por Rogério Rocha
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), nosso maior escritor, nunca conheceu a Europa. Queria muito. Sonhou com isso. Conhecer e ser lido pelo Velho Mundo.
Sim, é verdade! O autor de obras-primas como O Alienista (1882), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), morreu sem sair do país. Aliás, só saiu do seu Rio de Janeiro uma vez, entre dezembro de 1878 e março de 1879, quando foi a Nova Friburgo tratar-se de uma infecção nos olhos.
Se a pessoa física de Machado de Assis nunca aportou em outras plagas, suas obras, contudo, já foram publicadas em 24 países e traduzidas para 35 idiomas. Só para citar dois bons exemplos: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) virou Mémoires d’Outre-Tombe de Braz Cubas em francês e En Vranten Herres Betragtninger (algo como Considerações de Um Rabugento) em dinamarquês.
Parte do sucesso machadiano fora do Brasil está ligado à forma como construiu seus textos, amalgamados em riquíssimas teias de relações humanas, pautadas pela universalidade dos seus temas, pela fluência narrativa e sua impressionante comunicabilidade, pela densidade dos personagens e questões filosóficas por ele exploradas.
Apesar disso, e de tantas outras características que o elevaram ao posto de maior romancista da nossa história, figura hoje apenas em modesta décima posição no rol de autores de língua portuguesa mais traduzidos. Outrossim, levando-se em conta ter sido um magistral escritor, não chega perto sequer do número de traduções de nosso autor mais lido em outras línguas (o também carioca Paulo Coelho), que, segundo dados da UNESCO, teve, até o ano de 2012, 1.166 traduções (contra 97 do velho Machado).
A demora para ter seus livros vertidos em outros idiomas, aliás, impediu que pudesse ter alcançado maior projeção no exterior. Após sua morte, a primeira tradução de sua obra em espanhol (Memórias póstumas de Brás Cubas) ocorreu em 1902, no Uruguai. No idioma francês, em 1910. Depois disso, foi traduzido para o alemão somente em 1950, e para o inglês no ano seguinte, o que, convenhamos, configura um hiato considerável para um autor do seu porte.
Machado de Assis, como podemos perceber, não é mesmo nosso autor mais traduzido. Contudo, para compensar essa injustiça, é certamente o mais estudado (dentro e fora do Brasil). É o que revelam duas pesquisas, uma da Universidade de Brasília (UnB), encabeçada pela doutora em Literatura e Práticas Sociais, Laetícia Jensen Eble, e outra da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenada por João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada.
Ainda assim, devo confessar que se constitui para mim um enigma o fato de ainda hoje o ‘Bruxo do Cosme Velho’ não figurar de forma sólida e permanente dentre os grandes romancistas do século XIX, tal qual alguns de seus contemporâneos franceses e russos, largamente citados e referenciados em inúmeros estudos literários.
Logo ele, que representou tudo aquilo que de mais singular pode haver num homem das letras, tornando-se um criador sui generis na literatura universal. Por isso mesmo, um escritor que não se encaixava em nenhum estereótipo, nem mesmo no consagrado exotismo tropical latino-americano. Fenômeno comercialmente explorado por uma boa leva dos nossos escritores de estirpe.
Ainda assim, em que pese um certo desdém do mundo norte-americano para com a literatura de língua portuguesa e da sua pequena penetração no mercado editorial europeu, nada justifica claramente as (des)razões desta indiferença ante o talento do autor e a envergadura de sua obra.
E para adensar ainda mais o enigma machadiano, enriquecendo-o no bojo de suas múltiplas incoerências, leiamos o que eminentes figuras disseram acerca dele.
Para Susan Sontag, espantava saber que não ocupasse o lugar que merece no panorama internacional. Salman Rushdie, por sua vez, afirmou que: “Se Jorge Luís Borges é o escritor que tornou Gabriel Garcia Márquez possível, então, não é exagero dizer que Machado de Assis é o escritor que tornou Borges possível”. Allen Ginsberg o descrevia como “um novo Franz Kafka”, enquanto o escritor americano Philip Roth o comparava ao irlandês Samuel Beckett.
O mexicano Carlos Fuentes certa feita o chamou de “Machado de La Mancha”, num trocadilho com o espanhol Miguel de Cervantes, enquanto o crítico estadunidense Harold Bloom o colocou ao par de gigantes como Gustave Flaubert, Eça de Queirós e Jorge Luís Borges. Para ele, Machado de Assis foi nada menos que o maior literato negro da história.
Stephen Hart, professor de Cinema, Literatura e Cultura Latino-Americanas da University College London revela que Dom Casmurro é muito mais que um livro, é um quebra-cabeças. Enquanto isso, Benjamin Moser, biógrafo que projetou Clarice Lispector lá fora, chama a atenção para o inegável talento de Machado de Assis e questiona o porquê de não ser ele mais amplamente lido.
Como podemos ver, apesar do prestígio de que goza o gênio do romance brasileiro, sua leitura continua misteriosamente restrita a pequenos círculos. Fenômeno corroborado pela ausência em algumas das muitas listas de melhores escritores de todos os tempos.
Por fim, penso que, por uma questão de justiça, seria dever do Estado brasileiro formular, em nível institucional, um projeto permanente de divulgação da obra e imagem de Machado de Assis no exterior, dando ensejo não somente ao surgimento de mais traduções que alcancem o leitor estrangeiro, mas ao fomento de uma política internacional de valorização do seu legado, como fizeram e fazem tantos outros países com seus escritores mais famosos.
Mas enquanto isso não acontece, sigo aqui, cabisbaixo e pensativo, a tentar decifrar este enigma, que por certo daria um bom conto. Quem sabe um bom romance. Afinal, como pode alguém tão grande ser tão pouco notado? Eis um enigma. O enigma de Machado.
*Republicação de um texto sobre Machado de Assis que escrevi em 2020. Boa leitura!
Rogério Rocha (São Luís/MA) é um pensador, poeta e produtor cultural, graduado em Filosofia e Bacharel em direito, pós-graduado em Direito Constitucional e Ética e mestre em Criminologia. É membro da Academia Poética Brasileira, da Academia de Letras Artes e Ciências do GOB-MA, e da Academia Maçônica de Letras – MA. É membro-fundador e organizador de projetos Iniciativa Eidos e do Duo Litera, que realizam eventos de Literatura e Filosofia. Autor do livro Pedra nos olhos (2019) e A linguagem da ausência (2023).
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