Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Samara Volpony, poeta. Foto: divulgação (editada)

SAMARA VOLPONY, poemas

 

homini

 

nada em nós

a não ser o homem de ontem

que palita os dentes

o homini lupus de plauto

preso noutro tempo

nada em nós

a não ser o homem de ontem

de gestos arcaicos

tocando violoncelo

na fogueira das bruxas

nada em nós

a não ser o homem de ontem

empurrado ladeira abaixo

pela pedra bárbara

de um sísifo ao avesso

nada em nós

de ontem

a não ser

o homem.

 

 

 

genealogia do deserto

 

Smara Volpony. Foto: divulgação

 

 

sou da linhagem das ninfas sem nome,

da terra onde corre o rio entre as pedras:

lençol de água dos dragões.

 

sou do clã dos herdeiros das fomes

e minha pátria é uma miragem,

que ninguém sabe ao certo

onde vivemos (in)felizes para sempre,

cada um no seu deserto.

 

nunca aprendemos o código da humanidade.

 

 

suite nº 3

 

como são terríveis as primeiras horas do dia

e seu desejo de loucura:

suportar o seu desastre sob as nuvens

numa pátria parva

e um corpo em declínio à espera do abraço

 

tocamos árias de bach

para não oferecer à vista o lamento

fizemos todo amor que não demos

solfejamos serenatas

 

dançamos insanamente ao som de monocórdios

para contrariar fragilidades

enquanto tento não ruir

junto ao salitre das paredes

desta casa sem entes.

 

 

stella maris

 

quando vier o mal

e nos assaltar a sorte,

serei o boi condenado ao abate,

que preferiu o naufrágio

a ajoelhar-se à morte.

 

 

 

Samara Volponi. Foto: divulgação

 

babel em progresso

 

 

nosso tempo é curto,

não nos desesperemos,

não nos desesperemos, ainda.

 

avancemos, pois,

na urgência dos dias sem razão.

babel se ergueu sobre nós,

mas não nos precipitemos ao caos,

demo-nos as mãos para que não nos percamos.

 

o asfalto sepultou todas as flores.

o progresso sepultou todas as flores.

nos gabinetes e escritórios, são fabricados

sonhos de caneta e papel.

arquivam-se outros tantos,

e, assim, nascem gerações inteiras e infinitas:

milhares de rostos que não sei.

 

o tempo do progresso chegou,

a ideia do progresso.

vivemos o progresso e o deleite.

mastigamos o grito do progresso,

do mais fino e absurdo.

 

 

*

 

 

Samara Volpony (Samara Laís Silva, Arari/MA, 1990). Poeta brasileira nascida à beira do rio Mearim.

Autora dos livros Contramaré (Patuá, SP, 2017) e Lua de Memórias (Primata, SP, 2021). Vencedora do 4º Concurso Internacional Poesia Urbana, promovido pelo Centro Universitário de Brusque – UNIFEB e 2ª colocada no 2º Concurso Internacional de Poesia da Casa de Espanha. Tem poemas publicados em antologias, jornais e revistas nacionais e internacionais.

Contatos: E-mail: [email protected]

Instagram: @samaravolpony