece uma crônica em versos, tão sutil, como um beijo sentido antes de tocar os lábios. Nas estrofes acima, temos a preparação da ruptura do ato de comer. Vamos avançar mais um pouquinho e entender:
Tudo que chega a mim
teve um drama pregresso
o grão, o tecido, o plástico
o industrial aparelho tão belo e limpo
tudo tem suor, tem sangue, tudo
veio da aflição, da ânsia
a produzir em mim, um incerto prazer.
Dois homens mastigam na minha frente
riem, conversam seus negócios, telefonam
como em qualquer restaurante do mundo.
A cena primária é retomada pelo poeta, num ato quase de análise freudiana. De repente, a vista é clareada. As aflições dos que fazem a comida recuperam os traumas de Affonso Romano. Criam uma armadilha. Preocupam a superfície da mesa. Os homens proprietários apenas mastigam. Só o artista é um neurótico diria Barthes.
A estrofe final do poema promove o mesmo prazer no leitor e no escritor como veremos:
[…]
Longe, nos subúrbios
onde prospera a fome
meu prato
está sendo preparado
por toscas criaturas
e nunca saberei seus nomes.
A insatisfação com a comida é nítida. Há sinais de prazer na reflexão poética dissonante. Só nas palavras mora a propriedade, que sustenta o discurso. Parece que sentimos a fome de quem prepara e não se alimenta. Affonso Romano é um transgressor, buscando o prazer.
Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia. Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. É membro da Academia Caxiense de Letras e da Academia Poética Brasileira.
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