O diretor de As órbitas da água e Lamparina da Aurora, além de outros filmes importantes para o cinema brasileiro, concede entrevista exclusiva e incisiva para o Sacada Literária*
Antes de falar da direção de cinema, que é o teu universo e teu mergulho hoje, seria importante nos lembrarmos de um Fred que abriu um caminho para o audiovisual, o filme e a literatura cult em São Luís do Maranhão. Mas também para a cultura cinéfila e cinematográfica no Brasil, através da espetacular distribuidora Lume Filmes. Fale um pouco dessa estrada pra gente.
Sempre fui um completo apaixonado por cinema. E toda a minha formação veio do ato incansável de assistir filmes. Em determinada época de minha vida, assistia 5 longas-metragens por dia, durante mais de 5 anos, na minha adolescência. Resultou o processo natural de, quando adulto, resolver abrir uma distribuidora para exibir filmes que me tocaram, e que não estavam ainda disponíveis no Brasil. Natural e de muita luta. Porque, junto com a distribuidora sempre tivemos a Lume Filmes como uma produtora de cinema autoral, e também exibidora e realizadora de festivais e escola. Tudo muito sincronizado e com perfil claro, para que o público e a crítica já entendessem desde o início com que tipo de cinema a gente trabalharia e trabalhava. Com a Lume Filmes, lançamos mais de 300 filmes no circuito brasileiro, o que é um feito absurdamente grande, vindo de uma empresa do Maranhão, que atingiu muito mais respeito fora do estado e do país do que aqui na nossa cidade.
O que te levou, de fato, ao encanto e ao trabalho com o cinema? Quais os confiitos e as saídas entre o encanto e o trabalho que o cinema pode enfrentar?
Tive a sorte de ter pais artistas, que sempre me incentivaram a ter um contato grande com todo tipo de arte. Uma das primeiras lembranças que tenho de minha mãe é assistindo com ela Marcelino Pão e Vinho, no antigo Cine Roxy. De meu pai, nas inúmeras vezes que fomos ao Cine Passeio. Meu pai assistindo bêbado Down by Law de Jim Jarmusch, no Cine Candido Mendes no Rio de Janeiro, e gritando na sala que o filme era belo! Isso tudo me marcou.
Já os conflitos são muitos. Aqui em São Luís há uma total indiferença com o meu trabalho. Ninguém vê meus filmes e quando veem, assistem com descaso. Lá fora sou muito reconhecido e valorizado. Entro nas listas dos melhores filmes do ano na imprensa europeia, ganho prêmios em diversos festivais importantes, a crítica toda me respeita. Aqui não compreendem. Mas, se Nauro, que foi um grande poeta, tinham pessoas que o criticavam e menosprezavam mesmo sendo um gênio, falar mal ou não falar do seu filho é muito mais fácil e natural. O que já me deixa muito mais forte para continuar realizando. E mais livre. Referem-se a mim como um realizador que faz um “cinema da solidão”, e de fato isso já não me incomoda mais. É ate uma liberdade maior que eu tenho no ato de fazer e ser importante apenas para mim de fato esse cinema que eu crio. Com relação ao encantamento, o cinema é minha fonte de vida e minha única certeza no fazer artístico. Não tenho dúvidas de meu caminho nessa arte.
Você começa seu trabalho de direção com um curta de título homônimo ao de um livro da sua mãe, Arlete, o Litania da Velha, de 1996, e prossegue com títulos homônimos a livros do seu pai, Nauro Machado. Além disso, as figuras do pai e da mãe são basilares em tua obra, pela ausência/presença da figura forte de uma mãe (Exercício do Caos, Signo das Tetas…) ou pela presença/morte de um pai (Exercício do Caos, Lampari- na da Aurora, Órbitas da Água…) – fez o curta Infernos, com o próprio Nauro atuando… Fale da importância disso, de como você vê ou sente essa recorrência no sentido pessoal e no sentido do significado da própria linguagem do cinema que pela qual você optou.
Como falei acima, Nauro e Arlete são meus pilares na arte cinematográfica. E nada mais natural de tê-los por perto nos meus trabalhos. Minha mãe foi que me possibilitou eu entrar nesse mundo com Litania da Velha. O filme é mais dela do que meu. Já com Infernos, fez-me aproximar ainda mais de meu pai. Os temas dos filmes são meus e livres. Há algo de tragédia grega, mas também de cinema pequeno, menor, que retrata os problemas do meu estado e país: sociais, políticos e humanos. Mas são filmes que tento revelar o indivíduo no universal. Através de um cinema que é muito mais poesia do que prosa. Já tenho uma escrita própria, além de um modo próprio de produzir e fazer.
Qual a relação possível entre poesia e cinema?
Cinema sempre é poesia. Pode ser mal poesia ou boa. Mas a imagem, os sons, a intepretação dos atores e a própria linguagem cinematográfica é poesia, é ritmo, é urgência. Quando você junta dois planos e resignifica o que eles propõe, você está criando um verso. E o caminho que você trata na montagem é algo muito parecido com a criação poética. É sua escrita, a sua forma de contar uma história, um sentimento, uma ordem no mundo sua.
Qual é a tua concepção do filme autoral, e quais os limites da linguagem autoral em relação ao mercado cinematográfico e ao grande público? Como você lida com a tensão da autoria, em sua recepção e compreensão?
Hoje não penso mais nada na relação que o público possa ter com a minha obra. Nem a crítica, na verdade. Faço cinema apenas com os meus anseios, desejos e propostas. Acredito, sim, que cada pessoa que assiste ao filme pode apreender algo muito particular do filme. Mas para mim será uma coisa boa apenas para quem o apreende. A minha relação com a minha obra é pessoal, única. Eu sei o que ela significa para mim. Isso é o mais importante. Por isso a questão do público é tão insignificante: pois não vejo o cinema como mercado, objeto de produção. Ela é uma obra: que é extensão minha, que me revela e me explica. E, além disso, explica o mundo para mim.
Você tem permanecido com alguns atores, principalmente nos teus longas, os quais, inclusive, transmitem aos filmes uma carga visceral e corporal muito grande. Alguns atores, que não são necessariamente do universo cinematográfico, artistas de outras áreas, ou pessoas não engajadas nesse meio, são alçadas à atuação, à representação de uma humanidade. O que te direciona nessas escolhas ou convites, o que você busca neles?
Sempre a verdade e a relação que eles têm com meu cinema. Geralmente são atores que querem realmente trabalhar comigo, que têm esse desejo. Isso já é meio caminho andado: a confiança que eles têm em mim. Todos entram sabendo que vai ser uma experiência visceral e única. E estão dispostos a isso. Que tem orgulho do que eu faço e de como eu faço: sem medo, com possibilidades infinitas de caminho, sem censura. E toando como base a liberdade de criação. Além disso, uso atores ou artistas de outras áreas, ou não atores, que são representações do que eu quero inserir em termos de signos e símbolos no meu cinema.
Como você se sente em relação ao apoio hoje do cinema no Brasil, das instituições culturais e do próprio estado em que você produz, o Maranhão, no que diz respeito à tua produção cultural, ao cinema?
Quase nulo. Há editais e são mal desenvolvidos. Os prêmios são dados para empresas que estão em dias com pagamentos de impostos, mas que não entregam nenhum trabalho e não fazem nada de relevante. Triste, uma província sempre, uma eterna província. O cinema não é considerado arte ou cultura em muitos lugares do nosso país. E São Luís, não foge disso. Vejo tentativas, sim. Mas está bem longe, mas bastante longe mesmo, de ser uma coisa justa, com princípio, com regras claras. Edital não é um ato cultural. É mais um ato político e estru- tural de como ter a arte “embaixo do braço”, para ser uma manifestação política e social do status quo estabelecido por quem faz os editais. E assim a cultura do nosso estado é e sempre foi tocada.
Quais alguns dos prêmios ou reconhecimentos de que você mais se orgulha de ter conquistado, dentre os tantos que você tem recebido? Fale um pouco desse reconhecimento também em relação ao expresso no livro “Um Porto no Purgatório”.
Uma homenagem bela foi na Mostra Nordestino de Cinema Contemporâneo na Bahia, no qual fui o homenageado. Porque é um festival importante, e no interior da Bahia. Feito por cineastas e estudantes de cinema daquele estado que, sem me conhecerem pessoalmente, me chamaram para ser homenageado do ano. Outro foi quando fui chamado para dar um curso de cinema de guerrilha no Festival de Brasília para alunos da periferia daquela cidade. Quanto aos prêmios, tiveram mais de 100, em diversos festivais importantes, mas digo honestamente que o prêmio é mais um valor representativo do júri que dá ao filme uma premiação do que propriamente do fil- me. O júri que demonstra o seu gosto ao premiar essa ou aquela obra. Portanto, é um julgamento de um número pequeno de pessoas que avaliam mais o seu gosto particular do que propriamente a obra como conceito artístico. O filme não precisa de prêmio para se estabelecer como uma obra importante. Ele já o é para algumas pessoas. Isso é o que importa. Ganhei Huesca (Espanha), Montecantini (Itália), Tiradentes (Brasil). Participei de Thessaloniki (Grécia), Durban (Africa do Sul), Kitzbuhel (Austria)… Todos importantes e reconhecidos festivais. Mas tão belo quanto passar neles é exibir o filme na Comunidade do Mangue Seco (onde As Órbitas da Água foi filmado) ou na galpão do Bumba Meu Boi do Anjo da Guarda (onde Boi de Lágrimas foi filmado). Quanto ao livro Um Porto no Purgatório é mais um recorte do que já escreveram sobre mim, mais um registro de pessoas que foram tocadas pelos meus filmes e minha obra, que acredito ainda esteja na sua concepção inicial. Tenho muito caminho ainda a percorrer. Somente em 2022 teremos 3 obras grandes sendo lançadas: Punga (série para TV), Percurso de Sombras (longa independente), Noite Ambulatória (longa em co-produção internacional a ser filmado no Chile), e Rosas, primeiro trabalho não autoral de minha carreira, que subverto o filme documental fazendo uma obra híbrida entre animação, documental e ficção. Portanto continuar fazendo e consequentemente vivendo, como sei e posso viver, produzindo meus trabalhos e resignificando meu mundo através dos meus filmes.
Para assistir ao filme AS ÓRBITAS DA ÁGUA Youtube, clique no link abaixo “Assistir no YouTube”.
Atenção: filme com restrição de idade!
*Essa entrevista foi realizada por Antonio Aílton e publicada no Sacada Literária de outubro/2021, com algumas considerações do entrevistado relativas ao cenário daquele momento.
O comentário que gostaria de fazer é parabenizar o Frederico pela sua resistência e resiliência. Está fazendo uma obra belíssima cinematográfica de muito valor para a cultura do cinema brasileiro e universal. Sabendo que o Maranhão é um zero a esquerda no que diz respeito ao seu magnífico trabalho. Não recebe o apoio necessário. Mas está sempre em busca de uma nova produção.