Luís Augusto Cassas*
1
Em São Luís desde maio, em peregrinação lírico-espiritual, lançar novos livros de poemas, revisitar origens, família, amigos, lugares, curtir cores, odores, sabores, enfim, deleitar-me com as curvas e reentrâncias da ilha.
Dois acontecimentos marcaram minha observação logo à chegada. O amplo trabalho desencadeado pela Prefeitura para melhoria do tráfego com novo visual e remanejamento, ampliação e melhoria de espaços públicos.
E o escândalo que se abateu sobre um dos mais famosos logradouros, a Praia Grande, precisamente sobre o Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, importante equipamento cultural, saqueado por marginais, que surrupiaram-lhe as vísceras, já que todo o corpo, esqueleto e ossos, havia sido roubado, ao longo dos anos de abandono. Fato escancarado pelas mídias sociais há poucos meses e que indignaram o maranhense.
Foi para entender essa tragédia que percorri, a pé, a Praia Grande, conversando com técnicos, urbanistas, artistas, intelectuais, artesões, visando compreender as origens desse funesto desacontecimento, que macula nossas mais ricas tradições. Venha comigo.
2
Cidadãos e usuários da cultura maranhense, ao comentarem a publicidade governamental, convidando turistas para um dos mais representativos São João do mundo, em São Luís – confessam sua perplexidade.
Como acreditar que turistas virão divertir-se nas festanças juninas, tendo como carro-chefe, o boi e seus múltiplos sotaques, sem estender a visita ao berço cultural (ao menos para uma selfie) que sintetiza a ampla variedade de sons, ritmos, cores, e que encontra refletida no sítio histórico da Praia Grande, a moldura mais fiel?
Ora, era ali, entre brechós, saraus, lojas de artesanatos, galerias, restaurantes, mercado das tulhas, museus, circulação de diversas tribos e o rico aparato de beleza e entretenimento, que a cidade acionava as cores da sinfonia que seduzia a todos.
Hoje, terrivelmente, o quadro, é outro. Até as festas juninas de 2024 não se realizaram na Praia Grande, por insuficiência de estrutura básica para o evento. Embora bandeirinhas coloridas possam sinalizar o contrário.
Viva o Boi! Mas viva mas também a Praia Grande e seu rico patrimônio histórico e cultural!
3
Aos que amam a cidade ou a visitam para conhecer a riqueza arquitetônica da Cidade Patrimônio da Humanidade, reconhecida pela Unesco, desde a gestão Roseana Sarney, em 1977 – encontrarão no prédio do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, o típico exemplo de tombamento posto em ação, pelo poder público. A destruição das instalações do prédio, por omissão e incúria, proposital, para outros, do qual foi preservada apenas a fachada, além da desvalorização do legado da casa, corpo de funcionários, largados ao esquecimento.
Composto de Teatro, Biblioteca, Sala de Dança, Anfiteatro, Espaços de Exposições, Cinema, Sala para Cerâmica e Azulejaria, Galeria, além de eventos significativos como o Café Literário, dentre outros, o Odylo, tornou-se dos mais importantes endereços culturais da cidade, além de fábrica de difusão das técnicas de fazer artístico. Nada restou que pudesse servir de memória desse tempo de júbilo multicultural.
4
Gosto da Praia Grande. Tenho um caso amoroso com ela. Em 1999, lancei no Canto do Tonico, confluência da Rua Portugal, com a rua Djalma Dutra, onde está o beco Catarina Mina – meu livro Bhagavad-Brita: A Canção do Beco. Outro dos meus livros, O Vampiro da Praia Grande, foi escrito ouvindo as palpitações do personagem central que se escondia nos mirantes dos velhos sobrados.
Mas sou testemunha presencial do massacre contra o Odylo. Por quê? Foi lá, em 2013, que lancei A Poesia Sou Eu, minha Poesia Reunida, 2 volumes encadernados e vinte livros de poemas, em megaevento e multidão de amigos. E o Centro de Criatividade operava integralmente, em todos os seus segmentos. Somente a Biblioteca já contava com 3500 exemplares.
Logo em seguida, inexplicavelmente, foi iniciado o processo de desmantelamento dos órgãos da Secretaria da Cultura e desvalorização das entidades e corpos funcionais. Estranha atitude, que culminou neste ano de 2024, com a retirada dos seguranças e vigias que mantinham o resto da incolumidade dos vestígios do Centro de Criatividade Odylo Costa. E que gerou, como frisei acima, um apocalipse, que feriu a todos. Ao que o cartunista e ex-vereador Cordeiro Filho, disparou: “deram na mão dos bandidos a chave do Centro Histórico.”
Nenhuma academia chiou, nenhum deputado reclamou, nenhum senador engasgou.
Mas após o escândalo ganhar intensa repercussão, o Governo resolveu amaciar a questão, exibindo placa, que está lá, informando a reforma do prédio, sem todavia, informar o valor da obra e suas especificações técnicas, de acordo com a lei.
5
Mas o desmonte que figura o Odylo, como personagem central, não se resume apenas a ele. Foi estendido, pasmem, a todas as casas de cultura e museus nesse período de aproximadamente dez anos.
O Domingos Vieira Filho, de portas fechadas, está com a varanda escorada, com o acervo dentro. O Solar dos Vasconcelos, está em péssimas condições físicas. Os saques atingiram ainda o Museu do Reggae e a Casa de Nhozinho. A própria Secretaria da Cultura foi transferida para prédio próximo à Fribal [frigorífico de carnes], enquanto seu belo sobrado, está desde aquela época, com sérios problemas estruturais e de telhados. No começo do atual Governo, foi colocado tapume sinalizando começo de obras, mas em seguida foi retirado.
Há problemas de toda ordem e se estende a outras entidades do setor público. O prédio da Defensoria Pública, abandonado, também foi saqueado. E o prédio do Arquivo Público, sofre o mal da desassistência, vírus dos dias atuais.
O importante setor de patrimônio está completamente esvaziado, sem pessoal. Como poderá exercitar seu trabalho de fiscalização de um patrimônio histórico gigantesco de mais de seis mil imóveis, sendo que mais de quatro mil são de responsabilidade do Estado e o restante do Iphan?
Senhoras e senhores, onde está o Ministério Público de nossa terra?
“A Praia Grande está muito maltratada,” resume, desolado, o artesão Sotero Vital.
6
MISSA-CONVITE
os sinos de bronze
das igrejas
sé
santo antônio
desterro
são pantaleão
carmo
santana
remédios
são joão
comunicam
o falecimento
do patrimônio colonial
da cidade de são luís
ocorrido hoje
vítima de terremoto
que
destruiu
sobrados
monumentos artísticos
fortes e casarões
e convidam
as tradições culturais
os burocratas do patrimônio histórico
e o povo em geral
para
a missa de sétimo dia
a ser realizada
nos escombros da freguesia
da praia grande
desde já
agradecem penhorados
a esse ato de fé
e piedade cristã
(do livro República
dos Becos, 1981)
Em República dos Becos, meu livro de estreia, em 1981, publiquei o poema Missa Convite, em que os sinos da cidade comunicam o falecimento do patrimônio histórico-colonial da Praia Grande. Que a profecia não se cumpra!
É hora de nosso atual Governador, desvencilhar-se das amarras do passado e lançar novo olhar ao futuro.
E dar uma guinada radical, defendendo e protegendo nosso rico patrimônio histórico, ao mesmo tempo, em que cria, estimula e consolida uma verdadeira política cultural, guiada por homens de mente clara e amor à terra, que atenda necessidades e anseios de nosso povo.
Quem ama, cuida. Vale lembrar que é sempre hora de amarmos a cidade, torná-la espaço de convívio fraterno, múltiplo, ecumênico, cartão postal de beleza e transcendência histórica. E, nela, sermos felizes.
A grandeza e respeitabilidade do Maranhão é legitimada essencialmente por nossa cultura. É preciso calçar os sapatos na Praia Grande e fazê-la caminhar conosco, rumo a novo tempo.
*
Luis Augusto Cassas, 71, poeta, é autor de 30 livros de poemas, dentre os quais O Retorno da Aura e Quatrocentona: Código de Posturas e Imposturas Líricas da Cidade de São Luís do Maranhão.
Você pode ter perdido
LUIZA CANTANHÊDE vence concurso literário na FELIPI – Feira da Literatura Piauiense
“Estátuas São Fantasmas que Morrem por Último”: César Borralho analisa um poema essencial de Viriato Gaspar
Adeus a um porta-voz da cultura, Joaquim Itapary