Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Flor de malagueta, de NEURIVAN SOUSA, sob o olhar de Bioque Mesito

Os sutis traços do prazer na poesia fenomenológica e erótica de NEURIVAN SOUSA

 

Por Bioque Mesito

 

 

Poeta Neurivan Sousa – foto: editorapatua.com.br

A poética elaborada no livro Flor de malagueta (Patuá, 2023), de Neurivan Sousa, revela uma profunda exploração da obscenidade como uma desmontagem que busca desnaturalizar a compreensão humana sobre o sagrado. Mergulha em uma reflexão que coloca em destaque o desconhecimento inerente do homem em relação ao divino, apresentando-o como uma busca incessante, permeada pela experiência corporal e culminando no limiar persuasivo do prazer.

A desmontagem proposta por Neurivan neste livro desafia as concepções preestabelecidas sobre o sagrado, expondo a fragilidade do conhecimento humano em relação ao divino. A busca incessante que permeia a obra sugere uma procura constante, uma jornada existencial que se desdobra na experiência corporal. Ao explorar a interseção entre a busca pelo sagrado e a sensualidade do corpo, destaca a complexidade da condição humana e sua relação intrínseca com o divino. Essa abordagem sugere uma reflexão sobre o sentido da existência humana e as motivações subjacentes à procura incessante por experiências que desafiam as normas sociais e religiosas.

 

beber na tua boca

a bauxita de tua babilônia

a nicotina desta noite

de víboras em núpcias

 

e no suor do teu êxtase

exercer a minha súplica

volúpia na voltagem

do que glorifica a carne.

                         (Orgasmo, p. 18)

 

A porta da angústia e da violência aberta nas construções poéticas estabelecem um espaço para a contemplação das contradições inerentes à conduta humana. Ao questionar a dicotomia entre a conduta proba e o escárnio do adultério, desafia as normas sociais, apresentando o profano não apenas como uma transgressão, mas como uma expressão complexa que amplia os horizontes morais.

A reflexão sobre o obsceno como uma profanação do divino, uma desconstrução e remontagem da noção do sagrado, constitui uma abordagem literária provocativa. Por meio do jogo positivo-negativo da degradação, que destaca e exalta a sexualidade no corpo humano, se estabelece um tom duro e pragmático, simultaneamente crítico da moral religiosa e provocador ao soar como uma pergunta que fere a sacralidade.

A desconstrução do sagrado emerge como um elemento central, desafiando as concepções tradicionais que envolvem a divindade. Ao invés de manter o divino em um pedestal inalcançável, tenta-se aproximá-lo da experiência humana, expondo a vulnerabilidade e a sensualidade inerentes ao corpo. Essa estratégia não apenas subverte as expectativas, mas também questiona as bases da moral religiosa ao trazer à tona a riqueza e complexidade da sexualidade como parte intrínseca da condição humana.

 

resistem as mãos

em se afastar

desse desatino

 

teimam em se perder

entre tuas pernas

na altura do enigma

 

que te consagra

dádiva do nilo

elétrica do niágara

 

bruta pedra brita

onde meu relâmpago

cospe a sua fúria.

(Ante teu enigma, p. 31)

 

A linguagem franca e direta desafia as convenções estabelecidas, desvelando as contradições presentes nos dogmas e nos tabus associados à sexualidade. Ao mesmo tempo, esse tom pragmático serve como uma ferramenta literária que transcende a mera provocação, incitando o leitor a refletir sobre as implicações mais amplas dessa relação entre o sagrado e o profano.

A pergunta que soa obscena, incorporada ao tom de Flor de malagueta, funciona como um instrumento provocador que transcende o texto e se projeta diretamente para o leitor. Ao levantar questões desconcertantes, Neurivan estimula uma análise íntima das crenças e valores pessoais, transformando a leitura em uma experiência não apenas intelectual, mas também emocional e existencial.

A obra em questão revela uma análise profunda sobre o risível, destacando-o como uma vertigem característica do grotesco. Essa vertigem não é apenas uma expressão do mal-estar civilizatório, mas uma incorporação de rituais como os de Baco, como um protesto puro da zombaria intrínseca do ser. Neurivan explora a experimentação do caráter transgressivo das normas sociais, apresentando um panorama complexo e multifacetado da condição humana.

 

ao play da tua voz

os botões da minha blusa

se abrem como pétalas

à luz das más motivações

 

o zoom do teu olhar

alcança o zíper

as alças do meu sutiã

na força de um ciclone

 

e sinto teu hálito

expandindo a elastan

da minha lingerie

numa malignidade álacre.

(Start, p. 34)

 

A ideia de um ruminar contraditório entre indivíduos normalmente separados destaca a função transformadora do risível. Esse hiato, que permite a temporária abolição de barreiras sociais, cria um espaço para a liberação do corpo em êxtase. É nesse momento que ocorre a transgressão das normas, uma libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente. Nesse contexto, a transgressão torna-se meio de desconstruir as relações hierárquicas, privilegiadas, regradas e de tabus.

Flor de Malagueta traz à tona a concepção da pura exterioridade da língua, estabelecendo uma ruptura radical entre as palavras e as coisas. Essa dicotomia, destacada por Agamben, é apresentada como um desafio incontornável com o qual toda linguagem deve confrontar-se. Onde se destaca a separação entre a “língua e a fala”, sublinhando a natureza intrínseca dessa divisão que, mesmo com a pureza da existencialidade, permanece como uma barreira intransponível.

A ruptura radical entre a língua e a fala, conforme enfatizado por Agamben, destaca a impossibilidade de uma passagem direta entre essas duas dimensões. Mesmo que a existencialidade seja tratada com a máxima pureza, a linguagem continua a enfrentar o desafio de traduzir a complexidade do mundo.

 

em teu esmalte

mato a timidez

que me normatiza

 

na minha carne

ardem os rasgos

do teu domínio

 

são tuas unhas

extratores de regras

espinhos de acácia.

(Subversão, p. 42)

 

A análise crítica dessas ideias sugere que a linguagem, como meio de comunicação, é inerentemente limitada. A obra aponta para a dificuldade intrínseca de expressar completamente as nuances da experiência humana por meio das palavras. Essa reflexão profunda sobre a natureza da linguagem tem implicações significativas para a filosofia e a teoria linguística, provocando uma reconsideração da relação entre a linguagem e a realidade.

Ao abordar a pura exterioridade da língua, a obra nos convida a contemplar a complexidade e os desafios inerentes à comunicação verbal. A impossibilidade de uma passagem direta entre a língua e a fala ressalta a fragilidade da linguagem como um instrumento representativo. O autor não apenas destaca as limitações da expressão verbal, mas também incita a uma reflexão mais profunda sobre a natureza da comunicação e a busca constante por uma linguagem que possa capturar plenamente a riqueza do mundo que nos rodeia.

A poesia, vista como a música de um cantor soturno, revela um domínio peculiar de desnudar as paisagens do prazer. Neurivan Sousa, através de sua escrita, consegue criar uma atmosfera que transcende o mero ato físico e penetra nos recessos mais profundos da experiência humana. O “mundo micro de suas inquietações fenomenológicas do sentir” sugere uma introspecção íntima e uma exploração cuidadosa das nuances emocionais associadas ao erotismo.

 

A Maja Nua – Francisco Goya, 1800

 

A poesia erótica de Neurivan Sousa, embora talvez lhe falte o “escracho das palavras” típico desse gênero, revela-se como uma exploração profundamente fenomenológica do sentir. Mesmo quando opta por uma abordagem por vezes “conservadora” ao escrever sobre temas tão visceralmente carnais, o livro não apenas evidencia a sua habilidade em transcender convenções, mas também revela a capacidade de desbloquear um microcosmo de suas inquietações sobre o prazer. Neurivan Sousa, ao escolher essa via menos trilhada, convida o leitor a abandonar as expectativas convencionais e a se entregar a uma exploração mais sutil, porém não menos impactante, das complexidades do prazer humano.

Flor de Malagueta, apesar de sua escolha aparentemente “conservadora” na lírica erótica, é uma jornada poética que transcende as limitações do gênero. Sua capacidade de criar um “mundo micro de inquietações fenomenológicas” revela uma profunda compreensão das nuances do sentir, enquanto sua escrita sutil e musical revela um talento singular para desnudar as complexidades das paisagens humanas do prazer. A obra convida o leitor a uma viagem sensorial e emocional, demonstrando que a poesia erótica pode ser, ao mesmo tempo, refinada e profundamente penetrante.

 

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Bioque Mesito

 

Bioque Mesito, poeta. Autor de A inconstante órbita dos extremos (Litteralux, 2021), entre outros livros de poemas)