Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

PLANTAÇÃO DE HORIZONTES: memória e realismo da linguagem

Texto: Paulo Rodrigues*

 

Minha vó Silvéria
não sabia
mas fecundaria
os roçados
da minha poesia.

[Luiza Cantanhêde]

 

 

O livro Plantação de Horizontes da poeta Luiza Cantanhêde foi publicado pela editora Penalux de São Paulo, em 2023. A obra está dividida em quatro seções que dialogam com a geografia dos poemas o tempo inteiro: o piso milenar da terra, não aprendi a arar amanhãs, sementes ainda furam desertos e as mães plantam fé nas tristezas. Os textos versam sobre injustiça, as tragédias pessoais, utopias e memórias.
Mariana Ianelli afirmou no prefácio: “ouve sua terra e seu sangue, forjando dessa atenção poemas que nunca se contentariam em ser lidos, nos inteligentíssimos gabinetes de estudo, por corações anestesiados”. A poética de Luiza anda nos caminhos do vivido, nas noites que dormem nas calçadas da existência, nas manhãs descalças e com fome.
A poeta conhece a ponta dos espinhos e a íris dos invisíveis. Fala por eles, com uma discursividade comovente:

 

AMIGO SECRETO

Meus pés calejados
buscam a infância
como uma penitência
dos perdidos.

As mãos das crianças
a plantar
o caminho.

Abraço os espinhos
e escrevo um poema
para os invisíveis.

(2023, p. 64)

 

Há um testemunho, na abertura do poema: “meus pés calejados/ buscam a infância/ como uma penitência”. O eu lírico prepara a imagem com as mãos nas palavras e no vivenciado por ela própria e pelos seus. Encerra com uma certeza épica: “e escrevo um poema/ para os invisíveis”.
Luiza Cantanhêde trabalha com perspicácia a memória desde o seu primeiro livro (Palafitas). Traz os personagens reais para o terreiro da poesia, retira os trapos das lembranças e veste as metáforas de referencialidade como podemos comprovar no poema O ÁLBUM DE FAMÍLIA PARECE INTACTO:

 

Eu que nasci da terra
cortada pelas ruínas
e pelo sangue
abraço a fome
enquanto a semente
acaricia a plantação.

(2023, p. 87)

 

Benjamin no livro Magia e Técnica, Arte e Política (1985, p. 37) comenta: “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limite, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois”. As construções de linguagem (da poeta estudada) usa bem essas chaves de memória para construir o jogo, inclusive de encantamento, na sua poética.
Para finalizar esta breve análise da questão da memória e do realismo linguístico em Luiza Cantanhêde, trago o poema ANAMNESE:

O que pernoita
em mim
é quase nada
apenas chão
e memória.

Perdi os manuscritos
já é tarde para saber
das rezas e das fugas.

O etéreo visitante
deste momento
é apenas a fagulha
do ferro em brasa
de minha mãe
a engomar nossa
fome.
(2023, p. 89)

Luiza reafirma sua força criadora: “O que pernoita/ em mim/ é quase nada/ apenas chão/ e memória”. O realismo linguístico é de quem declarou no início da carreira literária: “a minha palavra é de coisa vivida”. São versos livres, secos, curtos, ásperos. Fundados na resistência de uma família que representa milhões de nós: “é apenas a fagulha/ do ferro em brasa/ de minha mãe/ a engomar nossa/ fome”.

 

***

*Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é professor de literatura, poeta, ensaísta. É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro Cinelândia. É membro da Academia Poética Brasileira e da Academia Caxiense de Letras.

 

Poetas Bioque Mesito, Luiza Cantanhêde, Sebastião Ribeiro, Paulo Rodrigues e Antonio Aílton, na exposição Laços & Nós, nov./2023