Uma breve análise de dois poemas de Gonçalves Dias
José Neres
Gonçalves Dias, ao escrever seu livro de estreia, dividiu a obra em três partes bem delimitadas. Nas primeiras páginas. Ele colocou os poemas que se relacionam com o telurismo e com as origens do Brasil e das Américas – as chamadas Poesias Americanas. Logo a seguir, o poeta caxiense enfeixou três dúzias de textos que fazem mergulhos em questões sentimentais, cultuando as ideias de amor, tristeza, desilusões amorosas, morte e outras questões bastante exploradas na estética romântica. Para fechar o livro, Gonçalves Dias colocou sete poemas nos quais a natureza vem carregada de aspectos voltados para o panteísmo. A essa última parte dos Primeiros Cantos, ele colocou o nome de Hinos.
Trata-se de um livro que, desde sua publicação, chamou a atenção dos leitores e dos críticos literários pelas temáticas trabalhadas, pela excelente qualidade estética dos poemas e pelas imagens poéticas que emanavam de cada página daqueles cantos que mesclavam um olhar lírico sobre a Pátria, seu povo, seu passado histórico e alguns dos sentimentos mais marcantes da realidade humana.
É na primeira parte do livro, no entanto que o leitor pode encontrar dois poemas que se aproximam pela temática e se completam com relação a dois momentos históricos peculiares e que são retratados de modo pungente e lírico ao mesmo tempo. O primeiro desses poemas – “O Canto do Piaga” – é ambientado antes da chegada do colonizador europeu às terras americanas e traz uma previsão do que iria acontecer com essas terras e com seus habitantes, após esse evento. Pouco depois, o leitor se depara com “Deprecação”, poema no qual fica evidenciado que a profecia não havia sido apenas um jogo retórico de palavras, mas sim algo com terríveis consequências para aqueles povos indígenas.
Mais importante, porém, do entrar em contato com o que Gonçalves Dias escreveu sobre a chegada do europeu às novas terras descobertas, é observar o modo como ele compôs os versos e a magnitude metafórica e imagética alcançada por ele em alguns dos versos mais contundentes da história da literaturabrasileira, com sérias denúncias sociais e um alerta para que os leitores pudessem rever o que haviam aprendido nos bancos da escola ou na reprodução oral de algumas das passagens mais violentas da colonização do território hoje conhecido como Brasil, mas que pode ser relacionado a praticamente todo o continente americano.
Dividido em três parte, “O Canto do Piaga” tem início com o Piaga (Pajé) da tribo conclamando seus companheiros para que todos pudessem ouvir um sonho que o havia incomodado. Alguns indicadores demonstram que algo está errado: o incenso está aceso e, embora esse ritual seja de responsabilidade do Piaga, ele reconhece que não havia feito isso. Algumas palavras utilizadas no poema adquirem um valor simbólico muito forte e revelam um campo semântico voltado para a Morte. É o caso de “fantasma”, “crânio” e “cobra”.
No segundo momento do texto, o leitor entra em contato com aquilo que foi revelado pelo “fantasma d’imensa extensão” ao Piaga. Alguns sinais de alerta que não foram detectados pelo Piaga também são vistos como sinal de premonição ou de mau agouro. Ele não percebeu, por exemplo, que o sagrado instrumento (o maracá) estava vibrando sozinho, que havia tido um eclipse (Tu não viste nos céus um negrume/ Toda a face do sol ofuscar) e a coruja (possivelmente uma rasga-mortalha) havia cantado durante o dia. Além disso, o Piaga não havia percebido que as árvores se curvavam sem a presença do vento e que a lua parecia banhada de sangue.
Esses fenômenos aparentemente explicáveis pelos conhecimentos científicos de hoje são vistos no poema como prenúncio de que algo ruim deve acontecer a qualquer momento com os habitantes da tribo. A situação é tão incontornável que até mesmo os espíritos protetores da tribo (os manitôs) já começavam aabandonar seus protegidos. Essas falhas na percepção do Piaga e essa falta de explicação para o que ali está acontecendo é creditado aos poderes de Anhangá, uma divindade do mal que, como será visto depois, está agindo em parceria com os invasores europeus.
É na terceira parte do poema que aparece uma das mais emblemáticas descrições metafóricas e metonímicas da literatura de língua portuguesa. Como as caravelas que traziam os europeus era algo ainda desconhecido pelos indígenas da época do Descobrimento, Gonçalves Dias descreveu a nau a partir de elementos naturais que eram conhecidos pelos moradores originais, conforme pode ser visto no fragmento abaixo:
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.
Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!
Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.
Engenhosamente, o poeta maranhense faz os ouvintes perceberem que as caravelas são feitas de madeiras retiradas das florestas, que os mastros das embarcações se assemelham a troncos de madeira sem galhos e sem folhas, que as cordas que estão penduradas nos mastros se assemelham a cipós, que a calafetagem das embarcações era escura, possivelmente feita com breu ou algum produto semelhante e que as velas brancas das embarcações lembravam as asas das garças. Utilizando-se desses recursos vocabulares e imagéticos, Gonçalves Dias conseguiu compor um cenário que liava a tradição e a modernidade da época, demonstrando também o espanto dos indígenas ao se defrontarem com algo até então desconhecido.
Em tom profético, o Piaga desvela para os demais habitantes da tribo o triste destino que em breve se abaterá sobre aquele povo com a chegada do estranho visitante que: “vem matar vossos bravos guerreiros, / vem roubar-vos a filha, a mulher”. Com essas poucas palavras, o poeta já denota para o leitor todo um processo de dizimação dos povos indígenas e de miscigenação das etnias, sendo que os dois verbos utilizados – matar e roubar – deixam claro que o contato entre os europeus e o indígena não se deu de modo harmônico, mas sim a partir de atitudes violentas.
Além disso, há também a predição de um sistema econômico que tentaria escravizar os indígenas e o sofrimento físico pelo qual esses povos originários iria passar, tendo inclusive que deixar o território anteriormente ocupado, que era próximo ao mar, para desbravar o sertão em busca da sobrevivência física e cultural, conforme aparece na estrofe a seguir:
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se.
Vendo os vossos quão poucos serão.
Nesse aviso há ainda a certeza de que, invadida a terra e implantado o sistema escravocrata, não haverá mais possibilidade de escalonamento por status quo, ou seja, todos serão escravizados, independentemente da idade ouda condição anterior de poder. No final de tudo: “Hão de os velhos servirem de escravos / mesmo o Piaga inda escravo há de ser”.
Do ponto de vista histórico, todos que estudaram o processo de colonização do Brasil sabem o que aconteceu após a chegada dos navegadores europeus. Mas, um poeta do nível de Gonçalves Dias não deixaria uma informação tão relevante incompleta. Desse modo, no mesmo livro, aparece o poema “Deprecação”, uma espécie de salto no tempo para que se fique sabendo o resultado da selvageria institucionalizada que foi a chegada e a permanência do europeu nas terras americanas.
“Deprecação” é um poema relativamente breve, se comparado ao “Canto do Piaga”, e conta com apenas 12 estrofes com quatro versos em cada um deles, perfazendo um total de 48 versos (O Canto do Piaga é composto de 80 versos distribuídos em 20 estrofes). O título do poema remete, segundo os dicionários, a uma ideia de súplica, pedido de intervenção para obtenção de uma graça ou mesmo de um milagre. E essa é a tônica do texto.
Aproximadamente um século depois da chegada dos colonizadores, levando-se em consideração a contagem do tempo pelas enchentes anuais dos rios (E hoje em que apenas a enchente do rio / cem vezes hei visto crescer e baixar), os indígenas que restaram estão desolados e pedem que Tupã – sua grande divindade – resolva o grande problema que fez com que seus filhos – os remanescentes das tribos – perdessem todos os bens e inclusive a liberdade. Os tempos são outros, e os sobreviventes “choram tão grande mudança”.
Aparentemente, no embate entre o bem (representado por Tupã) e o mal (representado por Anhangá), o último, que apoia os colonizadores, vistos como “homens que o raio manejam cruentos” está sendo vitorioso, mas o quadro poderia ser revertido, caso Tupã, que não foi devidamente conjurado em “O Canto do Piaga”, decidisse voltar a proteger seus filhos.
Ao longo do poema há uma espécie de cotejamento entre o que foi vaticinado pelo “horrendo fantasma” do outro texto e o que realmente aconteceu. É lembrado que agora “já restam bem poucos dos teus”, que aqueles guerreiros “já hoje não caçam nas matas frondosas” e que os sobreviventes andam “buscando um asilo por ínvio sertão”. Possivelmente, como as providências indicadas pelo fantasma e intermediadas pela voz do Piaga não foram levadas em consideração, as palavras do Pajé são relembradas com certo grau de tristeza pela nova geração que esperava ser o contato com os colonizadores algo rápido e passageiro. Nesse clamor, acabam lembrando que: “o Piaga nos disse que breve seria / a que nos aflige cruel punição”. Ou seja, a partir da perspectiva do indígena, nesse olhar idealizado e romântico, a culpa de todos os problemas que acabaram praticamente dizimando toda uma população não é da expropriação indevida por parte dos colonizadores europeus, mas por conta de uma falha de comunicação dos moradores da tribo para com suas divindades.
“O Canto do Piaga” e “Deprecação” são dois poemas que, mesmo podendo ser lidos de modo individual, acabam se completando e jogando algumas luzes interpretativas acerca de um cenário histórico que muitas vezes foi visto como algo de consequências previsíveis. A partir de um processo de intratextualidade, Gonçalves Dias conseguiu tecer algumas críticas que nem sempre são perceptíveis para quem se debruça sobre os Primeiros Cantos apenas por questões lúdicas.
Esses e outros poemas confirmam que Gonçalves Dias é um dos mais expressivos escritores da Língua Portuguesa de todos os tempos e o primeiro grande poeta romântico das letras brasileiras. Mesmo que a constante inversão sintática das frases e o vocabulário repleto de palavras e expressões indianistas possam parecer um obstáculo para a leitura, com um pouco de atenção, com clama e paciência, o leitor terá em suas mãos algumas das mais belas imagens poéticas do Romantismo e também a oportunidade de refletir um pouco sobre nosso processo de colonização.
José Neres
Professor. Membro da ALM, ALL, APB, SOBRAMES-MA
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