Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Fonte: pt.pngtree.com

O Salmo e o Silêncio: Entre a Fé e o Vazio em VIRIATO GASPAR – Um texto de César Borralho na despedida de 2024

SALMO ZERO
[Viriato Gaspar]

Que soma nos define? Os dias tidos,
as horas de pavor, as gargalhadas?
Os passos espremidos nas calçadas
do tempo que já foi, virou grunhidos?
Os acenos não vistos, os apelos
a que ninguém deu trégua ou pôs reparo?
Os olhos que serviram de anteparos
a tanta escuridão e desmantelos?
As mãos, que a gente encolhe rente ao corpo,
o poço que areiou ao vento torto
das horas sem ninguém, só frio e lama?
Esse universo fundo que se empina
quando a noite por fim puxa a cortina
e cobre a solidão que encharca a cama?

Fonte: pt.pngtree.com

II

O que, se a manhã chega, nos borbulha,
nos faz rasgar o mundo, porta afora?
Colher a gana, a chama, o alho, a hulha,
esse carvão sem cor que o mundo escora?
Que sentido maior há nessa urgência
de ir guerrear aos tapas pelo pão,
se a cada instante um novo pescoção
enfarpa em nosso lombo a impermanência?
O que nos oceana sem navios,
nos meses de calor, dias de estio,
em busca de lugar, de chão, de fama?
Quanto se gasta enfim dos próprios lumes
atrás desses relances de perfume,
que não demora em nós, logo derrama?

III

Mas há que se espraiar os ossos magros
para a gamela adunca dos enguiços.
Ritos, serões, agendas, compromissos,
tanger as horas vãs e os seus emplastros.
O pão que teu suor ganha com custo,
a outros sobra lá, sem nenhum susto.
Os que mourejam mais são os que não
menos mariscam os risos e algum pão.
Ao homem o mundo todo não lhe basta.
Nada há capaz de encher seu apetite.
Se encorpa seu manjar, lhe engrossa a pasta,
que os outros se confortem com arrebites.
Esse saco sem fundo não tem flor.
O erro que Deus fez querendo amor.

(Viriato Gaspar,
10/12/2024)

 

O Salmo e o Silêncio:

Entre a Fé e o Vazio em Viriato Gaspar

 

Por  César Borralho*

Viriato Gaspar, em Salmo Zero, tece um poema de extraordinária profundidade, onde cada verso ressoa como uma nota em harmonia com as inquietações da existência. O texto, construído com a precisão de um artesão e a alma de um visionário, desliza entre múltiplas camadas de significado, explorando, com sensibilidade e agudeza, as complexidades da condição humana e os dilemas que permeiam a relação entre fé e realidade. O título, de uma simplicidade aparente, revela-se um enigma repleto de nuances: ao mesmo tempo um ponto de partida e uma interrogação, uma negação e uma promessa, convidando o leitor a adentrar um universo de interpretações ricas e multifacetadas, onde o humano e o divino se encontram e se desencontram.

Viriato Gspar – divulgação

     I.          Do Título

A escolha do título, Salmo Zero, é, em si, uma afirmação paradoxal que provoca reflexão desde o primeiro contato com a obra. Em seu sentido mais imediato, “salmo” evoca a tradição dos cânticos religiosos, compondo um imaginário de devoção, súplica e celebração da conexão com o divino. Essa palavra carrega consigo o peso da espiritualidade e da ritualística, remetendo aos textos bíblicos que tanto confortam quanto exaltam o homem em sua relação com Deus. Entretanto, o acréscimo de “zero” subverte e desconstrói essa expectativa. O “zero” é o vazio, a ausência, o estado inicial ou o ponto de aniquilação. Ele desloca o salmo de sua posição de louvor e o reinscreve em um campo de dúvida, ruptura e negação. Não é um salmo qualquer, mas um que parece nascido de um mundo em que a transcendência se encontra fragmentada, obscurecida ou inacessível. Essa escolha pode ser interpretada como uma tentativa de adaptar a forma tradicional do salmo a uma era marcada pela incerteza, onde as respostas que antes pareciam absolutas se dissolvem diante das contradições e complexidades do cotidiano. Nesse contexto, Salmo Zero se torna a expressão de uma espiritualidade questionadora, que não renuncia à busca, mas que também não encontra um ponto final de consolação. Por outro lado, o “zero” também pode ser lido como um retorno ao princípio, uma prece inaugural que precede os demais salmos, um primeiro movimento em direção ao divino que ainda não se completou. Diferente de uma negação definitiva, o título pode sugerir um convite para refletir sobre a essência do ato de louvar: o que é preciso para que um salmo seja realmente pleno? E, mais profundamente, qual é o lugar de Deus – ou de sua ausência – em um universo tão fragmentado? Ao conjugar a tradição do “salmo” com a ruptura representada pelo “zero”, Viriato Gaspar constrói um espaço liminar, onde fé e dúvida coexistem, onde a busca pelo sagrado se entrelaça com a percepção de um vazio inexorável. O título, portanto, não apenas nomeia o poema, mas orienta o leitor a abordá-lo com uma disposição que vai além do literal, convidando-o a uma experiência ao mesmo tempo contemplativa e desafiadora, onde as respostas podem nunca vir, mas a pergunta permanece como o cerne da existência humana.

  II.          Da Contabilidade do Vivido

Na abertura de Salmo Zero, o poeta lança uma pergunta que reverbera ao longo de todo o poema: “Que soma nos define?” Este verso inicial não apenas define o tom reflexivo da primeira parte, mas também introduz uma questão existencial que se liga intimamente ao “zero” do título. A ideia de “soma” remete à tentativa humana de quantificar a experiência vivida – dias, horas, emoções –, como se a totalidade de uma vida pudesse ser medida ou reduzida a uma equação. Contudo, o saldo que emerge é ambíguo, incerto, e, talvez, como sugere o título, nulo. A sequência “dias tidos, horas de pavor, gargalhadas” reflete um inventário fragmentado das vivências humanas. O poeta apresenta essas parcelas de vida como oposições que se anulam: alegria e medo, presença e ausência, luz e sombra. Esse equilíbrio precário sugere que a existência, longe de ser um todo coerente, é uma soma de extremos que frequentemente se sobrepõem sem oferecer um sentido claro. O tempo, por sua vez, ganha uma presença quase corpórea. A metáfora das “calçadas do tempo que já foi” personifica o passado como um espaço físico, marcado pelos passos de quem o percorreu. Mas esses passos não deixam marcas permanentes – transformam-se em “grunhidos”, sons vagos e desarticulados que evocam a impossibilidade de resgatar o que já passou. O tempo não é apenas um fluxo; é uma presença esmagadora que distorce e dilui a memória. A desconexão e a solidão são amplificadas por imagens como “os acenos não vistos” e “os olhos que serviram de anteparos a tanta escuridão”. Os “acenos não vistos” apontam para as oportunidades perdidas de comunicação e conexão – momentos em que o outro estendeu a mão, mas encontrou o vazio. Já os “olhos” que enfrentaram a “escuridão” não apenas observam, mas absorvem os desmantelos da vida, tornando-se cúmplices involuntários de um mundo hostil. A cena noturna que encerra esta parte – “a solidão que encharca a cama” – sintetiza a vulnerabilidade do ser humano diante da vastidão do vazio. A cama, tradicionalmente símbolo de descanso e intimidade, é aqui um lugar de isolamento, onde o indivíduo, despido de máscaras e distrações, confronta sua própria essência. A noite, que deveria oferecer repouso, transforma-se em uma cortina que cobre e perpetua o desamparo. Essa contabilidade do vivido, ao mesmo tempo íntima e universal, não apenas expõe as fragilidades humanas, mas também insinua uma crítica sutil ao papel do divino ou à ausência dele. Ao confrontar a fragmentação da experiência, o poeta sugere que o esforço de atribuir sentido à vida é, muitas vezes, frustrado pela realidade inexorável da impermanência e da desconexão. Assim, a soma que nos define pode não ser uma soma, mas uma ausência – um “zero” que encapsula a essência de uma existência fragmentada e inacabada.

III.          Da Urgência do Agora

Na segunda parte de Salmo Zero, Viriato Gaspar mergulha no cotidiano, onde o impulso de “guerrear aos tapas pelo pão” traduz a luta incessante e desumanizadora pela sobrevivência. Este verso encapsula a batalha diária de subsistência em um mundo que exige esforço extenuante e, em troca, oferece apenas recompensas fugazes. Aqui, o pão – símbolo bíblico de sustento e comunhão – é reconfigurado como um objeto de disputa brutal, em que o esforço se transforma em violência e o sentido da busca parece se dissolver. A metáfora do “carvão sem cor que o mundo escora” é particularmente poderosa. O carvão, normalmente associado ao fogo e à energia, aqui está desprovido de brilho, reduzido a um estado inerte e apagado. Ele simboliza não apenas o trabalho árduo e repetitivo, mas também a falta de inspiração e vitalidade em uma rotina que esgota, ao invés de nutrir. O mundo, sustentado por esse carvão insípido, torna-se uma estrutura fria e mecânica, onde o esforço humano é subsumido por um sistema indiferente. O verso “Que sentido maior há nessa urgência?” emerge como uma pergunta central, desnudando o absurdo dessa luta. A “urgência” sugere uma pulsão instintiva, quase inescapável, que nos empurra para a ação, mesmo quando o objetivo é incerto ou aparentemente vazio de significado. Essa inquietação nos conecta ao “zero” do título: se na primeira parte o “zero” sugeria o saldo incerto do vivido, aqui ele se apresenta como a nulidade da busca. Persistimos, mesmo sabendo que o esforço pode resultar em nada. Os “relances de perfume, que não demora em nós, logo derrama” capturam a efemeridade das recompensas que buscamos. A imagem do perfume, tão evocativa de beleza e transcendência, é imediatamente desfeita pela sua transitoriedade. O perfume que “logo derrama” ilustra o paradoxo da experiência humana: buscamos constantemente algo que, quando alcançado, escapa de nossas mãos. É uma ironia amarga, um lembrete de que a vida é permeada por um ciclo de desejos que se frustram no momento mesmo em que se realizam. Essa parte do poema, contudo, não se limita à crítica do cotidiano. Ela também questiona o que nos move. Por que persistimos? O que nos dá forças para continuar, mesmo diante da precariedade e da impermanência? O “zero”, aqui, pode ser tanto o ponto de partida quanto o destino inevitável. A urgência do agora reflete a tensão entre o instinto de sobrevivência e a consciência de sua futilidade – um dilema que confere profundidade existencial ao poema. Ao expor o vazio subjacente à luta cotidiana, Gaspar não apenas revela a fragilidade do humano, mas também insinua um anseio por algo que transcenda esse ciclo incessante. A força que nos impulsiona pode ser instintiva, mas a reflexão sobre ela é profundamente humana. Nesse sentido, Salmo Zero não é apenas um retrato do agora; é uma exploração daquilo que nos define como seres em busca, mesmo quando a busca parece destinada ao fracasso.

IV.          Da Fome Insaciável

Na parte final de Salmo Zero, Viriato Gaspar conduz o leitor a uma reflexão de densidade máxima, onde a precariedade humana e a desigualdade estrutural se entrelaçam com a insaciabilidade do desejo. É aqui que o poema atinge seu ápice crítico e filosófico, expondo as falhas da humanidade e, ao mesmo tempo, insinuando uma imperfeição na própria criação divina. A metáfora da “gamela adunca dos enguiços” é particularmente poderosa. A “gamela” – um recipiente simples, associado à partilha e ao sustento básico – é descrita como “adunca”, curvada, torta, evocando imagens de inadequação e carência. Este recipiente distorcido sugere que o que é partilhado entre os que vivem na precariedade é, em si, insuficiente e deformado, uma síntese cruel da injustiça e da fragilidade que define a existência de muitos. O poeta, ao afirmar que “os que mourejam mais são os que não menos mariscam os risos e algum pão”, denuncia com precisão e amargura o abismo que separa o esforço da recompensa. A imagem daqueles que “mourejam”, ou seja, que trabalham arduamente, contrasta com sua escassez de alegria e sustento, indicando uma sociedade que distribui de forma desigual não apenas os bens materiais, mas também a dignidade e o reconhecimento. A crítica social se aprofunda com o verso “Ao homem o mundo todo não lhe basta”. Este é um diagnóstico implacável da natureza humana: a fome por mais – mais recursos, mais poder, mais sentido – é insaciável. O “zero” do título aqui ganha um significado ampliado, simbolizando não apenas o vazio, mas um estado de impossibilidade de plenitude. O desejo humano, por sua própria essência, é um poço sem fundo, incapaz de ser preenchido por qualquer quantidade de conquistas ou posses. O verso final – “O erro que Deus fez querendo amor” – é uma das mais audaciosas afirmações do poema. Longe de ser uma mera crítica ao Criador, essa frase sugere uma reflexão mais complexa: a própria natureza humana, com suas falhas, suas fomes e sua insaciabilidade, é resultado de um ato de criação imperfeito. O “amor” que Deus buscava ao criar o homem parece ter sido, neste contexto, um projeto destinado à frustração. O homem, em sua busca incessante por completude, é incapaz de retribuir esse amor de maneira plena, preso em um ciclo de desejos que nunca são completamente satisfeitos. Este verso final transforma o poema em uma meditação profunda sobre a condição humana. A fome insaciável não é apenas um problema social ou individual, mas uma característica inerente à própria essência do ser humano. Nesse sentido, o poema não se limita a criticar as estruturas de desigualdade ou a fragilidade da existência: ele sugere que o próprio universo, tal como foi concebido, carrega consigo um traço de incompletude que permeia todas as coisas. Em Salmo Zero, Viriato Gaspar apresenta uma visão onde o humano e o divino se encontram em um paradoxo. O homem, criado para amar e buscar sentido, encontra-se preso em sua incapacidade de preencher o vazio que o constitui. Deus, em sua tentativa de criar algo belo e amoroso, talvez tenha subestimado a complexidade e as contradições que essa criação acarretaria. Assim, o poema não é apenas um retrato do sofrimento humano, mas um questionamento profundo sobre a relação entre o Criador e sua obra. É uma reflexão que ressoa não apenas como crítica, mas como um convite à contemplação das falhas e belezas de nossa existência incompleta.

   V.          Do Sagrado e do Mundano

Salmo Zero transcende o papel de uma mera análise da condição humana ao se tornar um questionamento profundo e multifacetado sobre a relação entre o humano e o divino. Enquanto os salmos tradicionais buscam o consolo, a proteção ou a celebração da presença divina, este “salmo” apresenta-se como um grito dissonante, uma prece feita de silêncio e dúvida, onde a transcendência é substituída pela ausência, e o louvor cede lugar à introspecção e à crítica. O título Salmo Zero já é, em si, um gesto subversivo que posiciona o poema à margem da tradição religiosa. O “zero” carrega um peso simbólico significativo: ele é, ao mesmo tempo, a ausência absoluta e a possibilidade de um ponto de partida. Aqui, ele parece refletir a experiência de um mundo onde a conexão com o divino não é mais direta ou garantida, mas mediada por dúvidas, falhas e a sensação constante de vazio. Nesse contexto, o salmo não é mais uma expressão de plenitude espiritual, mas um eco da falta – uma tentativa de preencher, com palavras, o espaço deixado por uma transcendência que parece cada vez mais distante. Esse deslocamento ressignifica o próprio conceito de salmo. Tradicionalmente, os salmos são vistos como textos que afirmam a relação entre o homem e Deus, expressando fé, louvor ou penitência. Em Salmo Zero, porém, o texto revela uma condição de desamparo e incerteza, que não apenas reflete a fragilidade do humano, mas também questiona a suficiência do divino em face das contradições e angústias da existência. O “zero”, portanto, não é apenas um marcador de ausência ou nulidade; é também uma negação ao mesmo tempo que uma possibilidade – o espaço onde uma nova compreensão do divino pode ser construída. Ao longo do poema, o divino é sugerido mais pela sua ausência do que pela sua presença. A fome insaciável, a luta cotidiana e o vazio existencial são retratados não como falhas exclusivamente humanas, mas como sintomas de um universo que carrega em si a marca de sua própria incompletude. Quando o poeta afirma que “o erro que Deus fez querendo amor”, não se trata de uma simples acusação ao Criador, mas de uma reflexão sobre os limites de Sua obra. Deus, ao criar o homem, desejou algo sublime – o amor –, mas produziu um ser cuja essência parece estar em constante conflito com esse ideal. Essa tensão entre o humano e o divino sugere que o poema não apenas critica, mas também oferece uma prece peculiar: uma súplica por sentido em um mundo onde o sagrado se apresenta como ausência. Nesse sentido, Salmo Zero é ao mesmo tempo um salmo inaugural e um salmo final. Inaugural, porque abre espaço para uma espiritualidade nova, construída a partir da dúvida e da busca, e final, porque encerra a noção de um divino plenamente acessível ou consolador. O poema, portanto, não se limita a descrever a condição humana; ele nos convida a refletir sobre a própria natureza do divino e sobre a relação entre Criador e criatura. Se Deus desejava amor ao criar o homem, o resultado foi um ser marcado pelo desejo, pelo vazio e pela incompletude. E, no entanto, é nesse estado de imperfeição que reside a possibilidade de algo maior – uma busca que nunca se completa, mas que define a essência do humano. Assim, Salmo Zero não é apenas um poema sobre ausência, mas também sobre potencialidade. Ele nos desafia a reimaginar o divino não como uma presença absoluta e imutável, mas como algo que se revela na própria luta, na dúvida e na persistência em buscar, mesmo quando o resultado parece ser apenas o “zero”. Essa visão confere ao poema uma beleza paradoxal: ele encontra significado na ausência de significado, um eco do que é profundamente humano e, talvez, divino.

VI.          O Salmo Encerrado

Salmo Zero é uma obra singular que se move com elegância entre extremos: o sublime e o prosaico, o divino e o terreno, a plenitude e o vazio. Viriato Gaspar, com sua linguagem rica em imagens evocativas e metáforas profundas, constrói um poema que desafia o leitor a navegar pelas ambiguidades fundamentais da existência humana e do próprio ato de crer. A força do texto reside justamente em sua capacidade de entrelaçar o concreto e o transcendente, desnudando tanto as realidades mais cruas do cotidiano quanto as aspirações mais elevadas da alma. O título, Salmo Zero, sintetiza com maestria o dilema central da obra. “Salmo” remete à tradição de louvor e súplica, enquanto “zero” desconstrói essa expectativa ao evocar o vazio, a ausência ou o ponto de partida. Essa dualidade reflete o espírito do poema: uma prece que não busca consolo, mas que se ergue em meio às dúvidas e à ausência, oferecendo uma meditação sobre a impossibilidade de encontrar plenitude em um mundo tão marcado pela falha e pela impermanência. Ao expor a insaciabilidade humana e a precariedade do cotidiano, Gaspar não apenas descreve o esforço incessante pela sobrevivência, mas também questiona o sentido dessa luta. A insaciabilidade – esse “saco sem fundo” da alma humana – é apresentada como uma marca indelével de nossa condição, uma fome que nunca é plenamente saciada e que nos condena a um ciclo interminável de busca e frustração. Essa reflexão, ao mesmo tempo trágica e profundamente humana, posiciona o poema como um espelho inquietante para os leitores, que inevitavelmente se reconhecem em suas tensões e contradições. A precariedade cotidiana, simbolizada pela “gamela adunca dos enguiços”, é mais do que um retrato social; é uma denúncia incisiva das desigualdades estruturais e, ao mesmo tempo, um lembrete de que a experiência humana é profundamente marcada por desproporções entre esforço e recompensa. Contudo, o poema vai além da crítica social ao sugerir que essas mesmas condições de fragilidade e luta são o terreno fértil onde brotam as perguntas mais fundamentais sobre o significado da vida. A frase que encerra o poema – “O erro que Deus fez querendo amor” – não é apenas uma provocação, mas uma meditação filosófica sobre a própria natureza da criação. Se o amor foi o propósito divino ao criar o homem, o resultado parece ter sido uma obra marcada pela imperfeição e pela fome insaciável por sentido. Esse erro, no entanto, não é apresentado como um fracasso definitivo, mas como a essência de nossa humanidade: a busca constante por algo maior, ainda que essa busca nunca seja plenamente satisfeita. Salmo Zero, portanto, não é apenas um poema; é uma experiência literária que dialoga com questões existenciais, teológicas e sociais. É, ao mesmo tempo, uma denúncia das falhas do mundo e uma prece por transcendência. Gaspar nos convida a contemplar o vazio não como um fim, mas como um espaço de possibilidades, um ponto de partida para a reflexão e a reinvenção. Essa obra é indispensável para aqueles que buscam, na literatura, um espaço para refletir sobre suas próprias inquietações. Ao confrontar as fragilidades humanas e questionar as limitações do divino, Salmo Zero se torna um testemunho do que significa ser humano em um universo inacabado, onde a luta por sentido é ao mesmo tempo nossa maior tragédia e nossa maior força. É uma obra que ressoa como um eco de nossas dúvidas mais profundas e, paradoxalmente, como uma fagulha de esperança.

 

*César Borralho é poeta e professor de Filosofia.