Ceres Costa Fernandes concedeu esta entrevista em janeiro/2022, publicada na edição do Sacada Literária impressa Ano 1, Vol. 2, n. 09 – março de 2022, e que agora reproduzimos aqui, por considerarmos de clara relevância. Ceres, como é chamada entre amigos, é escritora, professora aposentada do Curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão, Mestra em Letras pela PUC-Rio, membro da Academia Maranhense de Letras, onde ocupa a cadeira 39, a qual tem por patrono João de Deus do Rêgo, e membro da Academia Ludovicense de Letras, na cadeira 34, patroneada por Lucy Teixeira.
Ceres nasceu em Salvador, Bahia (28.12.42), mas veio para o Maranhão ainda com dois anos, e aqui dedicou sua vida aos estudos, ao ensino e pesquisa, à cultura, à gestão pública. Prestou grandes serviços ao estado, como assessora especial de educação, gestora de programas especiais do governo, diretora do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho. Neste, inclusive, desenvolveu grandes e exemplares projetos, renovadores e transformadores do nosso cenário cultural, tais como as grandes noites e entrevistas do Café Literário do Odylo e os encontros estaduais de academias.
Seria o bastante. Porém, como ensaísta, contista e cronista, Ceres representa uma das nossas grandes forças da escrita, seja em relação a uma sensível prosa memorialística, por vezes com traços irônicos e bem-humorados; seja em relação ao engajamento incansável que mobiliza as instituições das quais participa; seja em relação ao ensaísmo acadêmico, com livros importantíssimos, tais como Surrealismo & loucura e outros ensaios (UEMA, 2008) e O narrador plural na obra de José Saramago (Lithograf, 2003). Sobre este último, é muito justo que ela seja colocada como a grande pioneira de estudos de noBrasil, quando o grande romancista português, ganhador do Nobel, sequer era lido em nosso país.
Para além dessa grande pessoa pública, estamos falando de uma mulher supersensível às questões humanas, participativa, perceptiva, potente e incisiva, que não guarda para amanhã o que é preciso ser dito ou colocado hoje. É com essa potência, lucidez e sensibilidade que Ceres Costa Fernandes, nos concede essa entrevista, e pela qual nos sentimos gratificados.
Esperamos que os leitores também.
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1 – Ceres, qual tem sido a tua dedicação e tuas preocupações até agora como escritora, e que aspecto da escrita gostarias que os leitores dessem uma atenção especial, em tua obra.
– Quando comecei a escrever, era a professora que falava nos meus textos, a preocupação era facilitar a compreensão da História e a Teoria Literária para meus alunos da UFMA. Foi quando escrevi a maioria dos meus ensaios: a relação literatura/religião; surrealismo e loucura; o narrador em Saramago; literatura e carnavalização; literatura e psicanálise. Depois me envolvi com as crônicas e suas diversas faces e, por fim, com a ficção, em que a gente se abre e voa mais. Além do desejo de me comunicar com os leitores, havia a necessidade maior de me descobrir como pessoa. Enfim, escrevia para me entender melhor, à procura, talvez, da razão das coisas. Sou alguém que se perde em dúvidas, aprendendo sempre, por isso os meus escritos estão prenhes de questionamentos, até as já acontecidas memórias não são exatas e acabadas, deixam espaço para incertezas
Por falar em memórias, sou memorialista. Estou preparando um livro de memorias, das coisas que vivi nos municípios maranhenses por onde andei e do registro de acontecências em diversas décadas da minha cidade amada, São Luís. Não se trata de saudosismo, trazer o passado de volta. Nada poderá mais ser como foi, e nem teria sentido nem lugar. Trata-se de registrar o que passou para que o fato, a lenda, a história, o sentimento não se percam e possam ajudar a compreender o momento presente.
2 – O que você acha da ideia de “inutilidade” da literatura, seja da prosa ou da poesia, e que papel ou responsabilidade social tem o escritor em sua escrita, se o tem?
Na verdade, a literatura, como todas as outras artes, não se preocupa em ser utilitária. Ela é, ela existe, simplesmente. Seu compromisso é com o Belo (não o bonito), aquela beleza que, até parecendo horrenda, desperta a emoção estética, por exemplo, o mural de Guernica, de Picasso. A arte literária não se identifica com encaminhar as pessoas para a felicidade ou a correção de suas atitudes ou fazê-los assumir, de modo explícito, determinada ideologia, que acreditamos ser a certa. Esse papel pode ser deixado para a ”literatura” de autoajuda e para os textos de filosofia, sociologia, política e outros.Por outro lado, sabe-se que a impassibilidade absoluta de um texto, como preconizavam os autores da escola realista, é impossível de ser instaurada. A implicação do social em uma obra literária é sempre recorrente, nem que essa instância se situe por omissão. Parafraseando Paul Ricoeur, não existe, na verdade, um lugar não ideológico de onde se possa pensar o discurso literário. A aparentemente simples escolha do material a ser descrito já implica uma intencionalidade. Mesmo a adoção da chamada “visão de câmara”, considerada como o “máximo de exclusão do autor” não é neutra: os vários ângulos adotados para exposição de uma determinada situação pressupõem uma seleção e indicam afetividade. O que se lê já vem filtrado pela ótica do autor. Mas, como disse na resposta anterior, o escritor escreve para se conhecer ou exorcizar algo e, às vezes, nosso texto pode despertar no leitor o prazer da leitura no sentido que Roland Barthes o entendeu. Aí acontece a boa literatura.
3 – Quais as ações mais importantes que você considera ter feito como educadora como administradora cultural?
Ser professora é uma coisa grandiosa, saber que alguém pode ter descoberto uma vocação ou escolhido um caminho e atribuir parte disso ( nem que seja um pouquinho) a você, é matéria para sempre. Se algum(a) ex-aluno(a) me encontra e confessa algo desse tipo, é precioso. Participei de muitas ações educativas, ministrei aulas de utilização do livro didático para professores em municípios difíceis de serem alcançados, nos anos setenta. Era maravilhoso constatar a sede de saber que eles tinham, o valor que davam a cada pequeno curso ; fui gestora do projeto, Saúde na Escola, que envolveu 130 municípios do Maranhão e tratou da saúde das crianças nas escolas, desde dermatologia sanitária, até verminose, doação de óculos e tratamento dentário, instalamos e acompanhamos os consultórios dentários nas escolas pelo Maranhão afora. Foi um projeto tão bonito, beneficiou tantas crianças que, acho, muitos pecados meus serão perdoados por conta dele. Outra ação muito grata foi ter realizado, durante cinco anos, os Saraus e Cafés Literários no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho. Estes eventos mensais eram um grande sucesso de público e durante esses anos fizeram parte do calendário cultural da cidade. Foram transmitidos, ao vivo, pela Secretaria de Tecnologia do Estado a vários colégios e academias em diversos municípios e registrados em livro. Também realizei duas Mostras Estaduais de Literatura, a I e II MEL, em que municípios maranhenses vieram expor a sua produção literária em São Luís. Isso em 2013 e 2014
4 – Pensando na tua colocação como acadêmica que és, o que, afinal, faz uma academia e um acadêmico? O que você pensa sobre a proliferação de academias e a atuação delas?
As academias de letras de um estado, de um município, de uma cidade, de um segmento social, ou, até mesmo, as dedicadas à renovação e prestígio de alguma forma poética, a exemplo da trova, que, revivendo as glórias do passado, recriou a sua academia, devem ser as guardiãs e, ao mesmo tempo, divulgadoras e incentivadoras da cultura e da literatura do seu meio. O acadêmico, após ser eleito por sua produção literária e participação na vida cultural da sociedade em que vive, sente-se mais responsável por conhecer mais a literatura ligada aos objetivos da academia a que pertence, estudar e tentar produzir mais ou envolver-se em pesquisa, se esse é seu vezo. Vejo com bons olhos a proliferação de academias, significa que há mais pessoas interessadas em estudar e aprofundar-se nos estudos literários.
Não podemos, no entanto, esquecer que as academias existem para a melhoria da cultura e das letras e não para exaltar e premiar indiscriminadamente pessoas e instituições. Isso, às vezes, acontece, desvirtuando o verdadeiro objetivo da agremiação. Academias municipais têm estimulado muito a produção dos escritores locais que, sem as elas, por vezes sentem-se desestimulados a produzir. Deve-se ao trabalho de algumas dessas instituições a descoberta e estudo de poetas locais e as pesquisas sobre figuras representativas para a história dos seus municípios. Isso tudo resulta em mais estudos, produção de livros e instalação de Feiras Literárias. Temos agremiações verdadeiramente atuantes como as de São Bento. Viana, Caxias, Imperatriz e Itapecuru, estas três últimas apresentam, anualmente, boas feiras de livros. O saldo é positivo.
5 – Você tem como patrona na ALL a poeta Lucy Teixeira, que este ano completa 100 anos de nascimento. Qual a importância dessa escritora para as transformações e o advento do modernismo literário no Maranhão?
A literatura maranhense na segunda metade dos anos 1940 – pelo que se vê publicado nos jornais e pelos livros editados – ainda incensava o Parnasianismo e ignorava as “novas” tendências, que agitavam o Sul do país. Costuma-se atribuir, unicamente, a Bandeira Tribuzi, recém-chegado de Portugal, trazendo Fernando Pessoa, José Régio, Sá Carneiro, a iniciação dos maranhenses na nova estética, apresentada na profissão de fé do seu livro Alguma existência (1948), sem atentar para outras influências.
É nessa ocasião que Lucy, mulher maranhense, caxiense e cosmopolita, intelectual, advinda de Minas Gerais, após bacharelar-se em Direito (1942-1946), retorna a São Luís, em dia com as mais modernas tendências literárias resultantes da convivência com escritores que formavam a nata da literatura mineira de então, Oto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Murilo Rubião.
Sempre inovadora, escreve poemas, contos, faz critica literária em O Imparcial, onde tinha uma coluna diária (1946-7), que publicava crônicas nada tradicionais, sob o pseudônimo de Maria Karla, e uma página semanal, aos domingos, em que ela divulgava a literatura maranhense. Inclusive, é nesta página que são publicados os primeiros poemas de Bandeira Tribuzi. Cheia de entusiasmo, participa do Grupo da Movelaria Guanabara, ao lado de Ferreira Gullar – que confessa ter sido ela a primeira leitora de Luta corporal (1949) –, Floriano Teixeira, Bandeira Tribuzi, José Sarney, Pedro Paiva, Erasmo Dias, Domingos Vieira Filho, Lago Burnet e outros jovens intelectuais maranhenses. Esse Grupo vai ser a célula introdutora das novas tendências literárias no Maranhão. Criou, juntamente com Ferreira Gullar, seu pupilo, o Congresso Súbito de Poesia que resultou no Movimento Anti-Quentismo, de “repúdio ao sentimento fácil em poesia”. No final de 1949, Lucy se muda para o Rio de Janeiro, onde reencontra seus amigos mineiros, já então famosos, convive com Mário Ped
rosa, crítico de arte, Carlos Drummond e apresenta Ferreira Gullar a seu mundo literário. O doutorado, em 1958, veio por meio de uma bolsa de estudos do governo italiano, e lá se foi Lucy para a Itália. O tese resultante desse doutorado foi L’estetica Crociana e L’Arte Contemporanea. Lucy era também pintora e expunha seus quadros com boa aceitação da critica.
Reputo Lucy Teixeira como a maior das escritoras maranhenses de todas as épocas. Talvez a sua pouca permanência em plagas maranhenses, sempre partindo para maiores voos, não chegando a formar seguidores, contribua para o desconhecimento do seu papel e importância na mudança de rumos da literatura maranhense, sem desmerecer a importância de Bandeira Tribuzi. O pouco cuidado que Lucy dava à publicação de seus trabalhos, fez com que apenas quatro de suas obras fossem editadas, dois livros de poemas, Elegia fundamental (1962) e O primeiro palimpsesto(1978); No tempo dos alamares e outros sortilégios(1999), contos; Quem beija o leão (S.D), peça teatral e um romance, O destino provisório (2003). Estes livros não foram reeditados e transformaram-se em obras raras. Muitas crônicas e criticas esparsas publicadas em jornal continuam sem edição em livro. Ouro fator de desconhecimento do seu trabalho é a interdição da família para novas publicações ou reedições por questões de inventário, o que é uma grande pena, pois Lucy possui um tesouro, um baú pejado de riquezas a ser garimpado o que, certamente, enriquecerá mais ainda a literatura maranhense.
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