Apesar
Como se nada me pertencesse
sinto na pele a memória do que
sequer compartilhei
todas as mãos os olhos os pelos
foram maré
a distância em toda a vida
me dispensou numa praia azul
Não que eu assim veja mas
há dias em que sou segredo
deduzo que há mais dois ou três
entre bilhões que entenderiam
a patetice em meu corpo
essa mesma
que me afasta do que conheço
e pretendo
Almejo nessas cenas
espremidas na cabeça
grandezas de filme
destinos acima do controle
delícias que contornem
o esquecimento
por trás do tráfego em cada
minuto
tramo o sono que funde
otimismo e fato
procuro qualquer abraço que
me carregue além desse fetiche
fantologia entendida pela
forja de minhas ignorâncias
procuro qualquer um
que não julgue
não me deixe
mas às vezes me entenda
como o cupom amassado
que assovia
que o vento toma e atravessa
pela Estrada de Ribamar
*
*
Misofonia
Contando o imposto e a previdência estou parte dos dez por cento mais ricos do meu país ao menos nesse dia & era do ano da graça de dois mil e vinte um mesmo ano de um expressivo aumento no consumo de salsicha macarrão instantâneo ossos
ainda que obstinado a viver meu privilégio além de um caráter que considero razoável seco de choros me embalo em um pai-nosso oco que não sei se por distância recusa ou necessitar de milhões
As linhas acima não servem de epitáfio ao menos não o meu acredito que meu plano funerário não o cobre mas não se pode alegar inteireza ou ilibação dos que não alcançam além dos jornais dos memes das urnas acabo oferecendo surras e rendas arabescadas com o mesmo peso prosaico dos bons-dias
Ainda faço parte dos que não tomam ansiolíticos dos que insistem em desistir mas seguem por dúvida ou dívida dos que guardam demolições dos amantes que ainda não se mataram por não terem sido convidados me peço progresso arrastando esqueletos nas mãos olhos lépidos de criança que pede nos ônibus aos sábados que carregam mais dados poéticos que todo esse esgoelar-se na ilha Bouvet
Ainda faço parte da espera já que rodízios de carne e cervejas importadas me encolheram em se tratando da luta ainda faço parte da mentira repetida envolto em cosmogonias íntimas
às vezes me excedo me permito acender alimentado descansado vestido e banhado quase estouro a cabeça enamorado por prestígio influência uma canção ou um beijo mas o que se extrai dessa postagem que sirva à aldeia? Dou a volta e (de)componho provo a própria carne desenvolvo planejo formato mas me calo – para sorte do mundo pervinca é a cor da estação em breve saberemos qual será o hit do verão todos levam a sério aforismos em reality shows
*
E
se você abrisse os olhos
esperando me encontrar
se no escuro meu peso
não te fosse suficiente
se aquele segurar minha mão
não fosse por um medo que
um susto destrancou do sono
se sentíssemos a mesma
linha de baixo agulhando
no lugar de nossas línguas
se entrar fosse chegar
tão próximo que
sentiríamos os planetas
se eu trocasse os sentidos
por esperança
se eu conversasse
querendo ficar
se eu não fosse
incrédulo feito desertos
se não visse esmeraldas
nas garrafas quebradas
se eu continuasse
você
me alcançaria
assim
aqui?
*
Solo 4
Se feito do barro, há sentido
me sinto um tijolo antigo
Se do estouro, me afirmo
no sonoro prego caído
De qualquer maneira,
há a celeuma e o infinito
Viro-me
acomodo-me torto
entre grandezas onde
só percebo o acabamento
as miudezas me absorvem
me concentram
No imenso esquema humano
em que o poder é propriedade
física da matéria
o que seria um tiro por trás
de quem seguia adiante
Avalio que em todos
há uma fundação de variados
escapes – a minha
é consumir até as cinzas
contemplando qualquer beleza
da varanda dos prédios
Será possível
um prazer avassalador que
nos cubra os olhos
da história que nos carrega?
Sei tanto quanto hoje (menos
agora que anos atrás)
mas quase simples era encarar
a verdade de um perfume que
mora nas hastes dos óculos no
anel esquecido no banheiro na
despedida de algo em mim onde
até este verso
questiono sua utilidade.
*
*
À cidade
(do Solar Cultural da Terra)
Como pintor incompleto
do que meus olhos aspiram
semiagraciado me entendi
disposto
ao pedaço da cidade
que é a primeira cidade
absoluta e
além
das festas
dos batimentos no vigia
das costas de quem dorme
em suas pedras
do cheiro dos que agora
transam
Não canto a cidade
a assovio: é preferível
me sentir nas flores
que lhe usam a terra
nas danças que assiste
dos astros sem prefeituras
suas feiras, silhuetas
o arrastar de sandálias
em suas ruas deitadas
camadas de tudo e tantos
feito caminhos
em meu presente corpo
justificado pelo prazer
Felizmente
ela nos enterrará
uma pá de sal
em nossa ausência
na mesa dos bares
a contemplando
ausência feita do mesmo
fantasma que me embaça
o sentimento
que absorve sua beleza
entremeada do cobalto
da madrugada em meu
riso.
*
Sebastião Ribeiro (1988) é autor de vários livros de poesia, dentre eles Ménage – Antologia Trilíngue de Poesia – com Antonio Ailton (Helvetia Éditions, 2020) e Outro (Penalux, 2022). Seu 5º livro, Solo (Litteralux, 2024) foi premiado com o 2º lugar do Prêmio Claudio Willer de Poesia 2023, realizado pela União Brasileira de Escritores (UBE-SP).
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