Luís Augusto Cassas
1972. Tinha 19 anos. Amava os Beatles, Drummond, Caetano, Gullar e os Rolling Stones. E queria mudar o mundo pela poesia.
O nome Antroponáutica, título de um dos mais belos poemas de Bandeira Tribuzi encerrado com o antológico “o infinito maior é o próprio homem”) foi a senha que nos agrupou (eu, Valdelino, Fontenele, Viriato e Chagas Val) em torno de objetivo comum: derrubar os falsos moinhos de vento da velha ordem que pretendia restabelecer o caos e o atraso quando se comemorava o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. E, claro, vender o nosso peixe lírico-atômico assado nas brasas interiores.
Ademais, Tribuzi tinha cada de guerrilheiro-zen. Trazia na travessia coimbrã de retorno à urbe a memória da revelação do sol português e repovoava a nossa imaginação com a encarnação moderna de outro grande incompreendido que comera o pão que o diabo amassou: Antonio Gonçalves Dias. Poeta, jornalista, consultor econômico de programas governamentais, esse perfil não o cindira da provedoria doméstica. Era comum cruzarmos com ele, na travessia para o Liceu Maranhense, retornando do mercado, trazendo em uma das mãos um cofo de legumes, e na outra, uma galinha viva. Essa simplicidade franciscana exibia rico simbolismo: era um mestre em repartir a luz.
2
O ambiente de 1972 era tóxico, mas alegre. Éramos felizes, mas não sabíamos. Erasmo Dias arranchado nos Apicuns, chorava desolado no enterro de Natasha Trupskaia, gata vadia que Erasmo proclamava de elite, e Sérgio Brito retrucava, afirmando que transava com todos gatos vagabundos dos telhados. Carlos Cunha em verve hecatômbica deixara empenhado o filho, Carlos Anaxímenes, no Bar Athenas e demorara resgatar o vale, o que valeu choro e ranger de dentes dos clientes. O velho sábio Rubão Almeida desanovelava aos ventos, a bola branca com cinco carreteis de linha zero, que alavancava os “bodes” de Zezé Caveira, até depositá-los no colo de Deus.
Era questão de modernidade ou morte. A nossa juventude – todos estávamos no vintenário – exigia posição a altura. Afinal, tínhamos o necessário: duas mãos e o sentimento do mundo. Mas estávamos mais para desbunde poético-tropical que movimento, essa coisinha androide, com manifesto, programação, parecendo pré-vestibular acadêmico. Éramos na antirrotação da ordem, um contramovimento. Nossa sede eram os bares da vida.
Fontenele e Viriato, mais afoitos, passaram o comunicado de guerra aos jornais. Valdelino, era o public relation da guerrilha. Eu e Chagas Val nos especializamos em bastidores, operações especiais e profecias de bar. Todas deram certo. Depois, seguidos pelas mulheres, seguimos adiante para as nossas milionárias carreiras-solo. O IML não registrara nenhum cadáver passadista. Na verdade, já estavam mortos. O que fizemos foi cuspir o último gole na cova.
3
50 anos depois, releio a Antologia Poética do Movimento Antroponáutica (lançada pelo Departamento de Cultura do Estado, em 72),com capa do compositor César Teixeira. E um frio saudoso percorre-me a espinha. Tribuzi, o patrono virou adubo de rosas. Valdelino foi brincar de boi no céu. Chagas Val pulou nas águas do encantamento. O tempo que converte tudo em elegia, desfalcou-nos do “técnico” e “torcedor de bar”, José Ribamar Estrela Vasquez, que nos legitimava pela maturidade da presença etílica, compensando nossa jovialidade.
4
Refletindo na poesia os nossos enigmas, estigmas e paradigmas – o louco, o filosófico, o palhaço, o visionário, – vivendo e antivivendo nossa ira de ser, a lembrança do Antroponáutica sempre foi um sinalizador do menino interior. Cinquenta anos depois, através de mergulho na psicoterapia, ascese do azul, cavalgado os portais do manicômio e paraíso, redescobrimos a essência do real, a poesia.
Em 1972, éramos poucos. Agora somos muitos. Arrependimentos? Deveríamos ter amado mais, ousado mais, errado mais, e ter cumprido a promessa feita a Tribuzi, no poema “Compromisso”, de “ República dos Becos.” Tocar fogo nessa Academia. Teria prestado serviço de utilidade às gerações vindouras.
Em 1972, minha utopia era mudar o mundo pela poesia. Hoje, véspera de emplacar 70, nos idos de março, única certeza é que o mundo só poderá mudar pela poesia.
Luís augusto Cassas é poeta, publicou 24 livro de poemas desde sua estreia com República dos Becos, em 1981. Foi membro integrante do importante movimento da poesia maranhense Os Antroponautas, em 1972. Atualmente, reside em São Paulo.
Maravilhoso texto com veracidade analítica.