Transcrevemos abaixo, um discurso proferido no lançamento do livro “A Travessia do Ródano” escrito por Nauro Machado e lido por mim, seu filho, em uma noite de autógrafos, na Fonte do Ribeirão, em 1997, noite essa em que meu pai estava feliz, bêbado e transfigurado, onde não conseguiu ler o discurso e me pediu para ajudá-lo. Relembro aqui porque necessito de seu alento, sua força, sua doce e selvagem inteligência, sua cultura nobre e erudita. Era um ser grandioso, um poeta maior, um dos grandes seres humanos de nosso país. Sua escrita é algo abissal, algo que é força e magia. Verdade e brutalidade. Que meu cinema seja minimamente verdadeiro como a poesia o era para meu pai.
Nauro Machado
Nós não vivemos senão para diante ou para trás. O próprio momento em que aqui falo já se torna, como instante, naquilo que será passado, produto de uma soma ou resto para o esquecimento ou para a memória. E se “o nada é ser memória de ninguém”, como dito num dos momentos iniciais deste “A Travessia do Ródano”, a memória só é vida, fragmentada embora, quando na restituição permanente daquilo que se foi.A Poesia verdadeira, como a entendo, é pois essa força atuando acima e abaixo da consciência, pêndulo oscilando entre o que foi e o que será, como mediadora suprarracional do que se faz no mundo como acontecimento e história. E o faz para tornar-se, além do homem subjetivo que a vive e escreve, na comparticipativa lei humana do próprio universo.
Assim o homem, o mais fugaz e o mais efêmero, como criatura que está incessantemente partindo, conforme a bela definição rilkeana, se faz merecedor da sua salvação pessoal, através da poesia, mergulhando na transparência, que eu diria até mesmo ou sobretudo ideológica, do seu mais fundo e verdadeiro ser.
Este, senhores, é o meu 28° livro de poesia que vem a lume. E se esse número talvez excessivo de títulos não me aplaca a necessidade de ainda continuar escrevendo, como única e possível desculpa a quem, como eu, sabe desde o inicio que “ser poeta é duro e dura e consome toda uma existência”, é certo também que ele não me enche de nenhum orgulho ou de qualquer superior realização pessoal, pela impossível completude do homem que sou e sei a fazer-se unicamente como poeta.
Talvez esse excesso de poemas, em forma de livro, seja uma frágil compensação àquilo que muitas pessoas, entre as quais me incluo, dizem perfazer o resultado questionável de uma vida que, feliz ou infelizmente, é a minha. Sei, por outro lado, que esta via artística, que nós sabemos não ser a verdadeira, me parece tão viva que seria injusto não se contentar com ela.
Poderia ainda, em acréscimo a esta minha condição de aguda perplexidade, fazer meus os pensamentos de Monsieur Teste, através de seu criador, poeta Paul Valery: “revejo agora algumas centenas de rostos, dois ou três grandes espetáculos ou talvez a substância de vinte livros. Não retive o melhor e nem o pior dessas coisas: restou o que pôde”.
Pois bem: desse resto fiz o escopo de uma obra imaginativa, revelando e reavaliando o amor das mais profundas nostalgias, na busca ininterrupta de algo com que tornar possível o simples fato de existir. Meu verbo não pôde assim fugir da pessoalidade do ser-em-si e que é, em última instância, o verdadeiro protagonista da empresa lírica.
Por que chamá-la, no entanto, de “A Travessia do Ródano”, a essa nova continuidade de assombro existencial? Por que não chamá-la simplesmente de A Travessia do Bacanga, ou do Anil, já que sou amante de suas ébrias águas, apesar do
mar abstêmio em que muitas vezes delas fujo, pelo temor de seu incomensurável abismo?
Simplesmente porque, na Idade Média, uma pestilência obrigou determinado Papa a consagrar o Rio Ródano, para que montões de cadáveres pudessem ser lançados nele sem tardança. Simplesmente porque essa circunstância, na peculiaridade de um acontecimento histórico, me forneceu o símbolo coeso de minha própria concepção do poeta como um ser a quem cabe “Implantar e cultivar verrugas no seu próprio rosto”, para tornar-se visionário, conforme teorizado em carne pelo genial charlevillense autor da célebre “Lettreduvoyant”. Simplesmente porque dessas braçadas rítmicas, entre escombros de aquáticas paisagens e busca desabrida pelas terras autênticas do ser, encontrei a estrutura, em forma de soneto, de um texto narrativo contaminado pelos resíduos humanos do meu autobiografismo, na sua junção metafórica de forma e conteúdo.
Este livro não é, portanto, o reflexo equivocado da minha fala individual, nos limites da sua efêmera existência. Sabedor que sou de que nem sempre a claridade vem dos céus, ele talvez possa corroborar as palavras de Manoel Caetano Bandeira de Mello, seu prefaciador, ao dizer que, nas suas páginas: que a derrota do homem é a vitória do Poeta.
Descontando a assertiva, para mim questionável, dessa vitória do meu emissor verbal, nela encontrei a revelação fotográfica, em negativo veraz, do que proclamei no soneto n° 132, deste livro:
Perdi também fazenda e nem sequer
Depois de homem feito fui do chão
Proprietário de uma rez qualquer
Ou sequer de mim próprio o meu patrão
E nem sequer, acrescento agora, me pude fazer, à dessemelhança do Itabirano que se autoproclamou “Fazendeiro do Ar”, o dono de algo materialmente sólido, por pouco que fosse, capaz de merecer os aplausos da pólis submissa à sentença socrateana a proclamar a expulsão dos poetas das suas muralhas.
Esta constatação, senhores, não a faço a troco de nenhuma falsa modéstia, ou vontade de arrancar aplausos desmereceres para o substratum, valorativo ou não, daquilo que em meus versos orgulhosamente proclamo e revelo.
Sei que a honesta persistência no meu oficio poético não me assegura o valor da obra executada. Ela propicia tão somente, o que é muito, um trabalho a justificar a duração, talvez demasiada, de uma existência cumprida na passiva aceitação dos acontecimentos ou na revolta carnal e metafísica contra as circunstâncias empobrecedoras do destino humano.
Um valor, no entanto, nem os mais ferrenhos inimigos poderão negar-me: o de haver sido, durante mais de quarenta anos, fiel a esta vocação cumprida entre estrofes e palavras. E cumprida integralmente, orgulha-me dizê-Io, em São Luís do Maranhão, terra na qual nasci e onde espero morrer.
Quero lembrar aqui o que determinado poeta, hoje questionador do meu caráter e da minha poesia, escreveu em telegrama que me foi enviado pelo transcurso dos meus 50 anos de vida. Disse ele: “Aplauso à cidade que não conseguiu te expulsar ou destruir”.
Assim, transferindo os aplausos para a cidade que não conseguiu me expulsar, por não os querer dar ao poeta que nela resiste, formulou ele, sem que o soubesse ou quisesse, um paradoxo existencial capaz de conceder uma questionável primazia valorativa às ações do carrasco e não à resistência da vítima.
E esta minha permanência na cidade de São Luís, na tutelaridade de uma profissão desabonadora de bens materiais, me induz a pensar que a possível derrota do homem que sou não se constitui, em verdade, apenas na vitória, para mim duvidosa, do poeta que intento ser. Poeta e Homem são apenas o resultado da junção final e indivisível de uma existência a fazer-se como fatalidade totalizadora de um destino.
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