Rafael Oliveira*
Cada leitor procura algo no poema. E
não é insólito que o encontre, pois já
o trazia dentro de si.
(Octavio Paz)
Com um discurso poético absolutamente singular, Antonio Ailton responde, com palavras que pensam, às diferentes perguntas que a vida e o mundo lhe sussurram diariamente. Essas respostas não vêm estampadas em panfletos, outdoors, televisão, jornais ou revistas, mas, sim, impressas em seus livros-poemas: Os dias perambulados & outros tOrtos Girassóis (Fundação Cultural do Recife, 2008), Compulsão Agridoce (Paco Editorial, 2015), CERZIR – livro dos 50 (Penalux [Litteralux], 2019), MENAGE – Antologia Trilingue de Poesia (Helvetia Editora, 2019) e a camiseta de atlas (EDUFMA/FAPEMA, 2023). É neste último que encontramos a bela imagem que inspira parte do título deste texto: a “camiseta poética” com a qual o autor se veste para enfrentar o mundo — suportando, assim, o peso (e o espanto) da contemporaneidade.
Na escrita de Ailton, o conceito aristotélico de poiesis confunde-se com a própria lapidação do ser — um processo artesanal, talvez alquímico, em que o verbo atua como cinzel e a poesia, como argila. Para isso, o poeta se vale da linguagem como um observador que, ao mesmo tempo, encanta e critica, mantendo suas antenas sensíveis voltadas para o espetáculo que a poesia encena ao seu redor e, sobretudo, em si mesma. Pela sua natureza transgressora, subverte norma e forma, rompendo a rigidez da língua com originalidade e inventividade. Age como quem atravessa múltiplas camadas da realidade, que, como um espelho, reflete o que está oculto entre os interstícios do tempo, da memória, da existência e do humano. Um exemplo disso é esta crítica (irônica) aos sucessos imediatos e midiáticos das redes sociais:
Agora
basta o artifício
e um título bacana
O resto
é cair em campo
e postar sua fama
(a camiseta de atlas, p. 61).
A poesia de Antonio Ailton se entranha em todos os poros (e encantos) da linguagem. Como um escafandrista insubmisso, ele mergulha nos contextos densos e reais do cotidiano para acender fósforos no imprevisto da linguagem, iluminando sentidos pelas frestas dos versos. Com delicada irreverência, tensiona o tecido da tradição para criar uma poesia autoral, viva — que sua, brada, inspira — e que está sempre atenta à sua realidade. Por isso, cada verso é ruptura e sopro. Afinal, Ailton flagra o poético antes que ele se dissolva na névoa da mesmice. Em seus poemas, a plasticidade das imagens se entrelaça à densidade do existir, encarnando, muitas vezes, a ironia precisa de Padre Antônio Vieira ou a língua afiada de Gregório de Matos — como em “Nariz de Hilux”, poema que merece ser lido na íntegra:
Nariz de Hilux
A maior arte da política é o cinismo
travestido de pós-humano
Os que são pobres por natureza não precisam dividir seus bens
ou porque não os têm
ou porque nunca os tiveram
Mas não é preciso ter bens para dividi-los, quando se quer
O cínico ri dos outros, que para ele
ou são cães
ou são crédulos
A maior arma do cínico é o nariz
É incrível, seu nariz permanece sempre para cima
como se tudo mais estivesse ao seu dispor, abaixo dele
(a camiseta de atlas, p. 41).
Por isso, a camiseta de atlas torna-se uma peça poética cheia de significantes e significados enigmáticos — ou uma armadilha delicada que, como uma esponja, aprisiona a seiva bruta do poético para, na oficina das palavras, ser transformada em imagens altamente simbólicas. Inspirado em Atlas, Ailton sustenta seus poemas dentro de um livro que revela sua habilidade em esculpir versos — curtos, longos ou prosaicos —, mostrando que a vida é um amontoado de verdades e mentiras estocadas no tempo-espaço do mundo.
Com recursos linguísticos e estilísticos precisos, Antonio Ailton firma-se como um poeta respeitado — e, sobretudo, comentado em razão de sua lírica ser tecnicamente um tecido de significados sutis e plurais. Basta ler, por exemplo, estes versos que refletem sobre o destino (ou a desimportância) de um livro diante da lógica utilitária do mundo:
Na reciclagem dos objetos inúteis
o futuro deste livro
é ser flor de plástico
ou amparo de abajur
(a camiseta de atlas, p. 81).
Enfim, Ailton se transfigura em um Outro — um “eu” lírico — movido pelas engrenagens invisíveis das palavras. Embora seja, em si, um cidadão como outro qualquer, que está inserido na dinâmica mecanicista do mundo, ele, por vezes, habita — conforme Heidegger — o espaço mais sublime da linguagem, onde seu coração literário pulsa inquieto, resistente e poético, entre epifanias existenciais e estranhezas cotidianas. Além de nos presentear com seus versos de alto rigor/teor estético-simbólico, ele nos envolve com sua “camiseta poética” de palavras e sentidos, ajudando-nos a suportar, com sensibilidade e imaginação, o peso (e a leveza) do nosso tempo.
20 cofres vazios
para carregadores indispostos
(Antonio Aílton – a camiseta de atlas – FAPEMA/EDUFMA, 2023)
“O caracol, para sempre desperto, em sua Concha
estremece
e navega em favor da China”
(Philip Levine – A Sleepless Night)
1
Que ninguém apareça para chutar o carregador
de perdas auferidas
que parou pra juntar sua história da bagana
2
À falta de sentido, resta-nos dar sentido
à concisão hipersensível dos restos
3
À margem de cada página genial
havia uma pilha de cigarros
e embrulhos com alertas de câncer e impotência
4
Escandir uma rosa não filtra sua beleza
apenas mutila sua linguagem de espinhos
5
Toda vez que um poema se completa, uma borboleta se desprega
dos pequenos guardados de Deus
e começa a voar por aí
por isso novos poetas são continuamente incorporados à Sua extensa
coleção de lagartas
(Não confundir com a coleção
do poeta Manoel de Barros)
6
A última consequência do primado da imagem na poesia
é a construção de uma autopoiesis em disputa real
por teus olhos
no Instagram
7
Quando o fiscal de roubo da palavra alheia
mostra sua face de despeito e entra em falência,
passamos a chamar os larápios de homens de negócios,
os penduricalhos de poemas, de gadgets
e os lugares-comuns, de “habitação intertextual”
8
O mitômano fala com a gente em terceira pessoa
– e reserva a primeira para sua autobiografia
9
Um dia ainda haveremos de entender a relação entre a Poesia
e a Secretaria do Tesouro Nacional
Por enquanto nosso papel é garantir a inutilidade pública
das nossas escavações
em poços clandestinos de palavras.
10
Há duas espécies de contemporâneos, diz-se
O do agora, dentro da moda
e aquele que habita a zona cinza de todos os tempos
Nesta pegada, ser contemporâneo é compreender
é ser extra e intra, habitante da Anacronia
distância e desmembramento, sem evasão
No mais das vezes, o trabalhador não tem a chance de aluir-se
de si, senão para o contemporâneo de seus pedaços
e em sua cela
compor a visão de um morto que está vivo, e só
11
“Sufocamento dos desejos”, “aniquilamento do eu”
“asfixia da subjetividade”
estão definitivamente selados no cândido coração
dos teus cards
12
Da poesia também se extrai a mais-valia. Alguns aproveitam
para aliar os meios de produção
aos seus respectivos meios de interpretação
13
O movimento contínuo do discurso para engrandecer-se
é desqualificar o anterior.
A própria poesia tem seus discursos, mas deve aprender
a puxar o pino
sem perder a perna.
14
A unidade entre o caracol e sua concha
só é comparável à unidade entre o trabalhador
e os aparelhos multifuncionais de apaziguamento coletivo
na áspera concha
de sua mão
15
Caracol para navegar precisa virar de costas
com risco de apenas boiar de um lado para outro.
Se ele se esticar bastante, seu próprio corpo servirá de remo,
sem que alguém lhe suba às ancas,
mas deixemos que ele desperte por si só: é uma questão
de dignidade.
16
Alguns caracóis permanecem aquela coisa mole dentro de sua casca,
“gerando a pestilência”
17
O homem está mais próximo do caracol do que Deus,
salvo quando suas costas começam a se dobrar numa espiral de
possibilidades infinitas, para dentro de si mesmo
18
O amor também é um fato social
quando se entende, com Durkheim,
que a felicidade pode estar tanto no progresso
quanto no suicídio
19
O amor tem o peso de um cofre. Amar é uma forma de carregar
Não se sabe, porém, se o melhor para o carrega’Dor
é que o cofre esteja cheio
ou vazio
Carrego a dor dos pianos até que você me acorde
para outro canto, co-movido
20
A quem ousar tomar de assalto o que está lá dentro
encontrará apenas a matriosca em ferro e louça
deixada como prêmio pelos deuses da fortuna
Um cofre sobre outro levas por reserva
Um cofre em outro cofre deixas quando cessas
*
*Rafael Oliveira é Médico, poeta, membro da SOBRAMES-MA, autor de o avesso abstrato das coisas (Penalux [Litteralux], 2021).
Dois poetas do coração!❤️ Parabéns aos dois!👏👏👏👏
Grato, querida amiga, poeta Dilercy, por tua apreciação e por nos dar um lugar tão especial de aconchego…