Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Débora Reis, poeta. Foto: divulgação

“LEITE PRETO” – 4 poemas de DÉBORA REIS

DÉBORA REIS

 

LEITE PRETO

 

Olhei para o céu e vi um sol ardendo,
num dia desses sem nuvens,
havia apenas, e muito, um céu azul.

Era o primeiro dia após anos em noites ininterruptas
os primeiros raios de fachos de luzes abruptas
rasgando as têmporas dos meninos correndo pela margem do rio
secando a roupa dependurada entre as árvores, balançando no fio
brilhando nas águas dos tanques das choupanas fajutas.

Nada branco em nosso teto,
apenas um arco-íris estendido,
tal qual a promessa divina
para dar fim à morte coletiva
das raças ímpias.

Que chova quarenta dias esfolando a lavoura
Oh, erosão da pele clara.
Ah, o reverso do mundo!
que se irrompe no prisma
à luz fosforescente
Outono para o copo-de-leite
Primavera da calla negra
incandescente.

Olhei para o céu e vi um sol ardendo,
era o começo da vida,
e bem que poderia imitar aquela vida
antes de cruzarmos o atlântico
bem que poderíamos ver as rodas cantantes em praça pública,
e sobre nossas cabeças o sankofa,
voando no céu azul, sem nuvens brancas
abrindo os sarcófagos,
munindo nosso espírito de toda ancestralidade
memorizada em nosso corpo.

Recomeço e desenlace da mestiçagem arbitrária.

Havemos de parir nossos filhos por escolha,
havemos de ibicar o vaso com óleo e ungir nosso umbigo,
e nosso cordão umbilical.
Havemos de derramar leite preto
na terra onde pisarmos.
Havemos de ser povo,
Num céu sem nuvens brancas.

 

 

 

AVOA

 

Preto, preto, pretinho
cai devagar do ninho
não choque, não choque, não crie
sem asa, sem casa, sem filha
não sonhe, não sonhe,
pousa aqui no galho torto
fecha o bico,
mansinho
meu preto, meu preto, pretinho.

O grão, tu toma,
e entrega pro gavião
a semente, tu cata,
e leva pra harpia
não ouse, não ouse, nem pia
alimenta-os, e faz crescer suas mil penas
não cisca, nem fica
sozinho
meu preto, meu preto, pretinho.

Avoa, graúna
tão rápido
tão rápido
ligeiro
ligeiro
e se doer
que voe
com dor
com dor
com dor

Até que não vejam, meu preto,
tua cor,
tua cor,
tua cor.

 

CARTA AO IPÊ

Ipê roxo – Fonte: ceasacampinas.com.br

 

Encontrei uma espécie tua,
foi lá embaixo, nas nossas raízes
senti-me envergonhada, devido ao seu ar pomposo…

De onde tu vens, tão belo e glorioso?

Sei que adornas a latinamérica,
enquanto vivo milênios sacralizando o homem que roda abaixo da copa
Também sei que te exibem nas avenidas e rotatórias
e eu, me introjeto como oráculo de mitos e histórias.

Onde está teu fruto, quem o come passa mal?
Minha mukua faz doce, pirão, mingau.
meu tronco abriga reis
minha raiz afasta o mal.

Sei, da tua casca grossa
e do teu agradável aroma quando descansas,
tal qual a sutileza de uma rosa.

Já eu, que não durmo, nem faço sestas
tenho flores azedas,
atraindo moscas, morcegos e bestas.

A mim, chamam-me exótica,
barriguda e velha
contudo, entrego a seiva que escorre do meu seio
pra quem precisa voltar a viver depois do açoite
e aplacar o anseio.

Tenho cá pra mim, que deixei de ser uma árvore,
sou uma mulher em estado bruto
sofrendo o luto,
de um espírito bondoso.

E por isso, ponho-me sem sombras
não impeço nem o sol, nem o temporal,
permito, sim, as dores absurdas deste chão
que enterram meus pés,
depois, sou aterro, canalizo o mal.

Queria um dia ser o sonho do paisagista
e tirar dos meus ombros o peso ancestral
que vem arqueando minha lombar.

Termino pedindo que escrevas de volta, por gentileza
Tenho sonhado em florir colorido, e me deixaria satisfeita
ler os teus ditos, como um vento num assobio
fazendo-me sorrir, como quem se deleita

Como uma novela,
como uma ficção
como uma história que salva a gente desse chão.

Aguardo respostas. Esperarei suas letras ao acordar.
Com muito axé,
Baobá.

 

 

CAPITÃO

 

Farinha
caldo,
sal,

Entrou o peixe,
assado na folha da bananeira
                                  – Cação é reimoso, menino!
Isso é conversa, deixe de besteira
Maré tava cheia,
tá tudo bem,
se não faz mal.

Pro pai
Pro vô
Pra filha
Se deus abençoou, partilha.

Farinha
caldo,
mais um tanto de sal
mastiga,
engorda,

sacia?
sacia não!

engole mais um pouco,
com o dedo mesmo
lambuza a mão

Separa a farinha
o caldo
o grão
prepara e organiza
mise en place do maranhão

Que amanhã tem de novo,
pra quem tem fome e pra quem come,

o capitão.

 

 

 

 

 

*

 

SOBRE A AUTORA:

Débora dos Reis Cordeiro é ludovicense, Pedagoga pela UFMA e Mestra pela Unifesspa. Produtora de Eventos do tipo Sarau-Literário, realizou 3 (três) eventos como produtora: Sarau Vida em Estado de Arte (agosto/2023), Sarau Lítero-musical Vero Vino (março/2024), e Show Diz a Linha, do projeto Jazz & Poesia (maio/2024). Participou como convidada dos eventos artísticos-literários: CulturArte 2023 (Barreirinhas e São Luís), Sarau da Casa da Mulher Brasileira 2023, Sarau Vero Vino – Elizeu Cardoso 2023. Em sua primeira publicação – “Histérica: poesia de quem sobreviveu mulher” (agosto/2023), a escritora iniciou a trajetória de poeta. Há previsão de lançamento dos livros: “Artesania das Letras” (conto); e “Puérpera: de mim, da letra e do que não foi dito” (poesia), este pela editora Patuá, a ser lançado 9 de outubro, na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Os poemas aqui publicados integram o projeto poético-teatral, intitulado “Leite Preto”, cuja execução está prevista para 2025.