Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Poesia de Luiza Cantanhêde em análise de Viriato Gaspar

Poesia com cheiro agreste

de sertão e luta

 

Por Viriato Gaspar

 

Aquece o coração e acalenta a alma ver o meu estado, tão pródigo em imensos e marcantes poetas, hoje polvilhado de grandes talentos e promessas literárias já sedimentadas.

A descentralização dos campi da Universidade Federal do Maranhão, distribuindo-se por vários polos em muitas regiões do estado, proporcionou que  brotasse uma efervescência artística que se traduz na eclosão de talentosos escritores, entre os quais  se destacam muitos valorosos poetas, espalhados pelas mais diversas cidades do interior.

Entre esses novos talentos, chamou-me a atenção a poeta Luiza Cantanhêde, com quem me identifiquei de plano pelas proximidades de vivência, pelas similitudes existenciais. E também pela qualidade robusta de sua poesia forte e visceral. Ambos, ela e eu, egressos da pobreza extrema, das difíceis circunstâncias dos que levantam a cada manhã sem saber se chegará até eles o pão daquele dia.

Luiza maneja uma poética  que mescla a vivência piauiense à seiva do Maranhão, e traz, na construção de seu verso, uma comovente e telúrica mistura de chão e céu, de força e resistência, de luta mesclada com festa, de teimosia e obstinação, de sobrevivência e pertinácia, a capacidade ímpar do povo nordestino de jamais desistir ou entregar os pontos, por mais duro que seja o cotidiano combate  por mínimos padrões de sobrevivência.

O poema de Luiza Cantanhêde tem cheiro de terra, do suor de quem traz a seca por dentro da alma, a cor do barro duro do chão crestado, da resiliência sertaneja (que Euclides da Cunha ressaltou em seu monumental Os Sertões). Traz o travo da precisão, da pobreza, o odor do suor e da teimosia resistente do caboclo nordestino, as mãos feridas da firmeza combativa de quem precisa abrir sua vereda na vida a golpes de enxada e de gadanho, de firmeza de caráter e de inquebrantável fé. Gente que precisa se fazer tão dura quanto a terra seca, mas sem abdicar da esperança e da gana de viver, a teimar contra as intempéries e  abismos da vida. Como diria o apóstolo Paulo de Tarso, gente capaz de “esperar contra toda esperança”.

Em Palafitas, seu primeiro livro que me chegou às mãos, descobri em Luíza Cantanhede uma poeta que traz, em cada poema, o cheiro acre da terra nordestina, que recende a mato, chão, poeira, seca, dureza, sabe à luta diária e incansável pelo sofrido e parco pirão de cada dia.

Palafitas já escancara, entre algumas oscilações, para cima e para baixo, para o muito bom e o nem tanto assim, naturais em um livro de estréia, as qualidades que fazem dessa poeta uma revelação de um grande e genuíno talento. Identifiquei, de imediato, aquele feeling que eriça os pelos da alma e galvaniza nossa atenção quando nos defrontamos com a criação de um poema verdadeiro, não uma mera anotação psicológica ou um desabafo pueril de um desencanto pessoal, mas um poema mesmo, no que um poema significa  de inteireza, amplidão e potência, de grandeza derramada nas palavras. Ou seja, o trabalho criativo de um poeta, a imantar as palavras e iridescê-las, a carregá-las de fulgor e beleza.

Infelizmente, não tive acesso à leitura de um de seus livros, Pequeno Ensaio Amoroso, mas me chegaram às mãos suas duas últimas publicações, Amanhã Serei uma Flor Insana e o belo Plantação de Horizontes. Livros que vêm confirmar, com fartura abundante, aquilo que Palafitas já prenunciava,  que estamos na presença efetiva e definitiva de uma Poeta.

Costumo distinguir entre os escrivães de poemas, que vão encarreirando versos como um açougueiro que enfileira pedaços de carne nos ganchos à porta do açougue, e os Poetas, no sentido substantivo e grandioso do que é e representa um Poeta. Nos versos de um poeta há Poesia, essa arte maior do gênio humano, tão enxovalhada e submetida hoje a torturas inimagináveis e experimentos e inovações que pretendem retirar do poema quaisquer resquícios de sua presença mágica e encantatória.

Luiza Cantanhêde é, sem dúvida, uma Poeta, da estirpe daqueles e daquelas que se deve escrever com maiúscula. Seus poemas, sempre enxutos, sintéticos, precisos, diretos, trazem uma carga semântica pujante e uma pulsante verdade interior, que os torna vivos, verazes, lídimos, nascidos não só de um exercício da inteligência, de um encadeamento sintático de palavras, mas irrompem cristalinos das camadas profundas do seu coração, das fímbrias doloridas de sua alma. Um Poeta é, sobretudo, alguém que SENTE o que vê e exprime e espreme nas palavras o sentido maior do que viu e sentiu, reverberado em novas fulgurações e desfraldando horizontes e significados. Um Poeta, mais que um artesão da palavra, é um ourives da Beleza, um catador de grãos de eternidade.

Essa piauinhense –  amálgama de Piauí com Maranhão, mistura sertaneja arretada de buriti com babaçu – traz  nas veias o genuíno talento de uma autêntica e incontestável Poeta, capaz de produzir coisas tão simples e belas como estes versos lapidares, que valem por uma declaração de amor à arte poética, no que esta tem de instrumento de combate, de trincheira irredutível contra as injustiças e desigualdades do mundo:

 

“A minha palavra é a da roça

Da enxada circundando a

Poeira ao pé das cinzas”

 

Ou este outro momento de altissonante arte poética:

 

“Estou no intervalo do que brota

neste exílio de rotas e precipícios:

a fome, os pés, a seca nos olhos,

o sol recheado nas mãos, a fé no

piso milenar da terra,

do risco, do cisco, da lavoura

da folha

de toda agonia

brota a minha poesia.”

 

E ainda, este soco na boca do estômago de nossa sensibilidade:

 

“O que pernoita

em mim

é quase nada

apenas chão

e memória

(……………..)

é apenas a fagulha

do ferro em brasa

de minha mãe

a engomar nossa fome”.

 

Arrisco-me a traçar um paralelo e esgrimir uma observação sobre os ínvios e misteriosos caminhos da poesia na alma do humano. Luiza Cantanhêde, como Salgado Maranhão e eu, em face da dureza e das circunstâncias difíceis de nossas respectivas vivências familiares  humílimas, ninguém jamais nos profetizaria poetas, mas eis que Ela, a inefável, a luminosa seiva do melhor do humano, foi-nos buscar, veio nos tocar com sua mágica e encanto, em meio aos desencontros e desenganos da vida. E quem sabe, talvez até mesmo por causa destes, pelo fulgor que a alma ganha ao se esbater contra as dificuldades e vicissitudes do existir, sob estruturas sociais absurdamente injustas e anti-humanas. Afinal, é do barro levado a temperaturas extremas que se faz o tijolo.

Esperemos outros novos momentos de beleza e magia dessa Poeta que não escreve para os doutores e letrados, que não sabe “versar para a realeza”, mas ergue firme e bem alta a voz que traz a dureza da vida na secura dos grotões, aliada à pujante e inesgotável resiliência da alma nordestina, humilde, simples, corajosa e boa, capaz de retirar a linfa abençoada de um poema até mesmo da fome, da pobreza, da injustiça das estruturas sociais e políticas vergonhosas e iníquas.

 

 

***

 

*Viriato Gaspar é poeta maranhense radicado em Brasília (DF), autor de Manhã Portátil (Sioge, 1984), Sáfara Safra (SIOGE, 1994), Onipresença (Penalux, 2021) e Fragmuitos de mim (Penalux 2023), dentre outros.