Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Sebastião Ribeiro, poeta

5 poemas do livro “SOLO”, de SEBASTIÃO RIBEIRO

Apesar

 

Como se nada me pertencesse

sinto na pele a memória do que

sequer compartilhei

 

todas as mãos os olhos os pelos

foram maré

 

a distância em toda a vida

me dispensou numa praia azul

 

Não que eu assim veja mas

há dias em que sou segredo

 

deduzo que há mais dois ou três

entre bilhões que entenderiam

a patetice em meu corpo

 

essa mesma

que me afasta do que conheço

e pretendo

 

Almejo nessas cenas

espremidas na cabeça

grandezas de filme

destinos acima do controle

delícias que contornem

o esquecimento

 

por trás do tráfego em cada

minuto

tramo o sono que funde

otimismo e fato

 

procuro qualquer abraço que

me carregue além desse fetiche

fantologia entendida pela

forja de minhas ignorâncias

 

procuro qualquer um

que não julgue

não me deixe

 

mas às vezes me entenda

como o cupom amassado

que assovia

que o vento toma e atravessa

pela Estrada de Ribamar

 

 

*

 

 

Heading into the Storm’, Produzido por ButterandBath. Fonte: https://www.etsy.com

 

 

*

 

Misofonia

Contando o imposto e a previdência estou parte dos dez por cento mais ricos do meu país ao menos nesse dia & era do ano da graça de dois mil e vinte um mesmo ano de um expressivo aumento no consumo de salsicha macarrão instantâneo ossos

ainda que obstinado a viver meu privilégio além de um caráter que considero razoável seco de choros me embalo em um pai-nosso oco que não sei se por distância recusa ou necessitar de milhões

As linhas acima não servem de epitáfio ao menos não o meu acredito que meu plano funerário não o cobre mas não se pode alegar inteireza ou ilibação dos que não alcançam além dos jornais dos memes das urnas acabo oferecendo surras e rendas arabescadas com o mesmo peso prosaico dos bons-dias

Ainda faço parte dos que não tomam ansiolíticos dos que insistem em desistir mas seguem por dúvida ou dívida dos que guardam demolições dos amantes que ainda não se mataram por não terem sido convidados me peço progresso arrastando esqueletos nas mãos olhos lépidos de criança que pede nos ônibus aos sábados que carregam mais dados poéticos que todo esse esgoelar-se na ilha Bouvet

Ainda faço parte da espera já que rodízios de carne e cervejas importadas me encolheram em se tratando da luta ainda faço parte da mentira repetida envolto em cosmogonias íntimas

às vezes me excedo me permito acender alimentado descansado vestido e banhado quase estouro a cabeça enamorado por prestígio influência uma canção ou um beijo mas o que se extrai dessa postagem que sirva à aldeia? Dou a volta e (de)componho provo a própria carne desenvolvo planejo formato mas me calo – para sorte do mundo pervinca é a cor da estação em breve saberemos qual será o hit do verão todos levam a sério aforismos em reality shows

 

 

*

 

 

E

 

se você abrisse os olhos

esperando me encontrar

 

se no escuro meu peso

não te fosse suficiente

 

se aquele segurar minha mão

não fosse por um medo que

um susto destrancou do sono

 

se sentíssemos a mesma

linha de baixo agulhando

no lugar de nossas línguas

 

se entrar fosse chegar

tão próximo que

sentiríamos os planetas

 

se eu trocasse os sentidos

por esperança

 

se eu conversasse

querendo ficar

 

se eu não fosse

incrédulo feito desertos

 

se não visse esmeraldas

nas garrafas quebradas

 

se eu continuasse

 

você

me alcançaria

assim

 

aqui?

 

 

*

 

 

Solo 4

 

Se feito do barro, há sentido

me sinto um tijolo antigo

 

Se do estouro, me afirmo

no sonoro prego caído

 

De qualquer maneira,

há a celeuma e o infinito

 

Viro-me

acomodo-me torto

entre grandezas onde

só percebo o acabamento

as miudezas me absorvem

me concentram

 

No imenso esquema humano

em que o poder é propriedade

física da matéria

o que seria um tiro por trás

de quem seguia adiante

 

Avalio que em todos

há uma fundação de variados

escapes – a minha

é consumir até as cinzas

 

contemplando qualquer beleza

da varanda dos prédios

 

Será possível

um prazer avassalador que

nos cubra os olhos

da história que nos carrega?

 

Sei tanto quanto hoje (menos

agora que anos atrás)

 

mas quase simples era encarar

a verdade de um perfume que

mora nas hastes dos óculos no

 

anel esquecido no banheiro na

despedida de algo em mim onde

até este verso

questiono sua utilidade.

 

 

*

 

 

Abstrato, espatulado. Fonte: https://www.elo7.com.br/

 

 

*

 

 

À cidade

(do Solar Cultural da Terra)

 

 

Como pintor incompleto

do que meus olhos aspiram

semiagraciado me entendi

 

disposto

ao pedaço da cidade

que é a primeira cidade

absoluta e

 

além

 

das festas

dos batimentos no vigia

das costas de quem dorme

em suas pedras

do cheiro dos que agora

transam

 

Não canto a cidade

a assovio: é preferível

me sentir nas flores

que lhe usam a terra

 

nas danças que assiste

dos astros sem prefeituras

 

suas feiras, silhuetas

o arrastar de sandálias

em suas ruas deitadas

camadas de tudo e tantos

 

feito caminhos

em meu presente corpo

justificado pelo prazer

 

Felizmente

ela nos enterrará

 

uma pá de sal

em nossa ausência

na mesa dos bares

a contemplando

 

ausência feita do mesmo

fantasma que me embaça

o sentimento

que absorve sua beleza

entremeada do cobalto

da madrugada em meu

riso.

 

 

*

 

 

Sebastião Ribeiro (1988) é autor de vários livros de poesia, dentre eles Ménage – Antologia Trilíngue de Poesia – com Antonio Ailton (Helvetia Éditions, 2020) e Outro (Penalux, 2022). Seu 5º livro, Solo (Litteralux, 2024) foi premiado com o 2º lugar do Prêmio Claudio Willer de Poesia 2023, realizado pela União Brasileira de Escritores (UBE-SP).