Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Kissyan Castro, poeta - foto: divulgação

KISSYAN CASTRO – Atroz navalha, poesia

POEMAS DE KISSYAN CASTRO

 

lição gastronômica

 

à maneira dos peixes
no paladar dos mares

as línguas do silêncio
nadam juntas no pó

ó cardápio em mim
onde sem pai naufrago:

és o que de Deus cabe
quando porto nenhum

 

 

 

 

inventário

 

 

não tive ouro ou gado que me valha
neste pasto-imposto
cobrado à sanha de metralha

(em vez de dólar dolo
o duplo das vezes fezes)

não tive ouro ou gado que me valha
neste pasto feito excremento

o silêncio atroz que me navalha
é tudo o que hoje ostento

 

 

ala obstétrica

 

sem centro ou cohab onde habite
vivo a guitarrear teu sexo
como um pássaro hemorrágico

palavra de um só cadáver
para a selfie que é de dois
no céu inverso do umbigo

eternidade – este biombo
da garganta até o hades
do vocábulo por dentro

eternidade – esta maca
no vazio a ser dos ossos
um deus nascendo da cloaca

 

tricotomia

 

exumai das auroras as mulheres
vítimas da ordem arsênica
que contra muros abrem palavras
com suas éguas apocalípticas

exumai das auroras as mandalas
para o equívoco do carbono
guardado em cancro na gaveta

exumai das auroras as muletas
que assediam o pão do inventário

morte – prodígios do silêncio
na fúria de beatos e burocratas:

buscai o fortuito galo na aurora
de mulheres mandalas e muletas
para o exumo de uma sede igual

 

 

 

 

não se ata a mão do poema

 

 

 

no pão dos léxicos
o poema esbraceja
acéfalo:

indecisa metrópole
com suas ancas de fruta
e orfandade

prurido apenas
na zoologia gástrica
dos ventos

o poema sem burca
mija o descalço fruto
da alma em remorso

 

 

cabeçalho

 

há dias em que é difícil carregar o sangue
tanta mobília e nenhum alarido

a vida mais parece uma debulha
a inibir o cômputo de pássaros

(o chão nos acompanha
como uma matilha aturdida
na garganta

o cadáver e os passos
sobre a grama depois)

o olhar mudo das cifras
arranha a eternidade cotidiana
com sua hierarquia líquida

há dias e dias e nenhum deles dura
uma braça um fluxo um cigarro:
os búfalos da pele esbarram na noite mínima

 

 

 

preenchimento do branco

 

antes eu era imaginário
rosto sem tráfego
algo que alguém deixou
passar
mau apanhado pelo dia

hoje sou o que foi feito de mim
o costume de estar vivendo

 

 

 

 

 

retiro

 

 

meu minuto de silêncio
tem durado 44 anos e alguns livros
e mais não tenho feito senão ouvir
ouvir que as pessoas têm tantas palavras a dizer
que mais não fazem senão dizer
dizer o que não sabem ouvir
dizer para nada saber
pois o que dizem dizem fora das palavras
e nelas tropeçam e se perdem
no caminho

meu minuto de silêncio não tem duração
é todo plumas

 

 

 

 

 

Kissyan Castro nasceu em Barra do Corda, Maranhão, em 1979. É poeta e pesquisador, graduado em Letras pela Universidade Federal do Amapá, pós-graduado em História e Literatura Brasileira. Publicou, entre outros livros de poemas, Bodas de Pedra (Chiado, 2013), O Estreito de Éden (Penalux, 2017) e Pássaros Lacunares (Penalux, 2023). Com participação nas coletâneas Caleidoscópio (Andross), Além da Terra Além do Céu (Chiado), Babaçu Lâmina (Patuá) e Haicais e Tankas (Persona), tem poemas publicados em diversos sites, jornais e revistas digitais, entre as quais Germina, Mallarmargens, Caqui, Literatura & Fechadura, Acrobata e Portal de Poesia Ibero-Americana.