DELICADAS PELÍCULAS
E ESPERANÇAS COMPARTILHADAS
por Bioque Mesito
AS DUAS INGLESAS E O AMOR
Título original: Les Deux Anglaises et le Continent
Direção: François Truffaut
Gênero: Drama/Romance
País/Ano: França, 1971
Dualidade amorosa entre belezas
As duas inglesas e o amor (Les Deux Anglaises et le Continent), dirigido por François Truffaut, apresenta um enredo que reflete as temáticas recorrentes do cineasta francês, mas, ao contrário de outras obras consagradas, aqui o resultado parece menos impactante. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Henri-Pierre Roché, autor também de Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (1962), o que naturalmente convida a comparações. No entanto, ao contrário da intensidade emocional de Jules e Jim, esta segunda adaptação não consegue cativar com a mesma força.
A ambientação da Belle Époque, que poderia ser um elemento atrativo, é visualmente pouco imersiva, o que talvez se deva a restrições orçamentárias. Isso compromete a construção de um universo que deveria ser mais convincente, deixando a experiência visual aquém do esperado. Mesmo a trilha sonora suave e nostálgica, composta por Georges Delerue, não é suficiente para compensar a fraca ambientação, ainda que melhore a atmosfera em algumas cenas mais emotivas.
As atuações também deixam a desejar. Jean-Pierre Léaud, no papel de Claude Roc, interpreta o típico dândi romântico dividido entre duas irmãs, mas sua performance não alcança a profundidade necessária para envolver o espectador. Léaud, conhecido por sua sólida presença em outros filmes de Truffaut, não consegue imprimir aqui a mesma força dramática. Isso levanta a questão de como a escolha de outras atrizes nos papéis principais poderia ter alterado a dinâmica do filme.
Outro aspecto que prejudica a narrativa é o uso excessivo da narração em off, recurso frequentemente utilizado por Truffaut. Aqui, a narração do próprio diretor soa apática e monótona, atropelando eventos e sentimentos que teriam maior impacto se fossem expressos visualmente ou por meio das atuações. Em vez de enriquecer a trama, a narração acaba por torná-la mais lenta e cansativa.
Apesar das dificuldades, o filme oferece alguns momentos de interesse, especialmente na forma como aborda a dualidade do amor. A primeira parte do longa retrata um romantismo quase anacrônico, enquanto a segunda explora uma visão mais moderna e desencantada das relações, incluindo a naturalidade com que são apresentados temas como relacionamentos abertos. Esse contraste entre o idealismo e a realidade carnal do amor é uma das poucas qualidades que se destacam.
O triângulo amoroso entre Claude, Anne e Muriel explora as complexidades do amor físico e intelectual, bem como a tensão entre alegria e dor. No entanto, mesmo essa exploração profunda não é suficiente para salvar o filme de uma narrativa que, no geral, carece de dinamismo e de personagens verdadeiramente cativantes.
No final, As duas inglesas e o amor se revela uma experiência cinematográfica irregular – visualmente agradável em algumas paisagens, mas emocionalmente distante. Dentre os filmes de Truffaut, este é provavelmente o menos conhecido e, talvez, o menos envolvente. Uma obra que, apesar de explorar os dilemas do amor com alguma originalidade, não consegue alcançar o brilho de outras criações do diretor.
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ELAS
Título original: Elles
Direção: Malgorzata Szumowska
Gênero: Drama
País/Ano: França, 2011
Sensualmente intrigante
Elas é um filme que caminha na delicada linha entre o drama e o documentário, apresentando uma narrativa que, embora não alcance todo o seu potencial, traz momentos que instigam reflexões sobre a prostituição e as relações de poder. Dirigido por Malgorzata Szumowska, o longa conta com Juliette Binoche no papel de Anne, uma jornalista que investiga a vida de jovens prostitutas universitárias em Paris.
Binoche, com seu magnetismo habitual, encarna uma personagem que mergulha na vida dessas mulheres, não apenas como uma observadora passiva, mas quase como uma participante emocional. Embora sua atuação seja sólida, o roteiro acaba relegando sua personagem a segundo plano em certos momentos, o que permite que as jovens atrizes Anaïs Demoustier (Charlotte) e Anaïs Fabre brilhem com performances autênticas e sensíveis.
O filme tem um apelo visual marcante, com uma direção de fotografia que capta a beleza e a decadência do ambiente parisiense. As cenas que envolvem jantares, cozinhas e mesas são quase sensoriais, despertando no espectador uma estranha vontade de estar presente nesses espaços de intimidade compartilhada. A trilha sonora, com destaque para a clássica Les Feuilles Mortes, contribui para a atmosfera melancólica e envolvente.
Elas abordam a prostituição sem cair no moralismo ou na condenação explícita. No entanto, a leveza com que o tema é tratado pode ser vista como uma faca de dois gumes: enquanto alguns podem apreciar a neutralidade, outros podem perceber uma abordagem romantizada, que flerta com o fetichismo. O filme sugere que a prostituição, por vezes, é apresentada como uma forma de libertação sexual em contraste com o casamento, que aparece como uma prisão emocional.
Essa perspectiva, no entanto, carece de um aprofundamento crítico. Embora o longa levante questões importantes sobre a exploração, as dinâmicas de poder e os riscos inerentes à prostituição, ele não avança suficientemente nessas discussões. Fica a sensação de que o filme poderia ter ido além, especialmente nas cenas mais marcantes, como as interações entre Anne e as prostitutas, que revelam afeto e cumplicidade, mas sem explorar a complexidade das suas realidades.
Elas é, portanto, um filme esteticamente belo e com boas atuações, especialmente de Binoche, mas que poderia ter sido muito mais poderoso nas mãos de um diretor com uma visão mais crítica e aprofundada. Mesmo assim, vale a pena assistir, especialmente para aqueles que buscam uma obra que desafia o espectador a tomar sua própria posição diante de temas delicados e complexos.
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JEANNE DIELMAN
Título original: Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles
Direção: Ruben Östlund
Gênero: Drama/Comédia
País/Ano: França/Reino Unido/Irlanda do Norte/Suécia, 2022
A dieta rígida do cotidiano
Dirigido por Chantal Akerman, Jeanne Dielman é uma obra que desafia a paciência e a atenção do espectador ao explorar, com uma precisão quase documental, três dias na vida de Jeanne Dielman, uma dona de casa viúva, interpretada magistralmente por Delphine Seyrig. Jeanne vive uma rotina repetitiva e meticulosa, onde cada detalhe importa: desde arrumar as camas até preparar o jantar para seu filho adolescente, Sylvain (Jan Decorte), tudo segue um padrão rígido que parece ser a única coisa que mantém sua vida em equilíbrio.
No entanto, essa rotina aparentemente perfeita esconde uma vida de isolamento, onde a monotonia se mistura a uma atividade secreta que ela realiza três vezes por semana: receber homens em sua casa para se prostituir. A maneira com que Akerman apresenta essa parte da vida de Jeanne não é sensacionalista, mas sim sutil e quase mecânica, o que contribui para a construção de um personagem que não parece conhecer nem o prazer nem a liberdade.
No segundo dia, porém, pequenos deslizes começam a acontecer. A perfeição da rotina de Jeanne se desfaz lentamente, revelando fissuras emocionais e psicológicas que culminam em uma sequência final que surpreende pela sua frieza e impacto. É nesse momento que o filme transcende o retrato de uma simples dona de casa para se tornar uma reflexão sobre a alienação, a opressão silenciosa das mulheres e o peso do cotidiano.
Akerman rejeitava o rótulo de cineasta feminista, embora sua obra dialogue profundamente com questões femininas, a diretora belga trouxe para o cinema não apenas suas vivências pessoais, mas também suas observações sobre temas como racismo, imigração e as desigualdades de gênero. Essa universalidade é o que torna Jeanne Dielman uma obra ainda relevante e discutida por diferentes gerações de cinéfilos.
Esteticamente, o filme é uma aula de cinema sobre tempo e espaço. A câmera de Akerman permanece fixa por longos períodos, forçando o espectador a observar cada detalhe da rotina de Jeanne. Essa escolha estilística não é apenas uma estratégia narrativa, mas também um convite à reflexão sobre o papel das mulheres na sociedade e o que significa viver uma vida sem grandes eventos, mas cheia de pressão e invisibilidade.
Delphine Seyrig entrega uma atuação que vai além das palavras, com gestos precisos e olhares que comunicam uma gama de emoções reprimidas. Jacques Doniol-Valcroze e Jan Decorte também contribuem para o clima minimalista do filme, mas é Seyrig quem domina a tela com sua presença hipnótica.
Jeanne Dielman não é um filme fácil. Sua narrativa lenta e contemplativa pode ser um desafio para muitos, mas é justamente essa lentidão que o torna tão único. É uma obra que não se apressa em entregar respostas, mas convida o espectador a mergulhar na vida de sua protagonista, a sentir sua angústia e a perceber a ruptura que se aproxima. Akerman criou um filme que não apenas representa, mas também questiona o tempo e a existência, deixando um legado que continua a reverberar no cinema contemporâneo. Este filme foi considerado por um site especializado em cinema, como o melhor de todos os tempos.
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O QUARTO AO LADO
Título original: The Room Next Door
Direção: Pedro Almodóvar
Gênero: Comédia dramática
País/Ano: Estados Unidos, 2024
A dança irônica entre a vida e a morte
Pedro Almodóvar retorna à cena com O quarto ao lado, uma obra que equilibra de forma magistral temas densos como a eutanásia, a amizade e a inevitabilidade da morte, temperados com sua já conhecida veia cômica e um olhar afiado sobre as nuances da vida contemporânea. Baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, o filme marca a estreia do diretor espanhol em uma produção totalmente falada em inglês, com performances notáveis de Tilda Swinton e Julianne Moore, que assumem os papéis centrais.
A trama gira em torno de Martha (Swinton), uma jornalista de guerra que descobre estar com câncer em estado avançado, e sua amiga Ingrid (Moore), uma escritora que sempre evitou confrontar o tema da morte em suas obras. Agora, ao acompanhar de perto o declínio da amiga, Ingrid é forçada a encarar suas próprias angústias e questionamentos sobre o fim da vida.
O dilema ético da eutanásia é abordado de maneira sutil, mas poderosa. Martha decide encerrar sua jornada por meio da morte assistida, enquanto Ingrid, ainda presa a suas dúvidas existenciais, observa com uma mistura de fascínio e medo a determinação da amiga em buscar um “fim digno”. Almodóvar não julga nem romantiza essa escolha, mas a apresenta como parte do diálogo sobre a autonomia individual frente à mortalidade.
Embora o filme tenha como foco central a relação entre Martha e Ingrid, o personagem Damian (John Turturro) adiciona uma camada crítica ao enredo ao trazer à tona o debate sobre o aquecimento global. Em uma Nova York surpreendentemente coberta de neve, Damian, um ativista climático, questiona as mudanças ambientais, mas sem a pretensão de transformar o filme em um manifesto ecológico. Em vez disso, o aquecimento global surge como pano de fundo, quase como um lembrete irônico da fragilidade da existência humana diante de forças que estão além do controle.
O toque melodramático, uma marca registrada de Almodóvar, está presente em cenas que oscilam entre o cômico e o trágico. Flashbacks revelam episódios do passado de Martha, incluindo um relacionamento marcado por uma tragédia quase teatral: a morte de um ex-namorado em um incêndio. Essa mistura de melodrama e humor, inspirada em diretores clássicos como Douglas Sirk, dá ao filme uma textura emocionalmente rica e envolvente.
Apesar da seriedade dos temas abordados, O quarto ao lado é também uma comédia brilhante. O tom impecável das piadas, combinado com o talento indiscutível de Swinton e Moore, cria momentos leves que contrastam com o peso das questões existenciais. Almodóvar prova mais uma vez que é possível fazer o espectador rir e refletir ao mesmo tempo.
Premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza 2024, o filme reafirma a capacidade de Almodóvar de contar histórias profundamente humanas, mesclando vida e morte, dor e riso, com uma sensibilidade única. O Quarto ao Lado é uma reflexão potente sobre o fim da vida e uma celebração da complexidade das relações humanas e da força das escolhas individuais frente ao inevitável.
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O ÚLTIMO PUB
Título original: The Old Oak
Direção: Ken Loach
Gênero: Drama
País/Ano: Bélgica, França, Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 2023
A solidariedade em tempos de ruínas
Ken Loach, com sua assinatura inconfundível de realismo social, nos entrega O último pub, um drama sensível e contundente que explora o impacto da imigração em uma comunidade esquecida no interior da Inglaterra. O filme, que marca a despedida do diretor de 88 anos, é uma narrativa que vai além das fronteiras da ficção, abordando questões urgentes como xenofobia, desigualdade social e a necessidade de união em tempos de crise.
A história é centrada em TJ Ballantyne (Dave Turner), um homem solitário que administra um pub decadente, o último espaço comunitário de uma vila desolada pelo fechamento das minas de carvão. TJ representa uma geração que viu sua cidade ser destruída economicamente, enquanto luta para manter um senso de comunidade em um ambiente cada vez mais hostil. Quando um grupo de refugiados sírios chega à vila, a tensão latente explode. Entre eles, destaca-se Yara (Ebla Mari), que enfrenta o preconceito local ao mesmo tempo em que tenta reconstruir sua vida após os horrores da guerra.
Loach estabelece um contraste poderoso entre a hostilidade inicial da comunidade e as manifestações de solidariedade que emergem aos poucos. TJ, apesar de suas próprias dificuldades, toma a frente na defesa dos recém-chegados, especialmente de Yara, que em uma das cenas mais impactantes é salva por ele de uma agressão racista. A chegada de Laura (Claire Rodgerson), uma voluntária engajada em ajudar os refugiados, traz uma nova dinâmica ao vilarejo, sugerindo que a empatia e o esforço coletivo podem ser caminhos para a sobrevivência em tempos adversos.
A crítica social de Loach é afiada e direta. O último pub não é apenas um filme sobre imigração, mas uma reflexão sobre como comunidades inteiras, abandonadas pelo sistema, direcionam sua frustração e raiva para aqueles que estão ainda mais vulneráveis. A xenofobia, nesse contexto, é apresentada não apenas como ignorância, mas como resultado de um sistema que isola e explora os mais pobres, desviando o foco dos verdadeiros responsáveis pela desigualdade: elites distantes, que operam em uma realidade completamente diferente.
Com atuações genuínas e uma direção que capta com precisão a atmosfera melancólica da vila, O último pub é um convite à reflexão sobre os desafios da convivência em um mundo cada vez mais fragmentado. Ken Loach se despede do cinema com uma obra que não apenas denuncia as injustiças sociais, mas também aponta para a força transformadora da solidariedade. Mais do que um adeus, este filme é um lembrete poderoso de que, mesmo nos momentos mais sombrios, ainda há espaço para a esperança compartilhada.
Bioque Mesito – foto: divulgação
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