diário de viagem
(ao núcleo do ser que não estava)
às 11 horas era permitido deixar a mesa de trabalho
era permitido tirar os sapatos
e andar de meias pela sala vazia
era permitido fechar a porta
botar o celular em modo avião
e ler uma página do I Ching
e silenciosamente consultar o oráculo
ao som de Mateus Aleluia
era permitir não fazer nada
apenas ficar parado
olhos fechados
pensamentos sem vigilância
(descobri uma cantora: Verônica Ferriani)
as 11h20 era preciso voltar
à burocracia
abrir a porta
calçar os sapatos
consultar mensagens
calar a música.
***
deixa os livros
e conta os anos como se lembrasse que nada é eterno
e volta outra vez
canta outra vez
vive outra vez
o primeiro dia
***
salmo
és pó, disse
sua voz de cachoeira dentro da sala
a vida é apenas frágil
vês a árvore cheia de silêncios?
és o que importa, disse
sua voz de céu aberto
seus olhos imensos como um deserto
cheio de estrelas de fogo
és o rio que flui, disse
e seu corpo como uma galáxia
era como o oceano
na maré cheia
és o que vi, disse
quando acordei diante de deus
o verde dos campos
tingiu meus pés
és o que falta, disse
sua voz como um vento lilás
no entardecer nos olhos
de um deserto onde o sol não vinha
***
variação para Munch
Há uma terceira voz na noite
nos lagos onde caem estrelas
onde fósforo irradia solto
a mesma cor nos azulejos
Há uma terceira boca nos espinhos
e entre as farpas que tecem a noite
se o olho aberto é apenas tinta
se na tinta há um grito rouco
Na forma da água o sentido
na forma do azulejo a tinta
dá o contorno onde habito
onde nada penso, só sinto
e sentir é ter nas mãos o silêncio
e a voz que na noite é sombra
e ao perder-se na parte de dentro
é ser o modo de cair longe
e na face a memória partida
a força do fogo como um incêndio
nas horas densas o princípio
e o ocaso que devora o tempo.
***
seu primeiro pai
morreu na guerra
virou orixá
nas terras de África
conta-se que vez ou outra
ainda aparece
nos terreiros da Bahia
seu avô
também tinha
algo do velho axé
dizia conversar com mãe d’águas
via sinais na lua cheia
mas minha vó dizia
que era tudo lorota
hoje
ele que nunca viu
os mistérios da encruzilhada
vive burocraticamente
os dias todos
se matando de tédio
às vezes sonha
com o axé das matas
e com sua mãe
que mora no mar.
***
Raimundo Soares é poeta contemporâneo, de Itapecuru-Mirim, MA. Granduando em Letras. Concebe a poesia como exercício livre do ser e da arte.
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