*César Borralho
QUEM É?
Ei, alto lá! Quem vem de lá? Quem vem
rufar, de longe, o ramerrão dos sapos?
Quem vem puxar, em mim, estes farrapos?
A morte? Deus? Os céus? Ninguém? Quem? QUEM?
Quem pisa tão de leve nos meus ossos
que é como um algodão numa ferida?
Quem vem rasgar o siso dos remorsos,
fazer doer a alma, a carne, a vida?
Um fantasma talvez, retardatário,
cumprindo a pena imposta a seu fadário,
por ter sido mesquinho, vil, ruim?
Ou uma fada que chama e que pretende
escancarar na noite um largo alpendre,
plantar em minha alma o seu jardim?
Ou um Anjo que passeia, pervagante,
e vem pousar a Voz no meu instante,
salvar um grão de luz que escorra em mim?
Quem, do fundo de mim, me chama assim?
(Viriato Gaspar, 14/06/2024)
O poema Quem É? de Viriato Gaspar é uma obra que reflete a meticulosa dedicação do poeta, que levou três anos para compô-lo. A profundidade e a complexidade emocional do texto revelam uma meditação intensa sobre a existência, a mortalidade e a busca pelo sentido.
O poema é composto por uma única estrofe de quatorze versos, sugerindo uma forma sonetista, embora não se prenda estritamente à métrica clássica. Essa escolha dá ao poema um ritmo quase musical, uma cadência que ecoa a inquietação e a urgência da pergunta central: “Quem é?”. A rima é rica e variada, criando uma textura sonora que enriquece a leitura.
A temática central gira em torno da busca e do questionamento existencial. A repetição de “Quem?” e “QUEM?” no primeiro verso estabelece imediatamente um tom de incerteza e urgência. A identidade do ser ou entidade que se aproxima é indefinida, criando um suspense que se mantém ao longo do poema. Gaspar utiliza imagens poderosas e contrastantes: de um lado, a leveza do “algodão numa ferida” e, do outro, a intensidade de “fazer doer a alma, a carne, a vida”. Essa dualidade reflete a complexidade da experiência humana, oscilando entre o sofrimento e a esperança.
A obra é rica em simbolismo. A “morte”, “Deus”, “céus” e “Ninguém” representam as várias facetas da busca humana por sentido e redenção. A leveza com que o ser pisa nos ossos do eu lírico sugere uma presença que é ao mesmo tempo benigna e dolorosa. As figuras do “fantasma”, da “fada” e do “Anjo” introduzem elementos do sobrenatural e do espiritual, ampliando o espectro de interpretação. O fantasma pode simbolizar arrependimentos passados, enquanto a fada representa uma promessa de renovação e o anjo, a possibilidade de salvação.
A linguagem de Gaspar é simultaneamente lírica e filosófica. Ele utiliza perguntas retóricas e imagens vívidas para explorar temas profundos de maneira acessível e emocionalmente ressonante. A escolha de palavras é cuidadosa, evocando sentimentos de incerteza e introspecção. A presença do “alpendre” e do “jardim” no texto oferece uma visão de abertura e fertilidade espiritual, contrastando com a escuridão da dúvida e do medo.
Quem É? é um poema que reflete a maestria de Viriato Gaspar em capturar a essência da condição humana. Através de sua linguagem evocativa e simbolismo profundo, ele nos convida a uma jornada introspectiva sobre a existência e a espiritualidade. A dedicação de três anos para a composição desta obra é evidente na sua complexidade e na sua capacidade de ressoar profundamente com o leitor. Gaspar nos deixa com uma pergunta que, talvez, não tenha resposta, mas cuja exploração é, por si só, uma viagem reveladora.
A Altura da Existência
Espírito atordoado por barulho, convicto
da incerteza e resoluto, não esconde a tristeza
que há na festa nem a alegria que há no luto,
amplia ao desvelar os mistérios deste mundo.
Em cada verso busca a luz perdida.
Na dúvida, encontra e canta a sua lida
pela palavra que paga a sua dívida
ao morrer semente e nascer planta.
Essa entidade não cria poesia, clareia o escuro.
Sua luminosidade nos apalpa e nos resgata
do nosso verbo infinitivo e imaturo.
Viriato é o tempo em sua procura,
piano que alforria a melodia. Gaspar é o
jovem que nos envelhece com ternura.
(César Borralho, 15/06/2024)
*
COMENTÁRIO DO POETA VIRIATO GASPAR (não pôde postar diretmente):
César Borralho é um amigo que a Poesia me presenteou. Como o saudoso Carvalho Júnior, aproximou-nos o amor pela palavra escrita, por essa arte tão maior e, ao mesmo tempo, tão incompreendida e enxovalhada.
César Borralho, como Carvalho Júnior, é um desses homens de alma imensa e coração enorme, que fazem da gentileza e da lhaneza de trato seu modo de existir no mundo. Constroem afetos, em lugar de muros.
Agradeço, de coração feliz, a gentileza de dedicar tempo e atenção a meus humildes rabiscos, e aproveito para abraçar, com fraterna sinceridade, o Poeta Antônio Aílton, que sempre me distingue e desvanece com seus gestos de amizade e consideração.
Linda vida ao Sacada Literária.
VG