Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Nauro Machado no curta "Infernos", de Frederico Machado

DISCURSO DE NAURO MACHADO – sobre “A Travessia do Ródano”

Transcrevemos abaixo, um discurso proferido no lançamento do livro “A Travessia do Ródano” escrito por Nauro Machado e lido por mim, seu filho, em uma noite de autógrafos, na Fonte do Ribeirão, em 1997, noite essa em que meu pai estava feliz, bêbado e transfigurado, onde não conseguiu ler o discurso e me pediu para ajudá-lo. Relembro aqui porque necessito de seu alento, sua força, sua doce e selvagem inteligência, sua cultura nobre e erudita. Era um ser grandioso, um poeta maior, um dos grandes seres humanos de nosso país. Sua escrita é algo abissal, algo que é força e magia. Verdade e brutalidade. Que meu cinema seja minimamente verdadeiro como a poesia o era para meu pai.

 

Nauro Machado

Nós não vivemos senão para diante ou para trás. O próprio momento em que aqui falo já se torna, como instante, naquilo que será passado, produto de uma soma ou resto para o esquecimento ou para a memória. E se “o nada é ser memória de ninguém”, como dito num dos momentos iniciais deste “A Travessia do Ródano”, a memória só é vida, fragmentada embora, quando na restituição permanente daquilo que se foi.A Poesia verdadeira, como a entendo, é pois essa força atuando acima e abaixo da consciência, pêndulo oscilando entre o que foi e o que será, como mediadora suprarracional do que se faz no mundo como acontecimento e história. E o faz para tornar-se, além do homem subjetivo que a vive e escreve, na comparticipativa lei humana do próprio universo.
Assim o homem, o mais fugaz e o mais efêmero, como criatura que está incessantemente partindo, conforme a bela definição rilkeana, se faz merecedor da sua salvação pessoal, através da poesia, mergulhando na transparência, que eu diria até mesmo ou sobretudo ideológica, do seu mais fundo e verdadeiro ser.

Este, senhores, é o meu 28° livro de poesia que vem a lume. E se esse número talvez excessivo de títulos não me aplaca a necessidade de ainda continuar escrevendo, como única e possível desculpa a quem, como eu, sabe desde o inicio que “ser poeta é duro e dura e consome toda uma existência”, é certo também que ele não me enche de nenhum orgulho ou de qualquer superior realização pessoal, pela impossível completude do homem que sou e sei a fazer-se unicamente como poeta.

Talvez esse excesso de poemas, em forma de livro, seja uma frágil compensação àquilo que muitas pessoas, entre as quais me incluo, dizem perfazer o resultado questionável de uma vida que, feliz ou infelizmente, é a minha. Sei, por outro lado, que esta via artística, que nós sabemos não ser a verdadeira, me parece tão viva que seria injusto não se contentar com ela.

Poderia ainda, em acréscimo a esta minha condição de aguda perplexidade, fazer meus os pensamentos de Monsieur Teste, através de seu criador, poeta Paul Valery: “revejo agora algumas centenas de rostos, dois ou três grandes espetáculos ou talvez a substância de vinte livros. Não retive o melhor e nem o pior dessas coisas: restou o que pôde”.

Pois bem: desse resto fiz o escopo de uma obra imaginativa, revelando e reavaliando o amor das mais profundas nostalgias, na busca ininterrupta de algo com que tornar possível o simples fato de existir. Meu verbo não pôde assim fugir da pessoalidade do ser-em-si e que é, em última instância, o verdadeiro protagonista da empresa lírica.
Por que chamá-la, no entanto, de “A Travessia do Ródano”, a essa nova continuidade de assombro existencial? Por que não chamá-la simplesmente de A Travessia do Bacanga, ou do Anil, já que sou amante de suas ébrias águas, apesar do

A Travessia do Ródano – capa -Nauro Machado

mar abstêmio em que muitas vezes delas fujo, pelo temor de seu incomensurável abismo?

Simplesmente porque, na Idade Média, uma pestilência obrigou determinado Papa a consagrar o Rio Ródano, para que montões de cadáveres pudessem ser lançados nele sem tardança. Simplesmente porque essa circunstância, na peculiaridade de um acontecimento histórico, me forneceu o símbolo coeso de minha própria concepção do poeta como um ser a quem cabe “Implantar e cultivar verrugas no seu próprio rosto”, para tornar-se visionário, conforme teorizado em carne pelo genial charlevillense autor da célebre “Lettreduvoyant”. Simplesmente porque dessas braçadas rítmicas, entre escombros de aquáticas paisagens e busca desabrida pelas terras autênticas do ser, encontrei a estrutura, em forma de soneto, de um texto narrativo contaminado pelos resíduos humanos do meu autobiografismo, na sua junção metafórica de forma e conteúdo.

Este livro não é, portanto, o reflexo equivocado da minha fala individual, nos limites da sua efêmera existência. Sabedor que sou de que nem sempre a claridade vem dos céus, ele talvez possa corroborar as palavras de Manoel Caetano Bandeira de Mello, seu prefaciador, ao dizer que, nas suas páginas: que a derrota do homem é a vitória do Poeta.

Descontando a assertiva, para mim questionável, dessa vitória do meu emissor verbal, nela encontrei a revelação fotográfica, em negativo veraz, do que proclamei no soneto n° 132, deste livro:

Perdi também fazenda e nem sequer
Depois de homem feito fui do chão
Proprietário de uma rez qualquer
Ou sequer de mim próprio o meu patrão

E nem sequer, acrescento agora, me pude fazer, à dessemelhança do Itabirano que se autoproclamou “Fazendeiro do Ar”, o dono de algo materialmente sólido, por pouco que fosse, capaz de merecer os aplausos da pólis submissa à sentença socrateana a proclamar a expulsão dos poetas das suas muralhas.

Esta constatação, senhores, não a faço a troco de nenhuma falsa modéstia, ou vontade de arrancar aplausos desmereceres para o substratum, valorativo ou não, daquilo que em meus versos orgulhosamente proclamo e revelo.

Sei que a honesta persistência no meu oficio poético não me assegura o valor da obra executada. Ela propicia tão somente, o que é muito, um trabalho a justificar a duração, talvez demasiada, de uma existência cumprida na passiva aceitação dos acontecimentos ou na revolta carnal e metafísica contra as circunstâncias empobrecedoras do destino humano.

Um valor, no entanto, nem os mais ferrenhos inimigos poderão negar-me: o de haver sido, durante mais de quarenta anos, fiel a esta vocação cumprida entre estrofes e palavras. E cumprida integralmente, orgulha-me dizê-Io, em São Luís do Maranhão, terra na qual nasci e onde espero morrer.

Quero lembrar aqui o que determinado poeta, hoje questionador do meu caráter e da minha poesia, escreveu em telegrama que me foi enviado pelo transcurso dos meus 50 anos de vida. Disse ele: “Aplauso à cidade que não conseguiu te expulsar ou destruir”.
Assim, transferindo os aplausos para a cidade que não conseguiu me expulsar, por não os querer dar ao poeta que nela resiste, formulou ele, sem que o soubesse ou quisesse, um paradoxo existencial capaz de conceder uma questionável primazia valorativa às ações do carrasco e não à resistência da vítima.

E esta minha permanência na cidade de São Luís, na tutelaridade de uma profissão desabonadora de bens materiais, me induz a pensar que a possível derrota do homem que sou não se constitui, em verdade, apenas na vitória, para mim duvidosa, do poeta que intento ser. Poeta e Homem são apenas o resultado da junção final e indivisível de uma existência a fazer-se como fatalidade totalizadora de um destino.