Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

CECÍLIA MEIRELES: Dos espectros aos elos coletivos

Antonio Aílton

*Artigo publicado em catalão na revista [impressa] Quaderns de Versàlia, IX, 2019, Cecília Meireles. “Papers de Versàlia, L’Estruch, Sabadel Fundacion, Barcelona. Também disponível no site: https://www.papersdeversalia.com/publicacions/quaderns/09-qdv-Cecilia-Meireles_cat.html

 

A poesia de Cecília Meireles[1] chega até nós, de modo geral, como pertencente ao regime do fugidio, do alheamento, do inefável, da imaterialidade espectral. Recusa ao mundo exterior em seu sentido experiencial e cotidiano, as nuvens, as sensações musicais de ritmos ora leves ora solenes, o mar antigo e absoluto, o imemorial, nos conduzem para além da premência diária, irônica e prosaica que caracteriza um dos lados do modernismo brasileiro.

Na introdução à Poesia Completa de Cecília, organizada por Antonio Carlos Secchin, o crítico Miguel Sanches Neto (2001) reconhece sobre essa poesia um “projeto voltado para a ascensão universalizante”, e reafirma o predicado de “espiritualista” à poeta. Cecília estreou, realmente, com um grupo místico-espiritualista, neossimbolista, o grupo Festa, nos anos 1920. Interligou-se, portanto, aos pressupostos de uma arte já tardia, arredia à materialidade, à objetividade e aos fatos cotidianos – o Simbolismo.  O crítico Alfredo Bosi, por sua vez, vê ainda na poesia ceciliana aspectos da memória e do enigma, identificando como linha mestra na obra da autora, desde o livro Viagem, de 1939, até Solombra, de 1963, um “sentimento de distância do eu lírico em relação ao mundo”, seguindo uma declaração da própria autora, que via em si, como maior defeito, “uma certa ausência do mundo”.

Deparamo-nos, por conseguinte, com uma poesia que elege como seu território uma temporalidade suspensiva, durativa, universal e coleante, cujas paisagens, experiências evocadas e escolhas de linguagem distanciam-se da temporalidade fática e da experiência da vida pedestre. Nessa temporalidade suspensiva –  aquela mesma que encontramos nos lirismos que cultivam o Ideal da própria poesia e da linguagem poética –, a memória, a nostalgia, o esquecimento e a fluidez dão acesso a uma dimensão poética que procura unir a palavra a seu sussurro musical e íntimo, experiencial e sensível, de modo que resgate seu encontro com o primordial, como na voz da poeta:

 

[…]

quem é que me leva a mim,

que peito nutre a duração desta presença,

que música embala a minha música que te embala,

a que oceano se prende e desprende

a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco…?[2]

 

Cecília Meireles em conferência, em 1952. Fonte:https://oglobo.globo.com

Apesar desse entendimento, torna-se necessário redimensionarmos o olhar no sentido de compreender aspectos da poesia ceciliana que mostram, justamente, formas de conexão com a realidade mundanal e manifestações de pertencimento ao coletivo. Isto porque não se trata, em Cecília, como em grande parte da arte de tendência simbolista, de transladar suas imagens significativas e suas paisagens poéticas para um reino feérico, de fauna mítica e inumana, nem de optar por florestas cerradas de símbolos enigmáticos. Suas imagens e paisagens são evocativas de um corpo – até por vezes comunitário e social –, alma e voz coletivas transfiguradas como pertencentes ao cunho da duração e da eternidade. São aspectos que a autora não apenas evoca, no sentido de trazer à tona suas reminiscências e afetividades, mas também convoca, no sentido de que os configura e os instrumentaliza no poema. O objetivo deste texto é, justamente, tratar dessa relação entre a poética de Cecília, por via de suas temporalidades, e aspectos de coletividades nela configurantes.

O primeiro ponto desse discernimento é o fato de que não podemos compreender tal fenômeno senão dentro da própria temporalidade que se estabelece como suspensiva e transcendente ao aqui-agora em que a poeta canta, ou seja: ao instante.  Ora, incrivelmente (ou melhor, paradoxalmente) é esse instante (contingente, factível) que motiva o canto em Cecília, conforme lemos em seu Motivo: “Eu canto porque o instante existe/ e minha vida está completa/ não sou alegre, nem sou triste,/ sou poeta”[3]. Porque o instante é a cronologia, a factualidade: a própria morte e poeira do tempo em sua efêmera exiguidade.

O corpo, mortal, habita o instante e só nele pode cantar: “E um dia sei que estarei mudo:/ – mais nada.”[4], conclui, no mesmo poema, mas somente depois de afirmar a eternidade do canto, capaz de superar a existência pontual: “Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno e asa ritmada”[5]. É, portanto, a ação (de cantar) que trará a cada instante sensível a abertura para a transcendência, a transfiguração para a eternidade presa no sopro de um corpo que emudece e nadifica-se. O cantar cessa, mas a canção permanece. Constitui-se aí o contraste entre o tempo ínfimo, mensurado, e a duração instaurada no ser, a qual se revelará, em Cecília, como canto e/ou poesia. O instante torna-se espaço, lugar de encontro para o provir, revir e porvir, a retenção e a proteção – e, portanto, da fagulha poética.

Podemos entender essa colocação de Cecília a partir da noção de contemporaneidade expressa pelo pensador italiano Giorgio Agamben (2009) e de suas concepções sobre o ser do poeta.  Para esse autor, a contemporaneidade é justamente uma inaderência, dissociação, anacronia em relação ao tempo [presente], o que amplia a visão do poeta em relação à sua época porque nesse afastamento ele interpreta o evento, percebe o seu escuro, sua cerração. O contemporâneo não se deixa cegar pela clareza quase sempre enganadora do momento em que vive, do seu “instante”. Ancorando-nos nesse pensamento, podemos entender que Cecília, como poeta contemporânea ao instante coloca-se sempre como uma alma absoluta acima deste instante, ou deste ponto – fatal –, numa temporalidade suspensiva que a permite tornar-se fluida, anacrônica, e desembocar numa outridade: condição de diferença, na qual é também lugar – lugar este construído, em sua poesia, através tanto de um repertório simbólico, tal como o mar, a viagem, o barco, o vento, a nuvem, a (vaga) música, quanto da possibilidade suspensiva de “postar-se além”, de onde possa postar-se para considerar os homens e suas preocupações diárias e mesquinhas, suas guerras – como no poema Jornal, longe: Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?/Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu[6] – ou, ainda, através das temporalidades que invoca nas experiências alegóricas do distanciamento, no espelho, na face da morta, nos outros corpos, na voz dos ausentes e nas formas poéticas às quais ela recorre.

É preciso lembrar que, numa poesia cuja simbólica mais forte seja a liquidez (marinha) e a fluidez (melódica), as descobertas, assim como as passagens temporais não se dão em saltos e fragmentos, mas em movimentos, fluídicos, inclusive da linguagem. As epifanias dos sujeitos de sua lírica são coleantes, como as nuvens que, acima dos mares, dos rios ou dos desertos, são ao mesmo tempo espelhos e transcendências contíguas à sua condição de derramamento, presente em todos os estados ou que podem tocar todas as dimensões, porque tudo, aí sim, se correspondem ou se tocam. Tais simbólicas e tais sentidos podem ser percebidos num poema que podemos compreender como epifânico, como este

 

A MENINA ENFERMA

 I

A  menina enferma tem no seu quarto formas inúmeras

que inventam espantalhos para os seus olhos sem ilusão

 […]

II

A mão da menina enferma refratou-se também na água pura

como, outras vezes, sua voz nesses rios do céu.

 […]

III

A menina enferma passeia no jardim brilhante,

de plantas úmidas, de flores frescas, de água cantante,

com pássaros sobre a folhagem.

 

A menina enferma apanha o sol nas mãos magrinhas:

seus olhos longos têm o desenho de andorinhas

num rosto sereno de imagem.

 

A menina enferma chegou perto do dia tão mansa

e tão simples como a lágrima sobre a esperança.

E acaba de descobrir que as nuvens também têm movimento.

 

Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de saudade

põe nesses barcos brancos seu sentimento de eternidade

e parte pelo claro vento.[7]

 

Neste poema, os elementos vão sutilmente seguindo uma revelação dada pelas dimensões das formas, dos sujeitos, da água cristalina que percorre o poema, acendendo sua frescura e extravasando-se em iluminação. Tudo passa do corpo e da mente dessa menina enferma, até mesmo de sua voz, de forma inconsútil e natural para os elementos ao derredor, para o mundo e para as descobertas, que ela vai integrando (epifanicamente: “E acaba de descobrir que as nuvens também têm movimento./ Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de saudade), até transportar-se imaginativamente, em contraste com seu infortúnio limitador, ao movimento das nuvens pelo claro vento, navegando nas asas etéreas que a transladam de sua fragilidade.

É essa possibilidade de correspondência com o transcendente a si, da fluidez e da temporalidade suspensiva que abre portas para evocações e convocações de uma coletividade que, não obstante a transcendência ao real e a etérea subjetividade nessa poesia, nela se fará presente pelo menos de três modos.

Em primeiro lugar, na forma de imaginários de uma coletividade memorial, de consanguinidade portuguesa, cancioneira, que se lhe torna [con]temporânea no canto – os avós, o passado, a ancestralidade portuguesa navegadora, a qual, por sua vez, remete a povos marinheiros, à navegação e às relações com o mar. De outro lado, também através de um discurso que remete a um ser social idealizado e esperançoso, açambarcado por uma pureza altiva latente na visão do sujeito lírico, ao mesmo tempo nostálgica e pedagógica, tornando necessária uma relação entre ideal poético e ideal social, apesar da constante afirmação de insulamento do sujeito lírico e seu pendor de morte, ante a crueza do instante e da vida comum. Um terceiro movimento dessa poesia transcendente rumo à coletividade fática e histórica dá-se de maneira ainda mais precisa, quando Cecília escolhe abordar entre suas temáticas um fato da história do Brasil, a Inconfidência Mineira[8], de modo a ressignificá-la e elevá-la à condição de matéria sensível, memorial e eterna.  Passo a tratar agora dessas três formas de presença coletiva na poesia de Cecília Meireles.

A presença da voz portuguesa ocorre nessa poesia ora de maneira clara ora de maneira difusa. Conhecemos aí explícitas referências ao universo português em vários poemas e dedicatórias de poemas, as quais servem também como endereçamento de leitura, como se constata em muitos pomas de Vaga Música, e a própria ligação atávica às origens portugueses, que rondam a saudade e a orfandade real de Cecília. Constatamos também uma proliferação de alegorias e simbólicas do mar ou da navegação (motivo emprestado já da cultura e da poesia portuguesa), aparecendo de maneira forte em Mar Absoluto – conforme já percebe Sanches Neto (2001, p. xliii): “Portugal entra neste volume pela homenagem a poetas lusos, referências a topônimos e aproveitamento de estruturas tradicionais da lírica portuguesa [e citando a poeta:] Barqueiro do Douro,/tão largo é teu rio/tão velho é teu barco,/tão velho e sombrio/ teu grave cantar”, entre outras ligações. Faz-se, pois, necessário dizer que talvez o que haja de mais forte formalmente na poesia ceciliana seja seu lastro de escolhas aprendido da lírica portuguesa, conforme já falado, mas de um empréstimo trovadoresco galego-português, que resgata não apenas um universo de albas e barcarolas,  ritmos e medidas medievalistas das canções redondilhas, a ocorrência da paralelística, a linguagem simples e acessível, a sensorialidade, a saudade, a presença daquele “ai” tão suspiroso, que se localiza entre a dor e a dó, o lamento, a nostalgia e a melancolia, tão presente na fatura da canção trovadoresca. Talvez seja impossível pensar a poesia de A a Z de Cecília sem esse resgate da forma cancioneira, que aí se torna voz da coletividade portuguesa: “Pela estrada de Santiago,/ dura estrada!/ vou caminhando em meu sangue/ como quem vai a cavalo.// Ordena-me a estrela que ande; alta estrela!/ Ai, por ordens de bem longe/ morremos a cada instante”[9].

O leitor de Cecília também deve esperar, eventualmente, quando não textos inteiramente de cunho ludo-pedagógico, obras voltadas para o mundo infantil, tal como A Festa das Letras (1937), livro feito em parceria com Josué de Castro e que, conforme dizem na apresentação da obra, “procura ser um pretexto agradável para fazer chegar às crianças, revestidos de certo encantamento, [esses] primeiros preceitos de higiene alimentar. De caráter muito mais acentuadamente lúdico temos o levíssimo e belo Ou Isto ou Aquilo, de 1964. Neste Cecília recorre também às formas dos trava-línguas, das parlendas infantis, das cirandas, dos joguinhos de palavras – formas, aliás, presentes também em sua poesia “para adultos” – formas de um imaginário infanto-ludo-pedagógico e de uma inocência com a qual os adultos devem aprender. É possível entender obras como estas e outras ainda em que há um ensaio de temas sociais, como “Morena, pena de Amor” (1939) dentro de certo caráter professoral e da experiência pedagógica de Cecília, que foi professora de profissão, formada pela Escola Normal do Rio de Janeiro, e produziu vasta obra em prosa voltada para a educação, aqui não abordada. Este aspecto torna-se injuntivo para obra de Cecília, na medida em que seu discurso poético acaba por aspirar a um ideal do belo, da leveza, do cuidado e da pureza.

Por fim, embora de maneira muito limitada (uma vez que adoto aqui um caráter mais panorâmico), não podemos deixar de considerar esta grande inserção de Cecília na história do Brasil, ainda tão presente e ressonante nestes tempos de neocolonialismos e descolonialismos, que é o antológico Romanceiro da Inconfidência, uma obra sem sombra de dúvidas fundamental em todos os aspectos para a poesia, [mesmo para] a história e para a memória brasileiras.  E, acerca disso, este foi o ato maior de Cecília: partir de um fato histórico já por si significativo e impressionante para elevá-lo à condição simbólica humana e a herança memorial identitária, criando um legado que emerge de maneira vívida e exemplar a qualquer ponto da eternidade, no estarrecedor reino dos homens.  Isso porque, se esse reino insano é enredado por promessas e palavras lançadas ao vento, estas também pode ser potencializadas para transfigurar e eternizar o fato:

 

Ai, palavras, ai, palavras,

que que estranha potência a vossa!

Ai, palavras, ai, palavras,

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois audácia,

calúnia, fúria, derrota…[10]

 

Na poesia de Cecília Meireles, o campo do real e as injunções coletivas e sociais tornam-se, assim, uma sombra, presença que espia pelas frestas etéreas das palavras, ou um espectro que conta as horas, som de martelo determinante e importuno, ao derredor.

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius N. Honesko. Chapecó, SC (BR): Editora Argos, 2009.

BOSI, Alfredo. Em torno da poesia de Cecília Meireles. In: ______. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 123-144.

MEIRELES, Cecilia. Poesia Completa. Org. Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SANCHES NETO, Miguel. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: MEIRELES, Cecilia. Poesia Completa. Org. Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

NOTAS:

[1] Cecília Benevides de Carvalho Meireles, nascida em 07/11/1901, no Rio de Janeiro, onde também faleceu, em 09/11/1964. Considerada a primeira grande voz feminina da brasileira.

 [2] Desamparo. Viagem, p. 247. Os poemas e respetivos livros citados neste texto fazem parte da extensa antologia Poesia Completa de Cecília Meireles, v. I e II, organizada por Antonio Carlos Secchin (2001). Essa obra reúne 27 livros de poesia, entre publicados e alguns inéditos, escritos de 1919 até 1965, além de uma seção de poemas dispersos escritos entre 1918 e 1964. Por questão de comodidade, citarei o título do poema, o livro em que foi publicado e a página referente no Poesia Completa.

[3] Viagem, p. 227.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Mar absoluto e outros poemas, p. 581.

[7] (Viagem, p. 312-314)

[8] A Inconfidência Mineira ou Conjuração Mineira foi um forte motim separatista ocorrido no século XVIII em favor da independência do Brasil, no estado de Minas Gerais, em revolta contra altos tributos impostos pelo trono português. O movimento foi desbaratado em 1789 pelos portugueses, e os líderes aniquilados, esquartejados em praça pública ou degredados. Dois desses líderes se destacaram: o dentista e ativista José Joaquim da Silva Xavier, chamado o Tiradentes, que foi despedaçado sob espetáculo público, corpo espalhado nos sítios da província, e o traidor do movimento, Joaquim Silvério dos Reis.

[9] Caminho. Retrato Natural, p. 651.

[10] Romance LIII ou Das palavras aéreas. Romanceiro da Inconfidência, p. 879

 

*Antonio Aílton (1968). Poeta, ensaísta, professor. Doutor em Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco. Tem 5 livros de poesia publicados, além da tese-ensaio  Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2018). é membro efetivo da Academia Ludovicense de Letras – ALL (São Luís do Maranhão, Brasil).