Paulo Rodrigues*
*Por ocasião dos 70 anos de nascimento do poeta Salgado Maranhão, 13/11/2023.
O Mapa da Tribo é o décimo livro de Salgado Maranhão. Lançado pela editora 7Letras (2013), com 99 páginas e cinco seções que vão traçando os caminhos de uma poética capaz de ultrapassar o oceano. A ancestralidade discursiva do poeta é ampliada em muitos poemas.
É certo que a sociedade brasileira é atravessada por muitos discursos, todos em relação, e contidos no sujeito enunciador ora analisado. O discurso literário enquadra-se como constituinte do ser social “designa fundamentalmente os discursos que se propõem como discursos de origem, validados por uma cena de enunciação que autoriza a si mesma” (MAINGUENEAU, 2006, p.60).
Este ensaio deve apresentar uma análise do ethos discursivo de Salgado Maranhão. Usaremos três poemas para demonstrar a nossa inferência, de maneira que as imagens universais construídas na obra consigam apresentar as cenas dos nossos nervos sociológicos.
José Salgado Santos é um homem negro, alfabetizado depois dos quinze anos, que enfrentou os demônios de uma sociedade capitalista periférica (com uma história longa de escravidão). Agarrou-se ao hábito da leitura como uma oração cotidiana. Foi a sua salvação. O poeta ganhou o prêmio Jabuti, em 1999, com Mural de Ventos e o prêmio da Academia Brasileira de Letras com A Cor da Palavra, em 2011. Traduzido para o italiano, francês, alemão e inglês, é destacável autor visitante de muitas universidades nos EUA.
Desenha com muito sucesso uma carreira internacional, porque trabalha a palavra com o compromisso de um Samurai. Ferreira Gullar afirmou: “Salgado faz uma poesia da palavra, muito embora não ignore o real, pois o traduz em fonemas e aliterações. Que não hesita em ir além da lógica do discurso (ou do enlace com o plausível) se o resultado é o impacto vocabular e o inusitado da fala”. Os dois conhecem as vísceras da grande expressão poética. Podemos confirmar o que foi dito – pelo autor de Dentro da Noite Veloz – em:
O sertão mordeu meus calcanhares.
o sertão é um coiote vestido
de súplica (sem que eu visse, abriu
cáries em minhas lembranças;
eis como sangra o poema
vestido
de ausentes;
eis minhas unhas de barro
e servidão.
Em meu corpo
o verão plantou cigarras,
ergueu palavras sobre ruínas
(e essa hipérbole
para além do havido).
Por onde passo
até as pedras uivam.
(MARANHÃO, 2013, p. 19)
É o segundo poema da obra. Apresenta três estrofes que dançam ao som dos tambores dos quilombolas de Canabrava das Moças. O poeta conscientemente sabe que éthos foi uma parte da retórica voltada para reconstituir o passado social. Por isso, denuncia: “eis como sangra o poema/ vestido/ de ausentes;/ eis minhas unhas de barro/ e servidão”.
O servilismo que não desapareceu com a abolição, com a ‘república’, nem mesmo com a Constituição de 1988. “As cigarras” estão espalhadas pelos dias da linguagem e erguem uma identidade nacional.
Salgado valida a palavra nacional mestiça e desconfiada da própria materialidade democrática da existência, nos trópicos: “Por onde passo/ até as pedras uivam”.
Em ORIGEM 2, temos imagens que denunciam o enunciador e nossa gente:
Da seiva que na pele me dá cor
de barro de olaria e couro de tambor,
eis-me timbrado e solto em muitas vias
sujas de outroras e de algarvias.
De tantas que eu até perdi a conta
do que me jaz por jus ou desaponta.
E em ser telúrico e alegre como os rios,
me dou em terra, em sangue e ativos;
eu próprio sendo “o quase que não vinga”,
alimentado a barro de cacimba;
para tornar-me um comedor de verbos,
de sílabas com pimenta e – de soberbo –
notar que, enfim, a vida é caixa-preta,
tudo é transverso e nada ao pé da letra.
(MARANHÃO, 2013, p. 78)
Os dísticos fazem um paralelo entre o pretérito e o presente, arrancando das metáforas motivos, lembranças e guias. O poeta reconhece as marcas da (noite imêmore): “da seiva que na pele me dá cor/de barro de olaria e couro de tambor”.
Salgado reafirma as dificuldades da maioria negra, em nosso país: “eu próprio sendo “o quase que não vinga/ alimentado a barro de cacimba”. Num estilo nada simplista denuncia as tragédias pessoais, num mapa de genocídio dos afro-brasileiros.
Na estrofe final do poema que dá o título da coletânea, observamos o sujeito enunciador reverenciar sua gramática de origem: “ô vento ancestral/ das línguas que me rasuram!/ recluso em meus anexos/ meus ontens me procuram” (MARANHÃO, 2013, p. 89) .
Por fim, os poemas trouxeram um ethos discursivo que busca o universal, o humano, o todo sem retirar a retina da ancestralidade. Salgado Maranhão é a transcendência/imanência, em meio ao caos da palavra contemporânea.
*Paulo Rodrigues é poeta e ensaísta, autor de Cinelândia (Folheando, 2021) e A claridade da gente (Penalux, 2023)
Parabéns ao poeta Salgado Maranhão! Ele é um mestre da Língua Portuguesa que amplia a Semiótica da nossa literatura.