Entre tempos brutos e delicadeza
A corrida para OSCAR 2025
por Bioque Mesito*
O emocionante Ainda Estou Aqui desponta como forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Internacional, com Fernanda Torres entregando uma performance inesquecível que pode consagrá-la como Melhor Atriz. No entanto, Demi Moore brilha intensamente em A Substância, tornando a disputa ainda mais acirrada. Já o belíssimo Emilia Pérez, um espetáculo de narrativa e musicalidade, merece o prêmio de Melhor Filme. A Garota da Agulha encanta com sua poesia visual e fotografia deslumbrante, enquanto A Semente do Fruto Sagrado se impõe como um filme necessário, trazendo à tona as dolorosas realidades do Irã com uma força arrebatadora. Leia abaixo comentários críticos sobre cada um desses concorrentes ao Oscar 2025.
AINDA ESTOU AQUI
Título original: Ainda estou aqui
Direção: Walter Salles
Gênero: Drama/Biografia
País/Ano: Brasil/França, 2024
Os tempos brutos retratados com delicadeza
Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, é um drama que resgata a memória de Rubens Paiva e a luta incansável de sua família diante da brutalidade da ditadura militar brasileira. Baseado na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, o filme se estrutura a partir do olhar sensível e corajoso de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres. Sua atuação transborda emoção e força, dando vida a uma mulher que, apesar da dor, se recusa a sucumbir ao silêncio imposto pelo regime. Selton Mello, no papel de Rubens Paiva, entrega uma performance contida e digna, capturando a essência de um homem marcado pela resistência e pela tragédia. A dualidade do tempo é explorada na construção de Marcelo Rubens Paiva, vivido por Guilherme Silveira e Antonio Saboia, que dão camadas distintas ao personagem conforme ele amadurece e compreende a dimensão da perda do pai.
O longa se destaca pela forma como humaniza sua narrativa, evitando o tom panfletário e apostando em uma abordagem intimista (chegando a ser em alguns momentos até um pouco fleumático, mas sem atrapalhar no enredo). A reconstrução da época é detalhista, com fotografia e direção de arte que evocam o Brasil dos anos 1970, e a trilha sonora imprime um tom melancólico e reflexivo. A presença de Vera Paiva, vivida por Valentina Herszage e Maria Manoella, e Eliana Paiva, interpretada por Luiza Kosovski e Marjorie Estiano, reforça o peso da ausência paterna na vida dos filhos e a maneira como cada um lida com o luto e a necessidade de justiça. Salles conduz essa complexa teia familiar com precisão, equilibrando emoção e sobriedade, sem jamais perder de vista a dimensão política da história.
Desde sua estreia no Festival de Veneza, onde foi aclamado com uma ovação de dez minutos e laureado com o prêmio de Melhor Roteiro, Ainda estou aqui tem sido amplamente celebrado pela crítica internacional. Fernanda Torres fez história ao conquistar o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme Dramático, um feito inédito para uma artista brasileira. O impacto do filme chegou até a Academia, que indicou a obra ao Oscar nas categorias de Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz e Melhor Filme (este último, um marco para o cinema sul-americano. A recepção calorosa e a força das atuações consolidam o longa como um dos mais importantes da cinematografia nacional recente.
Além do reconhecimento crítico, o filme encontrou uma resposta apaixonada do público. Com quase três milhões de espectadores nos cinemas brasileiros, a obra reacendeu debates sobre a memória da ditadura militar e a necessidade de preservar a verdade histórica. Diferente de outras produções que abordam esse período com distanciamento documental, Salles aposta na subjetividade e no afeto como elementos centrais para conectar a audiência à dor e à resiliência dessa família.
Ainda estou aqui se torna um retrato poderoso sobre luto, resistência e o direito à memória. Em um país que ainda lida com cicatrizes profundas do passado, o filme se impõe como um lembrete inescapável da importância de não esquecer, especialmente diante do momento delicado em que um golpe contra a nossa democracia, articulado pelo governo bolsonarista, foi descoberto. É um trabalho cinematográfico que emociona, revolta e, acima de tudo, reafirma o poder do cinema em nossas vidas. Apesar de não ser a melhor obra de Salles (Central do Brasil e Abril Despedaçado são muito mais envolventes), este filme merece a devida atenção, sendo indiscutível sua candidatura aos Oscars de Melhor Atriz (Fernanda Torres) e de Melhor Filme Internacional.
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EMILIA PÉREZ
Título original: Emilia Pérez
Direção: Jacques Audiard
Gênero: Drama/Musical
País/Ano: Espanha/Estados Unidos, 2024
A transformação de uma existência
Desde sua estreia no Festival de Cannes, onde recebeu o Prêmio do Júri e o prêmio coletivo de Melhor Atriz para seu elenco feminino, Emilia Pérez tem sido amplamente celebrado. O filme conquistou 13 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor para Audiard e Melhor Atriz para Karla Sofía Gascón, tornando-se um marco para a representatividade trans no cinema. O longa venceu quatro Globos de Ouro, incluindo Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Filme Comédia ou Musical, consolidando-se como uma das produções mais premiadas do ano.
Emilia Pérez, dirigido por Jacques Audiard, é uma obra ousada que mescla musical, crime e drama em uma história de identidade e redenção. O filme acompanha Juan Manitas del Monte, um poderoso chefe de cartel mexicano que decide realizar seu sonho de transição de gênero, tornando-se Emilia Pérez. Para isso, ele conta com a ajuda da advogada Rita Moro Castro, interpretada por Zoe Saldaña, cuja trajetória reflete um embate entre ambição e moralidade. A atuação de Karla Sofía Gascón como Emilia é brilhante, conferindo profundidade a uma personagem que transita entre seu passado violento e o desejo por uma nova vida. A química entre Gascón e Saldaña sustenta grande parte da narrativa, reforçando a dualidade entre crime e transformação.
Outro destaque do elenco é Selena Gomez, que surpreende no papel de Jessi, a esposa de Manitas, trazendo uma atuação delicada, mas cheia de força emocional. Adriana Paz, como Epifanía, também se sobressai, adicionando complexidade à trama com sua presença enigmática. O longa se diferencia por sua abordagem estética inovadora, utilizando sequências musicais coreografadas por Damien Jalet que, longe de serem apenas um recurso estilístico, servem para aprofundar os sentimentos dos personagens. A fusão entre musical e thriller confere um ritmo único ao filme, embora algumas canções possam causar estranheza devido à sua estrutura narrativa pouco convencional.
Entretanto, o filme não escapou de controvérsias. Algumas críticas apontaram o uso de estereótipos sobre o México e a comunidade trans, questionando a forma como a narrativa lida com essas temáticas. Declarações polêmicas de Gascón nas redes sociais geraram debates sobre sua participação na promoção do filme, adicionando camadas de discussão sobre a obra para além da tela. Ainda assim, a força de sua atuação e a relevância do enredo garantiram que Emilia Pérez permanecesse no centro das discussões cinematográficas.
Emilia Pérez é um filme que provoca, emociona e instiga reflexões sobre identidade, transformação e segundas chances. Com atuações poderosas e uma abordagem estética arrojada, Jacques Audiard entrega um trabalho que transcende gêneros e desafia convenções narrativas. Ainda que sua recepção divida opiniões, é inegável que se trata de um marco no cinema contemporâneo, uma obra que, acima de tudo, se recusa a ser esquecida e a meu ver, mereceria o Oscar de Melhor Filme.
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A SUBSTÂNCIA
Título original: The substance
Direção: Coralie Fargeat
Gênero: Drama/Terror
País/Ano: Estados Unidos/França/Reino Unido, 2024
À estética dos tempos fragilizados
A Substância, dirigido por Coralie Fargeat, é um soco no estômago do espectador, um horror corporal que escancara a obsessão da sociedade pela juventude e pelos padrões de beleza inalcançáveis. A trama acompanha Elisabeth Sparkle, uma ex-estrela de programas de aeróbica dos anos 1980, vivida por uma Demi Moore em um de seus papéis mais intensos e impactantes. Enfrentando o esquecimento da mídia e a pressão de uma indústria que descarta mulheres com o passar dos anos, ela se torna cobaia de um tratamento revolucionário que promete restaurar sua juventude. No entanto, o que parece um sonho logo se transforma em um pesadelo visceral e grotesco, com consequências físicas e psicológicas aterrorizantes. Margaret Qualley assume a persona rejuvenescida de Elisabeth, dando vida a Sue, uma versão mais jovem, mais perfeita e, ao mesmo tempo, mais perturbadora. Sua performance inquietante adiciona um novo nível de complexidade ao filme, funcionando como um reflexo distorcido da protagonista original.
Dennis Quaid entrega um desempenho cínico e repulsivo como Harvey, o empresário inescrupuloso que empurra Elisabeth para a experiência, representando de forma crua o lado cruel da indústria do entretenimento. Já Hugo Diego Garcia e Gore Abrams, nos papéis de Diego e Oliver, orbitam esse universo de manipulação e exploração, enquanto Matthew Géczy interpreta Bob Haswell, o cientista por trás da “substância”, um experimento cujo verdadeiro propósito se revela cada vez mais sinistro. O filme se apropria do horror pastiche de maneira extrema (o que de certa forma despopulariza a película pelo exagero cênico), sem poupar o público de cenas gráficas e transformações físicas que remetem ao trabalho de mestres como David Cronenberg, mas com uma identidade própria, utilizando a violência visual como metáfora para o colapso da identidade e da autonomia feminina diante de padrões inatingíveis.
A estética de Fargeat é um espetáculo à parte. O uso de cores saturadas e uma fotografia que transita entre o glamour artificial e o grotesco contribuem para a sensação de desconforto crescente. A diretora constrói uma narrativa que beira o surreal, mas nunca perde sua crítica contundente, equilibrando horror e ironia de maneira magistral. O filme faz um comentário ácido sobre o culto à juventude e a maneira como a sociedade trata as mulheres à medida que envelhecem, transformando esse debate em uma experiência visual e sensorial perturbadora.
A Substância tem sido celebrado como uma das grandes obras do gênero nos últimos anos e Coralie Fargeat recebeu o prêmio de Melhor Roteiro no festival, enquanto Demi Moore foi amplamente elogiada, sendo premiada no Globo de Ouro e indicada ao Oscar, marcando um retorno triunfal de sua carreira. O filme também se destacou na temporada de premiações, sendo reconhecido por sua ousadia narrativa e visual. No entanto, as reações polarizadas não passaram despercebidas, com parte do público considerando a violência gráfica excessiva e o simbolismo exagerado.
A Substância é uma experiência visceral que mergulha fundo nos horrores do envelhecimento e na busca desenfreada por uma perfeição inatingível. Coralie Fargeat entrega uma obra provocativa e incômoda, que se recusa a ser esquecida. A atuação de Demi Moore merece destaque, consolidando-a como uma forte concorrente ao Oscar de Melhor Atriz, possivelmente tirando a estatueta de Fernanda Torres. Afinal, sabe-se que Hollywood tem a tradição de favorecer seus “queridinhos”, e Moore, uma atriz em fim de carreira que nunca ganhou um Oscar, pode ser beneficiada por essa lógica da Academia.
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A GAROTA DA AGULHA
Título original: Pigen med nålen
Direção: Magnus von Horn
Gênero: Drama
País/Ano: Dinamarca/Polônia/Suécia, 2024
Uma película poética e sufocante
Ambientado na Copenhague pós-Primeira Guerra Mundial, A Garota da Agulha acompanha Karoline, uma jovem operária interpretada por Vic Carmen Sonne, que se vê desamparada após engravidar de seu chefe e ser demitida. Diante do abandono e da miséria, ela se envolve com uma figura sinistra que promete ajudá-la, mas a um custo terrível. O filme constrói sua atmosfera sufocante por meio de uma fotografia em preto e branco intensa, que remete ao cinema expressionista alemão e às sombras inquietantes do horror clássico. O filme, dirigido por Magnus von Horn, é uma obra que nos assola, que mergulha no horror gótico com uma abordagem visual expressionista e uma crítica social contundente.
Os personagens que orbitam Karoline desempenham papéis fundamentais na construção da tensão narrativa. Anna Tulestedt, como a velha senhoria, encarna a crueldade da sociedade que descarta as mulheres sem recursos. Thomas Kirk, no papel do capataz, ilustra a exploração desumana do proletariado, enquanto Tessa Hoder, como Frida, surge como um raro vislumbre de empatia e resistência. Besir Zeciri interpreta Peter, um personagem ambíguo que parece oscilar entre o desejo de ajudar e a cumplicidade no sistema opressor. Søren Sætter-Lassen, como o mestre de cerimônias, insere um tom grotesco e teatral à trama, reforçando a atmosfera de pesadelo. Ava Knox Martin, no papel de Erena, e Joachim Fjelstrup, como Jørgen, completam o elenco trazendo camadas adicionais ao cenário de horror psicológico e social em que Karoline está inserida.
O filme se destaca por sua abordagem estética e sua direção meticulosa e a fotografia de Michal Dymek que enfatiza o contraste entre luz e sombra, criando um ambiente de opressão constante que reflete o desespero da protagonista. A trilha sonora, minimalista e dissonante, amplifica a sensação de inquietação, tornando cada cena um mergulho na angústia. Von Horn conduz a narrativa com um ritmo deliberadamente lento, permitindo que o horror se instale de forma progressiva, sem recorrer a sustos fáceis, mas sim a um terror psicológico profundo e visceral.
A Garota da Agulha tem sido amplamente discutido pela crítica e pelo público que veem neste filme um exemplo de uma grande realização cinematográfica. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional (a meu ver, é o filme que rivaliza com Ainda estou aqui por essa categoria), o longa recebeu elogios pela sua cinematografia inovadora e pelo impacto emocional de sua história, com um contraponto para Vic Carmen Sonne que apresenta atuações intensas.
A Garota da Agulha é um filme que não se preocupa em oferecer conforto ao espectador. Ele obriga a encarar a brutalidade do mundo e a condição das mulheres relegadas à margem da sociedade, tudo envolto em uma estética hipnotizante e perturbadora. Magnus von Horn entrega uma experiência cinematográfica arrebatadora, que ressoa fortemente nos sentimentos das pessoas, deixando o espectador marcado por sua intensidade e brutalidade poética.
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A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO
Título original: Daneh Anjeer Moghadas
Direção: Mohammad Rasoulof
Gênero: Drama
País/Ano: Alemanha/França/Irã, 2024
Um filme necessário
Mohammad Rasoulof constrói em A Semente do Fruto Sagrado um thriller psicológico que não se baseia somente em uma crítica política, mas em um estudo angustiante sobre paranoia, controle e opressão. A trama segue Iman, interpretado com intensidade por Missagh Zareh, um investigador que vê sua vida desmoronar após o misterioso desaparecimento de sua arma. O que poderia ser um incidente trivial rapidamente se transforma em uma espiral de desconfiança dentro de sua própria casa, onde cada membro da família esconde segredos que desafiam sua autoridade. Najmeh (Soheila Golestani), sua esposa, equilibra-se entre a lealdade e o medo, enquanto Rezvan (Mahsa Rostami) e Sadaf (Niousha Akhshi) personificam o choque entre tradição e resistência feminina.
O diretor conduz essa história com uma estética sufocante, utilizando planos fechados e iluminação contrastante para reforçar o sentimento de claustrofobia e impotência. O longa não apenas denuncia a repressão no Irã, mas também ressoa universalmente como um alerta sobre os perigos de um sistema que se sustenta pelo medo e pela vigilância constante.
Os personagens femininos são o coração pulsante do filme, desafiando não apenas Iman, mas todo o sistema patriarcal e repressivo ao qual estão submetidas. Najmeh, interpretada com sutileza por Soheila Golestani, é a esposa que vê seu casamento ruir à medida que a paranoia do marido cresce. Rezvan, vivida por Mahsa Rostami, e Sadaf, interpretada por Niousha Akhshi, encarnam a nova geração de mulheres que enfrentam o controle masculino com gestos de resistência silenciosa. Já Sana (Setareh Maleki) e Fateme (Shiva Ordooie) apresentam facetas diferentes da submissão e do desafio, enquanto Ghaderi, vivido por Reza Akhlaghirad, representa a mão invisível do Estado, que tudo observa e pune sem hesitação. Cada um deles contribui para o clima de opressão e desconfiança que domina a narrativa, onde o lar deixa de ser um refúgio e se transforma em um campo de batalha.
A estética do filme é um dos seus grandes trunfos. Rasoulof utiliza planos fechados e movimentos de câmera contidos para acentuar a sensação de claustrofobia e impotência, criando um ambiente em que a tensão se acumula até se tornar insuportável. A trilha sonora é discreta, mas essencial, pontuando momentos cruciais com sutis notas de inquietação. A iluminação, por sua vez, explora sombras e contrastes, reforçando a dicotomia entre poder e fragilidade que permeia toda a obra. O diretor, conhecido por seu compromisso com a denúncia social, constrói um filme que funciona tanto como suspense psicológico quanto como uma análise brutal das engrenagens de um sistema que sufoca qualquer vestígio de liberdade.
A Semente do Fruto Sagrado tem sido amplamente celebrado pela crítica e pelo público internacional, sendo indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, consolidando Rasoulof como um dos cineastas mais relevantes da atualidade. No entanto, sua recepção no Irã foi marcada por censura e represálias ao diretor, que já enfrentou prisão por suas produções anteriores. Esse contexto só amplia a força do filme, tornando-o não apenas uma obra de arte cinematográfica, mas também um ato de resistência política.
O filme é um reflexo de um país inteiro, onde o controle estatal invade a intimidade e transforma a desconfiança em uma arma letal. Com um roteiro preciso, atuações muito convincentes e uma direção impecável, Rasoulof entrega uma obra que não apenas denuncia, mas também ecoa na mente do espectador. Um cinema necessário, corajoso e absolutamente inesquecível.
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Bioque Mesito – foto: divulgação
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