Patrícia Gonçalves Tenório*
Crescer é desencantar-se, perder as ilusões infantis.
(Calsavara, p. 130)
Toda vida daria um livro. Esta é uma grande verdade. Mas não é toda pessoa que pode ser um bom escritor. Contrariando o que é ensinado Brasil afora nas oficinas literárias e cursos de Escrita Criativa, costumo dizer que existe uma tendência (para não usar a palavra vocação) maior para ser escritor, assim como existe uma tendência maior para ser engenheiro, arquiteto, advogado… Psicanalista.
E João Fernando Calsavara nasceu com, pelo menos, duas tendências. Um dos fundadores do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, Calsavara nos apresenta, de maneira primorosa, os caminhos tortuosos que navegou – “Caminhar é preciso, viver não é preciso” (p. 71) – até chegar à primeira tendência, a Psicanálise, e realizar em 2023 o sonho que alimentou desde jovem em seus diários: a Literatura.
Em Passante [Nova Presença, Olinda – PE, 2023], Calsavara escreve não ficção utilizando técnicas refinadíssimas de ficção – o que na minha tese de doutorado na PUCRS, 12 horas, nomeio de autobioficção. No livro inaugural – e esperamos que ele continue a nos brindar com suas histórias –, Calsavara narra, em três partes (realço entre aspas aqui as partes e, mais adiante, os capítulos), o trajeto do “Menino Caipira” João, desde a cidade mineiro-italiana Bengo, passando pelo “Noviço” que realiza a promessa e o desejo dos pais (do filho tornar-se padre) em Itaici, São Paulo, até a libertação na descoberta do “Analisante / Analista” que habitava dentro de si, registrava e refletia sobre os próprios sonhos, e migrou para o Recife, a Veneza Brasileira, em 1972.
Com uma bagagem cultural imensa, graças aos anos de estudos na Companhia de Jesus na época do noviciado, Calsavara nos apresenta informações interessantes, tais como, “cheiro de alecrim queimado para espantar os mosquitos” (p. 29); ou mesmo o que é “fogo fátuo” – no cemitério “à noite, ossos brilham porque absorvem a luz do sol durante o dia” (p. 43); a origem do próprio nome (“Calsa”, calçados, “vara”, variados (p. 17)); além de imagens altamente poéticas, entre elas, “olhava riachos e cascatas morro abaixo, riscando de branco o tapete verde da Mata Atlântica” (p. 53).
Músicas (“Felicidade” de Lupicínio Rodrigues, me chamou a atenção na página 59), ditados populares (“fé em Deus e pé na estrada” (p. 71) ou “quando a esmola é demais o santo desconfia!” (p. 75-76)), são alguns exemplos da forma com que Calsavara nos seduz e nos apresenta a própria vida. E nos identificamos, porque seres humanos feitos da mesma matéria bruta.
Importante salientar que a escrita de Calsavara possui o cuidado, a força e a técnica dos grandes escritores. Quando na parte “Noviço” narra a “Peregrinação”, tem a delicadeza com o leitor de avisar que irá mudar o narrador da terceira pessoa do singular – para o distanciamento de quem escreve sobre si mesmo, é interessante usar a terceira pessoa – para a primeira pessoa do singular, como na verdade o fez em seus diários:
“Resolveu anotar esta experiência dia a dia” (p. 67).
Ou mesmo no “Retiro espiritual”:
“O irmão João fez anotações detalhadas da experiência vivida nesses 30 dias” (p. 95).
Mas o que João Fernando Calsavara me surpreendeu e encantou mais, foi a coragem de se desnudar diante de quem o lê, nos ensinando e guiando, feito todo grande Analista consegue realizar, a buscarmos sempre o próprio caminho, não o que os outros (pais, filhos, amigos, amores, a vida) nos impõe, “arrancar a máscara e reencontrar um sujeito que opta pelos seus desejos, na busca da verdade, liberdade” (p. 115).
Em outras palavras: Crescer.
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*Patrícia Gonçalves Tenório é escritora, poeta, ensaísta, coordenadora do Grupo de Escrita Criativa – Recife PE.
** Este texto também está publicado no blog da autora: http://www.patriciatenorio.com.br/passante-de-joao-fernando-calsavara-e-uma-nao-ficcao-com-tecnicas-refinadas-de-ficcao
Olá! Gostaria de saber onde compro um exemplar de “Passante”. Não estou encontrando na internet! Obrigado!