Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Karla Castro, poeta. Foto: divulgação

Redário – poemas de KARLA CASTRO

O BERRO DAS LETRAS

No princípio

Choramingou baixinho o caos

Espremido no líquido amniótico, sufocante e insípido das palavras não criadas,

Que não mais saciavam o vazio transbordante do nada,

Ainda não verbalizado.

 

Um feto.

Um caos feto,

Ruminando a gestação dos últimos dias. Pulsante,

Numa placenta disforme, que já não lhe cabia. Latejante e doído,

Como é a urgência do ato que precede o ser parido.

 

E do hermético calabouço do nada, ouviu-se a ordem: que nasçam as letras!

 

E elas nasceram.

E elas, enfim, berraram. E fez-se a luz.

 

E veio à luz a poesia.

 

 

Imagem: Karla Castro

 

 

*

 

RITUAL

Untei meu corpo frio com o óleo do mais puro sândalo e dancei nua em torno da fogueira.

Por instantes, confundi o fogo que ardia em mim e que me consumia em tórrido tição de carne viva, ao fogo cor de coral das labaredas.

 

Ilusão brutal e louca, pois o calor que delas emanava sequer aquecia a areia ao redor do templo. Eram gélidos grãos,

Comparados à efusão de chamas que jorravam escarlates da minha nova pele, iluminando em festa de ano novo as minhas loucas vontades.

 

Nunca ardi tanto em vida. Nunca amei tanto estar viva.

Foi quando me deparei com minha imagem refletida nas flamejantes chamas rosáceas. Eu era bela e ainda era eu,

A mesma de outrora E de muito antes,

Só que agora e, Finalmente, Desaprisionada.

 

Foi deste dia que nunca mais parei de dançar.

 

 

 

Karla Castro. Foto: divulgação

 

 

*

 

ÂNSIAS DE SAUDADE

E CORDAS DE CRAVIOLA

 A tarde desce solta, alegre e fresca em correria pelos becos estreitos

Encharcada de cheiro de chuva e bom augúrio E é quase possível ouvir sua risada

Saltando pelas poças,

Molhando seus pés descalços e ligeiros pelas pedras e coxias

A me chamar,

A me chamar para brincar e saltar com ela.

 

E eu, recostada ao parapeito de pedra fosca desse monastério,

Sem monges, sem cruzes e sem velas, Sufocada por rezas estéreis,

Rechaço de tamanha e descabida euforia.

Me espreguiço e, mais uma vez, me recosto e espreito,

Apenas espreito,

Pois acordei com ânsias de saudade e de dedilhar de cordas de Craviola.

 

O cheiro do nada, enfeitado de fitas e guizos que a chuva traz,

Perfuma meus cabelos,

Enquanto acende antigas lembranças

 

Do dia em que deixei de lado as contas do rosário E te toquei com a pontinha dos dedos,

Com um leve toque,

Por medo de te ver sumir.

 

É que eu não entendia bem naqueles dias

Que, na verdade, por aqui você nunca tinha estado.

 

Climas chuvosos têm esse poder sobre mim, O de me deixar sentimental,

Preguiçosa

E sem pressa por coisa alguma,

Numa pausa tamanha que se acumula feito pingos, Pingos grossos, enchendo cântaros de argila

Com suas gotas, ecoando numa cadência tão terna e doce

E, de tal forma,

Que acabo me rendendo e me deixando escorrer pelas calçadas

Até virar poça, Evaporar

E virar nada.

 

 

 

Karla Castro. Foto: divulgação

 

 

*

 

REDÁRIO

 

Do dia que chorei,

Um choro que rachava e transbordava imensos cântaros,

Eu não conhecia a poesia. Não ainda.

Não nos dias do transbordar de imensos cântaros.

 

O que eu conhecia era o desassossego dos dedos, que era igual ao desassossego da vista quando avista a faca.

A faca que espreita o queijo, diante de um prato vazio.

O que eu conhecia era o desassossego dos dedos, da hipócrita ruína rotineira das xicaras.

As xicaras brancas de louça nobre, que abarcam com inútil zelo e pejo o café já frio, diante da mesa vazia.

 

Hoje, não há desassossego entre os meus dedos [O que há somos eu e a poesia.

Intimas companheiras em seus opostos,

Que se sentam à mesa, tentando colocar xícaras e bules em seu devido lugar.

 

Nunca de fato conseguimos,

Tudo continua ainda muito fora do lugar,

Mas o café nos desce queimando garganta abaixo.

 

E o queijo abarrota o prato.

E a faca corta o queijo em lâminas agressivas e sádicas.

 

E lá fora,

Onde antes havia imensos cântaros, Transbordantes,

Hoje tenho uma fonte.

Cultivo um jardim e construí um redário, com folhas de papel e tinta,

 

Pois aprendi que também nascem e morrem borboletas entre fontes e jardins imaginários.

 

 

 

 

*

 

 

Cearense e radicada no Maranhão desde 1999, Karla Castro é fisioterapeuta, professora e pesquisadora, com mestrado e doutorado na área do envelhecimento humano, desenvolvendo pesquisas e publicações sobre Longevidade Humana. Em 2020, mergulhou no universo literário e possui várias participações em antologias e coletâneas nacionais e internacionais, além de uma obra individual já publicada, o livro de poesias: Todo O Meu Sentimento Através Dos Teus Olhos, premiado em 2024 no Salon du livre em Genebra/Suíça. É membro da Academia De Belas Artes Do Rio Grande Do Sul – ABARS e já finaliza seu segundo livro de poesias: O berro das letras, que será lançado pela Literarte em setembro de 2024, na Bienal internacional do livro de São Paulo.  Sua paixão é organizar saraus homenageando amigos poetas e também compartilha sua poesia em rodas de leitura e oficinas literárias para idosos, momento em que vivencia a força e sensibilidade da criação poética por meio da troca e integração de experiências intergeracionais através da leitura, compartilhamento de costumes, de histórias, de memorias e criação, o que faz de sua poesia algo pulsante e atemporal e que a permite fomentar um elo social importante de apoio, acolhimento e amor.