POEMAS DE VIRIATO GASPAR
(DO LIVRO LAPIDAÇÕES DA NOITE, O PEQUENO MISSAL DAS HORAS TURVAS & OUTROS)
ANDANDO AO LÉU, COM RUMI, PELA TARDE
Apenas deixar ir, abrir os dedos
da alma e seus arfares avarentos.
Esse pavor de instar, reter o vento,
secar por dentro o coração nos medos.
Podar os brilhos. Largar as aparências.
E o que sobrar no fim é a tua essência.
O ESTRANGEIRO SOTURNO
Iremos ao luar. Sem pressa alguma.
Sem nenhuma intenção ou rumo certo.
Nenhum mapa ou farol, nenhum roteiro.
Somente a vastidão, como uma porta,
para um clarão lá fora, que não somos.
O mundo hoje é cruel, e as horas cortam,
cada instante navalha, e os gestos pesam.
Alguma coisa derreteu em nós
que não acende mais o que era o dia.
Mas resta prosseguir, varar, cumprir
o mundo e seus farfalhos dissonantes,
a borra enferrujada dos instantes.
Um ET a camuflar-se em seu iglu.
Triste e dorido. Feito um velho blue.
O CÃO POR DENTRO
O Anjo que me coube veio cego
para os risos do mundo e seus farfalhos.
Deixou-me os dedos sempre assim, grisalhos,
vergados para um além que não trafego.
Um Anjo que mistura um certo aprumo
com alguma desrazão, quase um fastio.
Um mar tão vasto que encolhesse em rio
para caber a profusão dos rumos.
O Anjo que caminha nos meus passos
traz alvoradas verdes nos cadarços
e uma estranha pulsão nos olhos fundos.
Damo-nos bem. Ouvimo-nos silentes,
como quem já morreu e já nem sente
os látegos da carne, o ribombar do mundo.
[POEMA] XI
Que sobra do luar, quando amanhece?
Das horas que gastamos noite adentro?
Há que teimar com a birra de uma prece
ou só deixar que escorram em passatempo?
E se eu Rilkar, os Anjos me ouviriam?
Dariam coração às minhas pedras?
Transformariam em luz todas as merdas
que derramei no pus das mãos baldias?
Não há respostas prontas. Só perguntas.
Esse indagar ao mar por que que estua,
ao vento por que sopra, e encharca a rua
de gravetos e folhas já defuntas.
Deus me daria o mar, se eu lhe pedisse?
Ou me daria ao mar, se eu merecesse?
FAROL FECHADO
(em lembrança de meu pai)
Um velho me gritava
da janela
pra eu tomar cuidado
ao atravessar a rua,
tomar cuidado
ao atravessar a vida,
não tropeçar no mundo
e seus açougues.
A rua escura
e suja
fede a tempo passado
e solidão.
Atravesso a rua,
com cuidado.
A casa ainda está lá.
O velho, não.
A ILHA
Janelas. Poeira. Mosquitos. Meu pai ventava em azul as paredes da insônia. Lamparinas. Calor. Formigas. Fome.
Os homens exercitavam vagas vidas vazias. Ideias. Ideais. Lixo. Luxo. Lisura espectral.
Uma rede sozinha. Var/ando a var anda. Var/ânsias. Átrios de igrejas. Sé. Carmo. Desterro. Remédios. Pam ta leão. Garrafas. Gumes. Cuspo. Fé. Fezes.
Padre, dai-me a vossa bênção porque pe(s)quei. Ide em gás e que o terror vos arrebanhe. Mentiras. AMEN/tiras.
Os dias despejavam adrenalina. Ossos magros. Fome. Fumo. Fama. Fúria. Os homens inventavam teorias para explicar o medo. Mastigar o medo. O muco murcho da matilha amorfa. A porca era gorda demais. E a gente tinha fome. Mais fome do que amor ou humanidade.
As mulheres eram qualquer coisa secreta. Proibida. O veludo molhado da rosa incendiada na penugem. Uma dúzia de sonhos. Uma saga de dúvidas. Tesão. Teso. Ah ânsia de voar sobre as ladeiras e amanhecer assombros nos sobrados.
A vida era o desfiar morrente de uma esperança sem futuro. Ex-v(a)ida a cada dia. Como o rosário comprido de minha mãe. Deus era o pavor absoluto. O nome extremo do medo.
O sol sugava o sumo do suor do osso. Os outros, ostras incrustadas no estertor antigo. O coração ganindo a própria gana. A vida vindo em vão e vã voando. Veloz. Vaga. Vadia. Vazia.
A casa era pequena, mas cabia a tosse de meu pai e a sua rede. O armador tecia na parede um gemido asmático de animal doméstico. A noite se enchia de calor e paz com o roc-roc-roc da velha rede de meu pai, insone.
O mundo era uma ilha sem horizontes. Os barcos passavam. Como os dias. O mar aberto era uma chaga alheia. Feita de águas e melancolias.
A vida era uma ilha. Afogada em seu fogo de frio.
A vida era uma
…
(a vida foi
se.)
São Luís do Maranhão – desenhos de Mazé Leite. Fonte: artemazeh.blogspot.com
O TRÂNSFUGA PÁVIDO
(a Nauro Machado, em memória)
Fugaz, como estas mãos que vão morrer,
que vão bordar-se em pó, em pez, em nada,
talvez uma lembrança esbranquiçada
de quem gastei, passei, ou fui sem ser.
Fugaz como o não ver dos olhos magros,
fechados para o voo das distâncias,
fugaz como estes pés, pelos cansaços
que carregaram as pernas e as ânsias.
Fugaz como o que vive, e que demanda
oitenta invernações das pernas bambas,
do coração rajado de estesias.
Fugaz, falaz, à parte dos instantes,
uma promessa que não foi avante,
encalhou no silêncio que o dizia.
SONETO 5
(a Arlete Nogueira da Cruz Machado)
País de mim, noturno território,
alfândega de alforjes sem carrego.
Muralhas de marulhos transitórios,
amortalhando léguas de morcegos.
País de Ignez já morta e sem sossego,
onde a paz é o contar contraditório
dos naufrágios, nas c(r)ostas do envoltório,
nas florestas floridas de sóis negros.
Raiz de apodrecidas pentecostes,
de bêbados babando em hóstia e hostes
de meninos já mortos nos Natais.
E ao centro, onde há uma cruz, com um Cristo morto,
havia, antigamente, um velho porto,
de onde partiam nuvens de pardais.
OFI – SINA
(em memória de Francisco Carvalho Júnior, um Poeta)
Os versos navalhados. Golpes de espátula na tela em branco do que a palavra acende. Ou que apenas entremostra em goles súbitos. A palavra enxertada de outros mundos. Novos odores. Sabores de outras pipas, polpas, pupas. Voejondas.
Debulhar o silêncio, esfarelá-lo. Trinchá-lo em pequeninos estilhaços. Espremer o tutano das palavras, bulir no lá por dentro do que (es)fingem. Inventar outros assombros nos seus sustos, desfraldar outros ecos no que calam.
Trazê-las pra voar, no vão que o verso instiga. No que o poema nega, sonega, pisca, pulsa, dança, escamoteia. Escama. Veia.
Eivá-las de magia. Inflá-las de manhã, de voos pássaros, de risos de crianças, de regatos, de largos vaus de anil, de outros azules. Azulajos. Musiqualidade. In posse. Bílis. Dados.
Sojigar seus vislumbres. Retorcê-los. Colar os filamentos dos calados. Espanto, sim. Mas mais que encanto, alumbramento. Re-velação do 10 vendado.
Epifania de encharcar os dedos no que ninguém ousou nem viu por onde. Essência. Caber esse orifácil tão difícil. Físsil.
Mais do que in vento. Salto, fogo, voo.
Pelo avesso, ou mais lá. Mais adiante.
Depois. Pra lá dessas fronteiras que seguram este aqui. A quilo. Ao colo.
RETRATO DO POETA QUANDO VELHO
Após tantos poemas, os que fez, os que disse, os que só leu, quase cego de ver por dentro o fora, meio surdo de ouvir inaudizíveis, de perscrutar silêncios e palavras, de mariscar imagens e vocábulos, se senta no escuro com seus versos, a ver se lhe palpitam um mais à frente. Um que talvez redima a cepa esquálida, mais feita de borrões e de apagados. A lâmpada sem luz de alguma fresta por onde escapular dos seus tropassos.
Sozinho, no escuro, enclausurado, é um animal doméstico assustado, imprensado entre os estrondos do mundo que guerreia e a certeza sem fim de haver passado. De não fazer sentido o arre/banhado, um campo azul de dúvidas e esperas.
Tateia a escuridão, desamparado.
O poeta é um velho inabitado. Um mar que o sal chupou. E derroteu.
***
Viriato Santos Gaspar nasceu em São Luís do Maranhão, em sete de março de 1952, filho do ferroviário aposentado Clóvis Roxo Gaspar e da costureira Sebastiana Santos Gaspar. Descobriu a Poesia ainda muito jovem, leitor contumaz do caderno de sonetos de sua mãe, tendo se encantado de vez pela magia da palavra escrita ao ler o episódio “O Velho do Restelo”, de os Lusíadas, quando estudava o curso ginasial no Liceu Maranhense.
Já em 1970, com seu primeiro livro de poemas, Portos sem rumo, recebeu menção-honrosa da Academia Maranhense de Letras. E, no mesmo ano, venceu, com o livro Teodisseia, o Concurso “Cidade de São Luís”, o mais importante de sua terra, que tornou a ganhar, no ano seguinte, com o livro 50 Sonetos, livros que preferiu manter inéditos por considerá-los sem o devido rigor formal.
Ao lado de outros jovens poetas, lançou, no início da década de 70, o MOVIMENTO ANTROPONÁUTICA, título de um poema do livro Pele e osso, do grande poeta maranhense Bandeira Tribuzi. A antologia do Movimento Antroponáutica, publicada pelo SIOGE em 1972, por iniciativa da escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado, assinalou a chegada de uma nova geração de poetas que pretendiam construir uma linguagem moderna na literatura do Estado, que, 50 anos depois da Semana de 22, ainda mantinha, no geral, parâmetros literários e diretrizes estéticas de antes do Modernismo.
Em 1975, com mais alguns outros poetas e por iniciativa de Arlete Nogueira da Cruz e dos escritores Jomar Morais e José do Nascimento Morais Filho, integrou a antologia Hora do Guarnicê, na qual, embora cada poeta mantivesse sua linguagem própria e suas especificidades poéticas, delineava-se um movimento de renovação e de modernidade na poesia maranhense.
Imigrou do Maranhão, em busca de melhores condições de vida, em 1976, para o Rio de Janeiro, tendo se radicado, desde 1978, em Brasília, onde reside até hoje, depois de aposentar-se do Superior Tribunal de Justiça ─ STJ. Detentor de vários prêmios literários no Maranhão e em Brasília, tem participação em mais de uma dúzia de antologias poéticas.
Considerado um dos nomes mais importantes de sua geração na poesia do Maranhão, tem poemas publicados em vários veículos nacionais. Em 31 de março de 2009, recebeu uma homenagem ─ “Tributo ao Poeta”, da Biblioteca Nacional de Brasília, pelo conjunto de sua obra poética.
Tem os seguintes livros publicados:
1 ─ MANHÃ PORTÁTIL ─ poesia. Gráfica SIOGE, Plano Editorial “Gonçalves Dias”, São Luís-MA, 1984.
2 ─ ONIPRESENÇA ─ poesia (versão incompleta). Gráfica SIOGE, Plano Editorial “Maranhão Sobrinho”, São Luís-MA, 1986.
3 ─ A LÂMINA DO GRITO ─ poesia. Gráfica SIOGE, Plano Editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, São Luís-MA, 1988.
4 ─ SÁFARA SAFRA ─ poesia. Plano Editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, São Luís-MA, 1994.
5 ─ POEMAS DE VIRIATO GASPAR ─ libreto nº 44, da série “Escritores Brasileiros Contemporâneos”, Biblioteca Nacional de Brasília, Thesaurus Editora de Brasília, 2009.
6 ─ ONIPRESENÇA – versão completa. Editora Penalux, São Paulo—SP, 2021.
7 ─ FRAGMUITOS DE MIM, antologia de sua obra poética, Editora Penalux-SP, 2023.
Possui, prontos para edição, dois novos livros de poemas − Voo avesso e Lapidação da noite, e trabalha atualmente em um volume de “contos e desencontros”, Entre vastos e em uma coletânea de “proesia” (poemas em prosa à maneira de Baudelaire), chamada “LABORÍNTIMO”. Além desses, prepara um livro de salmos modernos, Sílabas de fogo e organiza Oceânima, a reunião de seus livros publicados.
Contatos com VG: [email protected] e [email protected]
**Seleção de poemas: Antonio Aílton
Homenagem aos 72 anos do poeta Viriato Gaspar
A poesia de Viriato Gaspar é uma espada no campo de batalha cortando a couraça dos heróis, deixando à mostra a carcaça sem plasma sanguíneo, etérea como a neblina dos faróis. Há um vento frio em seus versos que guarda o pensamento e o arrasta para longe do sol ou do esquecimento.
O sol do cotidiano literário tem pressa e exige vaidade da qual é tão difícil se esquivar ou se esconder. A poesia de Viriato Gaspar conversa no poente. Esse poeta eclode no deserto e nos concede seu pote de barro e palavra para que possamos clamar pela própria sede que, antes, nem sabíamos. Então chove, chove e o rio transborda. A poesia de Viriato Gaspar nos ajuda a atravessar a ponte que não existe e nos permite apear os mortos que já não nos suportam.
Viriato Gaspar é daqueles poetas que leem o íntimo das coisas que não vemos e a gente para de escrever, imediatamente, para admirar e aprender o que dificilmente aprendemos. Ele nos faz perceber que estávamos mais perto dos enganos das palavras que dos versos que escavamos no garimpo que não temos.
Viva o Poeta Vivo de Poesia!