Antonio Aílton*
*Por ocasião dos 70 anos de nascimento do poeta Salgado Maranhão, 13/11/2023.
Chamarei de ardil o oráculo que transmigra o fogo e o deserto.
[…]
Era um chão insolente e um sol que ejaculava sobre o abandono.
(Salgado Maranhão, O Mapa da Tribo. 7Letras, 2009.)
Em seu processo de escrita, um poeta pode deixar evidente na superfície da linguagem poemática rastilhos que apontam para um aspecto, seja mais musical, através de um investimento forte na sonoridade e na musicalidade (a melopeia), seja em lances de imagens através das palavras, que pretendem projetar-se na imaginação visual do leitor (a fanopeia), seja de um investimento na matéria intelectual, elaboração de abstrações e cisões irônicas entre a linguagem e conteúdo, a palavra poética impulsionando o âmbito reflexivo-ideacional, ou “dança do intelecto entre as palavras” (a logopeia).
Essa é uma percepção que nos foi passada pelo poeta e crítico Ezra Pound, em seu ABC da Literatura, em 1931, mas que certamente contribui para a leitura de textos poéticos até hoje. Na poesia de Salgado Maranhão, podemos considerar uma forte presença das potencialidades imagéticas, ou seja, de uma espessura fanopeica, para usar a linguagem de Pound, que está na base construtiva de suas metáforas fulgurantes, da sua estesia e imaginação sensível, assim como no farol dos seus sentidos, sem que possamos, é claro, separar essa qualidade específica de todo o conjunto de suas potências musicais ou das camadas de significado quem compõem tal adensamento.
Mas um rol de imagens de uma grande poesia nunca será um inventário qualquer, algo utilizado apenas como recurso construtivo ou ilustrativo, ou, ainda, somente um tópico figurativo. É algo que faz parte das próprias entranhas poéticas em sua con/figuração, da corporeidade que sustém o dizer, os direcionamentos dos imaginários humanos que a poesia põe em xeque, ela mesma construindo e expondo mundos singulares.
E aqui é preciso esclarecer, seguindo estudos específicos da imaginação e do imaginário, que este, o imaginário, também apresenta seus níveis, suas evocações e graus de provocação, que tanto podem ser sugeridos pelo poeta na expressão mais óbvia, ou seja, na imagética do texto, quanto podem estar sublimadas em latências, até alcançar o nível simbólico. Sem esquecer que também podem ser evocados pelo leitor sensibilizado, naquele sentido de que, uma vez entregue o poema, o leitor também traz ao encontro dele sua experiência, contribuindo para criar sentidos. Assim, o amplia, tornando-o significativo à sua própria existência, coabitando-o, uma vez que a criação da obra de arte continua através da sensibilidade que ela desperta, como já o afirmou Luiz da Costa Lima, em entrevista.
Desse modo, a dimensão imagético-imaginária do texto pode ocorrer primeiro numa distribuição horizontal, no repertório vocabular-semântico-figurativo que vai despontando no texto, alinhando-se para se irmanarem, imbricarem, até consolidarem umas às outas. É o que encontraríamos em sequências tais como sertão – sol – aridez, ou toque – arrepio – desejo.
Por outro lado, essa rede de imagens também ocorre numa perspectiva de verticalidade, de profundezas. Certas imagens são como a ponta de um iceberg, fazendo parte de redes e troncos mais profundos, basais, os chamados arquétipos, que são grandes fundamentos simbólicos da humanidade – conforme explorado por Carl Gustave Jung e Gilbert Durand – os quais acabam por ser compreendidos como princípios psicanalíticos, ou grandes instâncias interpretativas da condição humana, como as míticas.
Tais considerações são bastante pertinentes a um olhar sobre a poesia de Salgado Maranhão, em que tal dimensão se evidencia nos dois sentidos, elaborando uma trama inextrincável, ainda mais considerando que seus campos imaginários são múltiplos, estendendo-se, para mencionar alguns, do sertão à cidade, do corpo à universalidade, do indivíduo à tribo – ou ao horizonte d’O Mapa da Tribo, como sugere um dos seus títulos.
Mas um dos imaginários mais importantes, diria uma das balizas configurativas dessa poesia salgadiana é, indubitavelmente (palavra perigosa em literatura, porém cabível neste caso), o imaginário ígneo, ou do fogo, em termos imagéticos e simbólicos, metafóricos e arquetipais. Isto, não apenas tomados de forma construtiva, dentro de uma recorrência metafórica provocada, de elementos ígneos, mas também numa evocação almática, coleante e intuitiva, de certas representações culturais e humanas, míticas, ligadas ao elemento “fogo”, como no caso das míticas de Prometeu (o fogo sublime como presente ou palavra de beleza e redenção dos homens), senão de Zeus (o raio que fende ou fecunda através da palavra fulminante); da mítica de Apolo (a consciência luminosa construtiva, claridade, cintilância, limpidez diurna), e a mítica de Eros (a tocha fálica do próprio corpo capaz de provocar “incêndios” e desejos pelo toque, pela fusão de corpos e moléculas, pela ‘fricção’).
Desenvolver tais temáticas certamente exigiriam um espaço outro que não um breve comentário, como fazemos aqui, mas não custa ressaltar isso. Nesse sentido, sobre os termos do caráter apolíneo dessa poesia, é importante trazer um comentário do Prof. Luiz Fernando Valente, do posfácio de A Cor da Palavra (2009), que diz o seguinte: “Podemos caracterizar a poesia de Salgado Maranhão como apolínea não somente no sentido corrente de sobriedade e disciplina, mas também no sentido mais profundo que Friedrich Nietzsche empresta a esse termo”. E sabemos que Apolo é não somente o patrono das artes, como da música, da poesia e da dança, mas o próprio deus-Sol também, o Singular, ou “Não-Muitos”, e, para os romanos, é Febo, Phoebus, o brilhante, iluminado, da provável etimologia ‘Phôs-bio’, a “vida fosforescente”.
Podemos tomar qualquer livro e flagrar aquelas ocorrências. Mas comecemos com o exemplo de Sol Sanguíneo (2002), em que, desde já o título, a instância ígnea aparece, ligando-se à relação somática, à força vital do sangue, isto é: uma relação que parece transformar o hieros, o sagrado, em força erótica, eros. Nesse livro, essa imagética está dada, bastante clara, considerando os elementos relacionados à semântica do fogo, tais como sol, fulminante, flama, dia, etc., associadas a uma noção auroral e sublimizante da linguagem: “Voltar ao limítrofes/ da palavra/ (larva fulminante/ e alarde)/ […] Voltar ao fulminante alarde/ da palavra” (Terra chã, 1); “A flama do dia/ e sua blitz” (Terra chã, 3) “O fogo infiltrado no olhar/ amanhece/ o tecido da fábula,/ exubera o sol/ no gestual da noite/ esquiva”… (Terra chã,7).
Bom lembrar que essa volta à “terra chã” é sempre uma volta ao ardor ctônico, um fogo que permanece mesmo quando os lugares de instância são sombrios, opressivos ou noturnos (…e arder/ sob o sono do tempo/ e sua lírica de escombros…).
Já em O Mapa da Tribo (2013), a volta é ao sertão, às “vilas havidas”, livro no qual o sujeito poético começas por ser representado por “um outro que se disfarça/ entre relâmpagos”. Mas é preciso chegar ao sertão, aos espaços vivenciais de seres crestados, para “beber da não-água/ que inunda o instante/ e o ‘estio’”, e então dizer: “Em meu corpo/ o verão plantou cigarras,/ ergueu palavras sobre ruínas”… “E perdura, inda, em minha boca, a revanche do fogo sanguíneo”… “O grão que rasgou-me/ com palavra, / veio/ com casca. E trouxe/ um coração febril/ para ferver a noite”…
É essa ebulição ou fulgurância interior, assumindo não raro a figura do “Sol noturno”, que se transmuda para a dimensão erótica do aquecimento e da fricção (e até mesmo da devoração). “Vem, /Para eu te abra/ os gomos/ e te provoque/ incêndios”. Essa erótica incendiária, podemos resgatá-la desde a série Deslimites, de Palávora (1955), toda ela gravada a fogo, mas de onde elegemos: “eu sou o ferro. eu sou a forra./ o fogo milenar dessa caldeira/ elevo meu imenso pau de ébano/ obelisco as estrelas”. E, só aí, teríamos matéria de toda um redirecionamento, reversão ou apropriação de elementos para uma simbólica coletiva de evocação cultural afrodescendente, para essa poesia, nos “ferro/forra/ pau [negro] de ébano, fogo milenar”, como memória não somente individual, mas também coletiva, e uma erótica do sublime, tocando as estrelas (em seus amplos sentidos).
Por outro lado, a representação do vigor da poesia, de sua possibilidade mesma de nascer até do terreno agônico das mazelas, como uma flor pode nascer do estrume ou do lodo, também é metaforizado pelo poeta no contraste entre o úmido e o fulgor da vitalidade, no emblemático poema A cor da palavra (do livro homônimo). Ele estabelece, então. a relação, em seu sentido amplo, entre o poeta “que esplende/ a labareda entranhada/ ao rugir/ das pequenas agonias”, e a poesia, que “alumbra o coração/ em seu charco de prímulas”, isto é, a poesia metaforizada por essa flor fulgurante nascida do charco.
Trata-se, pois, de uma trama de referências que, embora partam de uma espessura imagética, metafórica e vocabular, mergulham suas raízes nas regiões profundas e arquetipais, assessoradas por uma apropriação de simbólicas ígneas que podem ser compreendidas não como tópicos aleatórios ou ocasionais, mas como projeções imaginárias intrínsecas da poética salgadiana.
Por óbvio, entendemos que aqui se trata apenas de apontar certos rumos de compreensão, e que tais apontamentos gerais não têm a intenção de interpretar a múltipla e imensa extensão das experiências, formas e sentidos que nos são oferecidos em sua poesia, mesmo a energia significativa ou a potência de cada poema, até de cada verso. Tampouco se trata de afirmar um campo imaginário exclusivo, já que seria possível, nessa mesma poesia, perspectivar inclusive o contraponto do imaginário ígneo: alagadiços e charcos, navegações e pântanos. É importante lembrar que o sertão de Salgado, mesmo o biográfico, inclui esses aspectos. A proposta, por enquanto, é seguir o rumo desse oráculo humano que liberta nosso sol sanguíneo, espalha o brilho nos rastilhos e nos faz tocar o mapa iluminado que conduz à beleza, a fosforescência dessa poesia.
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*SALGADO MARANHÃO
José Salgado Santos, ou simplesmente Salgado Maranhão (Caxias, 13/11/1953) é um poeta e compositor brasileiro maranhense que nasceu no povoado de Canabrava das Moças, município de Caxias – MA), e desde cedo auxiliou os pais na lavoura. Foi alfabetizado tardiamente aos 15 anos. E o gosto pela poesia veio com os trovadores e as rodas de viola que eram feitas em sua casa, confessou o poeta, que aos 20 anos se mudaria definitivamente para o Rio de Janeiro. Antes passou pelo Piauí, Teresina, onde conheceu o poeta tropicalista Torquato Neto e de quem recebeu o nome poético de batismo Salgado Maranhão. Salgado tem mais de 15 livros publicados, é ganhador de vários prêmios, inclusive o Jabuti, por duas vezes, além de outras indicações. Tem sido convidado como representate da poesia brasileira brasileira por diversas universidades norte-americanas e, como compositor, tem parcerias com grandes nomes da MPB, como Alcione, Ivan Lins, Zizi Possi, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Zeca Baleiro e outros.
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*Antonio Aílton é poeta, crítico literário e pesquisador da poesia contemporânea. Autor de MARTELO & FLOR: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira comtemporânea (EDUFMA, 2018) e A camiseta de Atlas (EDUFMA/fapema, 2023)
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