O desespero da paz
Dias Miranda*
[Para Arlete Nogueira da Cruz Machado]
Esplêndido estava o dia com os jorros do sol adentrando as casas. As cortinas iam e vinham num vaivém marítimo, e as flores nos jarros das janelas pediam paz ao vento. Mas o vento continuava soprando, teimoso.
A mulher entrou em casa pela porta dos fundos, e, cansada, jogou sobre a mesa as sacolas das compras. Tomou um copo de água e sentou-se. De onde estava via a extensão do corredor, o piso se estendia limpo, cada coisa repousava em seu lugar.
“Enfim, sozinha.”
Disse deixando sair do peito uma lufada de ar. Respirou fundo e pousou a mão sobre o tampo da mesa. Como era bom ter paz. As crianças estavam para a escola, o marido para o trabalho, e ainda, para que tudo viesse se completar ela estava de férias e os vizinhos da frente haviam viajado. Estendeu o olhar através da janela, viu distante um pássaro pousado no fio de energia.
“O silêncio é ouro!”
Estava enleada com a visão simples do pássaro em equilíbrio. Até os bichos precisavam de paz, talvez, estes mais que nós mesmos. Não iria desfazer as compras já. Não. Deixaria tudo ali, depois sim, depois de ter desfrutado desse momento de pleno absolutismo seu é que, então, guardaria tudo nos lugares devidos. Ela queria, por simples que fosse o momento, ela queria fluir daquilo que estava sentindo. Um sentimento brando e novo. Nunca, nunca mesmo, lembrava-se de ter sentido algo tão alvissareiro. Era como se estivesse sendo envolvida pela mão do próprio Deus, e no meio de Sua mão estivesse renascendo para instantes mais intensos. A vida inteira fora pautada em estudos, escolas; faculdades. E para quê? – estava ali, cheia de compras e com o almoço para fazer. E os diplomas emoldurados na parede da sala. Telas mortas.
O casamento a perturbava, as crianças tiravam seu sossego, os vizinhos a incomodavam. Não sabia pra que tanta gente a cercava. Será que essas pessoas não percebiam que ela precisava de um instante só seu? – Pois sim, precisava. Mas como ela não gritava, achavam, então, que a paz lhe era desnecessária.
Alongou as pernas, estendendo-as ao comprido do piso. Olhou bem para as unhas, há tempos não ia à manicura. Seus pés, pretos e de dedos roliços, estavam cansados. Subira a ladeira, e ainda trazia nos braços as sacolas com o peso das compras.
Oh! Meu Deus! As compras! Tinha de pôr tudo no lugar, quase dez horas. O almoço das crianças tinha de ser preparado. Sua paz fora cortada.
Oh! Cortaram-lhe o cordão umbilical da paz. Somente hoje em meio a brancura desse dia é que pudera desfrutar de certo sossego interior. Como sentia-se bem, refestelando-se na cadeira e olhando a vida correr lá fora. Sentia-se outra, como dizem por aí.
Embora tivesse se agitado ligeiramente com as compras e o horário do almoço dos meninos, não se levantou da cadeira logo. Estendeu ao longo do corpo os braços e fechou os olhos. Tão absorvida ficou em seus pensamentos que adormeceu. Quando se espantou havia passado quase uma hora. Não teria mais condições de preparar o almoço. Atarantou-se toda. Corria agora pela cozinha como um pássaro acuado em gaiola com travas. Guardou as compras. As frutas sobre a mesa descansavam. Daria aos meninos frutas. Alimentar-se-iam hoje do açúcar da terra, e não do sangue. Deixaria ao menos por hoje que o sangue descansasse no interior da carne.
Na porta o carro da escola parou, os meninos desceram e entraram correndo pela casa.
“Ah!”
Ela suspirou e conteve o pranto que se avolumava por dentro. Sua paz fora destronada.
(Do livro inédito de contos A dança das gaivotas)
*Dias Miranda é maranhense de São Luís, aos 26 anos publicou seu primeiro livro: Estrela errante, poesias, com crítica de capa assinada pelo poeta Nauro Machado. Anteriormente foi vencedor do concurso literário do CEFET, ganhando em primeiro lugar na categoria poesia. Também foi vencedor do Festival de poesias do UNICEUMA, ganhando o troféu Bandeira Tribuzzi. Em dezembro de 2005 produziu o espetáculo A mulher distante, do qual assina também o texto.
Em 2020 lança o livro de contos A caravana dos afogados pela Chiado Books editora.
Convidado especial duas vezes consecutivas da FELIS – Feira do livro de São Luís, como palestrante.
As mulheres atualmente estão sobrecarregadas, quando decidimos ter um momento de sossego somos julgadas pela sociedade. É necessário valorizar o trabalho doméstico.
O conto de Dias Miranda relata e quão é importante a mulher ter um momento pra si.