RICARDO NONATO
PAINEL DE UMA ARTE SINCRÉTICA
Por: Antonio Aílton

Ricardo Nonato (Ricardo Nonato Almeida de Abreu Silva) é claramente um multiartista. Ou artista polivalente, cuja experiência e sensibilidade, que se estende em diversas expressões criativas, esteiam a sua tarefa de professor. Esse conjunto de expressões possíveis, sempre realizado de forma orgânica com a poesia e que ampliam essa voz que lhe é intrínseca, tem confluído para uma dimensão de enriquecimento do mundo ao seu redor, que perceptivelmente ultrapassa mesmo o que é característico do meio profissional acadêmico em que atua, e transgride os “horizontes de expectativas” de uma ou de outra área criativa.
É o que pode ser constatado do trabalho que vem desenvolvendo como professor da UFMA/Campus Bacabal, com iniciativas e produções que repercutem não somente naquele Campus, mas no próprio estado do Maranhão.
Ricardo é poeta, gravurista com diversas técnicas, escultor, editor cartonero, entre outras prerrogativas nos campos do fazer e das atividades artístico-culturais, mas seu mérito principal tem sido o de mobilizar de forma agregadora projetos e oficinas de experiência criativa com seus alunos de graduação em Letras, trabalhados como projetos de extensão acadêmica com foco na literatura, oportunizando relações mais frontais entre poetas contemporâneos do estado e de estudantes de diversos níveis, mas que, em geral, desconhecem poetas, conhecimentos e práticas que lhes deviam ser referenciais – relações com as quais tenho tido o privilégio de contribuir, e em que os próprios poetas trabalhados também se engajam e se disponibilizam, ao seu modo.

Dois desses projetos, são, literalmente, extraordinários: o projeto de extensão Experiências Criativas e o bate-papo poético Clarão, realizado, em parceria, como encontros noturnos com representativos poetas contemporâneos do Maranhão, via Instagram. Com o primeiro, o Experiências Criativas, Ricardo tem estabelecido por carro-chefe oficinas de criação com seus alunos, de onde já emergiu um zine poético da cidade de Bacabal, o Bacazine, como produção regular que mescla a inventividade característica do fanzine com uso de linguagem das redes sociais, colagens e bricolagens, reciclagens me materiais, usos de mídias digitais, entre outros processos. Na sua apresentação, utiliza também a dobra de papel, o origami, a cartoneria – arte que já trouxe de experiências de trabalhos anteriores, quando produzia, por exemplo, o zine Círculo Poético de Xique-Xique, que produziu por anos com alunos de Barreiras, na Universidade Estadual da Bahia, e que estabelece de forma ampliada, agora em seu novo espaço profissional. Esse projeto já apresentou também produção de vídeo-poemas, exposição de “biopoemas”, e mesmo livros cartoneros, como a antologia Clarão de Muitos, resultado daqueles encontros feitos pelo Instagram.
O Clarão, realizado ao longo de 2022 e 2023 e com sua continuidade assegurada este ano, também acabou se desdobrando no encontro presencial promovido pelo Curso de Letras da UFMA/Bacabal chamado Maranhão em Cena, que já vai para a sua segunda edição, nos moldes de um café literário, presencial, nesse espaço, em que importantes poetas maranhenses são convidados para falar de suas obras e projetos, do cenário atual da literatura e das relações sócio-históricas que a criação e a produção implicam.
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É de Ricardo Nonato a gravura base do painel artístico (4 m x 8,15 m) que olhares e visitantes encontram logo no hall de entrada do prédio da UFMA/Bacabal, comemorativo dos 10 anos daquele campus. Trata-se, na verdade, de uma síntese da arte de Ricardo, não apenas no sentido de temas e técnicas, mas também como reunião temporal das vivências e produções que tecem um elo entre Bahia e (principalmente) Maranhão.
No painel, Ricardo recupera, ou evoca, por exemplo imagens já publicizadas em outros espaços, como no Círculo Poético de Xique-Xique, em livros, e especialmente a imagem colocada no centro, o bumba-meu-boi, representativo de um coco babaçu, que havia sido produzida para uma antologia de poetas do norte e nordeste, a Babaçu Lâmina, organizada pelo poeta maranhense Carvalho Junior, mas para quem o artista baiano, Ricardo, havia feito as ilustrações, a pedido. Além disso, o que ele nos traz é sua clave estética favorita: uma celebração compósita da cultura (neste caso, entrelaçamento da Bahia e do Maranhão), da mítica e da religiosidade popular: imagens que reúnem o trabalho e a festa, a evocação sempre presente dos encantados e simbólicas africana e caboclos, a mítica universal e a religiosidade católica sincrética.
Assim, o recado que este artista está nos dando é que é preciso considerá-lo não apenas como professor, ou como poeta, mas como alguém que vem construindo uma estrada a qual culmina neste objeto de contemplação, apanhado e síntese. E, para além disso, uma possibilidade de comunicação sensível, identitária, que ele encontra entre esses dois estados, com suas heranças africanas, indígenas e portuguesa, seu caráter de ancestralidade que vaza para o contemporâneo, suas manifestações e folguedos apresentados como a face patente de raízes e irmandades profundas.
É importante flagrarmos esta festa de elementos, como uma noite junina, iluminadas pelas candeias, enfeitada pelos balões e bandeiras e dobraduras coloridas, com as rodas de tambor laterais, a nítida roda do tambor de crioula, que é patrimônio imaterial do Maranhão, como elementos rítmicos e compositivos. Subliminarmente evoca o senhor da floresta, o guerreiro e protetor Oxóssi, com sua seta/lança, que se harmoniza com os caboclos de pena e os caboclos/encantados da floresta, que estão nesse entrelaçamento entre a primitividade e o folguedo místico. Destaca, na cena da direita, as figuras femininas ao modo da xilogravura sertaneja, cujos vestidos coloridos e salpicados, parecem evocar as flores dos vestidos de chita, porém suas estampas fazem, na verdade, referência ao coco babaçu laminado – uma homenagem às quebradeiras de coco e artesãs do babaçu do Maranhão – em dia de festa, com estandarte de São João, este santo que recupera a antiga e mítica abundância das colheitas, do milho, da mandioca, dos festejos, da fertilidade, das frutas.
As figuras centrais do painel são, porém, uma referência à bandeira do Maranhão, no alto, com as cores destacadas de nossa mestiçagem e hibridez cultural – preto, vermelho e branco (com a “estrela na testa”, aquela mesma do Touro Encantado), e a figura do boi, cujo manto – couro – funciona como minipainéis em profundidade, com múltiplas referências, como disse, ao babaçu. As palmeiras, a amêndoa do babaçu, no vazado, com as quebradeiras de coco carregando seus cofos e cestos e, no mesocarpo da casca do babaçu, a serpente da lenda que destruirá a cidade de São Luís do Maranhão para fazê-la renascida – nestes ciclos sociais de sofrimento, morte e vida – e os brincos-penduricalhos, os quais, mais uma vez são uma bela referência ao artesanato do babaçu, meio caminho entre produto, utilidade, e beleza contemplativa, que ele pode representar, ou se transformar.
Este painel, em suas imagens e formas simbólicas, que trazem matrizes comunitárias e sociais, mostra talvez apenas a ponta do iceberg de um artista que se constrói entre experiências, meios, movimentos, e assim se realiza enquanto artista contemporâneo. Ricardo possui ainda um universo de produção a ser explorado, e que faz mediação entre saberes e materiais, linguagem e inventividades, contemporaneidade e memória. Com ele, UFMA/Campus Bacabal acaba se tornando um centro irradiador, que alimenta os seus e o seu entorno com um conhecimento que vem enriquecido pela arte e tocado pela poesia. Isso contagia, faz desejar, abrir os olhos aos possíveis do mundo, de si, da comunidade. E isto certamente torna o mundo melhor.

Antonio Aílton
Poeta, professor, pesquisador, editor do sacadaliteraria.com.br
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TEXTO SOBRE O PAINEL
Por: Rafaelly da Silva Fernandes
O artista Ricardo Nonato, professor do centro acadêmico de Bacabal, finalizou a arte do painel de 4×8,15 metros que embeleza a UFMA Bacabal. A obra, criada com nankin e tinta acrílica, é resultado de um projeto de pesquisa aprofundado sobre a iconografia do estado, mesclando elementos culturais e religiosos do Maranhão com influências do Norte e Nordeste, incluindo, inclusive, um toque da cultura baiana, terra natal do artista.
Nascido na Bahia, Ricardo carrega consigo a riqueza cultural do Nordeste, que se manifesta em sua obra de forma singular. O painel, que se assemelha a uma xilogravura dos cordéis nordestinos, apresenta uma estética chapada e impactante, com traços que evocam a tradição popular. A riqueza de detalhes e a variedade de elementos, como tambores de crioula e bandeiras de São João, retratam a diversidade cultural maranhense, reunindo em um único lugar figuras e símbolos que representam a identidade do estado.
O painel idealizado a pedido de Lucélia Almeida, diretora do centro acadêmico de Bacabal, que foi realizado através do projeto Experiências Criativas e da pesquisa “formas e poéticas do contemporâneo” coordenado por Ricardo. A obra, que transita entre o tradicional e o contemporâneo, é uma verdadeira viagem pela cultura maranhense, convidando o público a desvendar suas nuances e a se conectar com a rica história do estado.
A influência da cultura baiana se manifesta no painel através de elementos como a musicalidade e a vibração das cores, características marcantes da cultura baiana, que se entrelaçam com a tradição maranhense. A obra de Ricardo Nonato é um convite à imersão em um universo cultural rico e vibrante, onde a tradição se encontra com a contemporaneidade, e a arte se torna um veículo de expressão da identidade maranhense.

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Algumas gravuras do acervo do “multiartista” Ricardo Nonato:
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Ricardo Nonato (1979, Bahia) é poeta, artista visual, mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia e doutor em Teoria Literária (UFPE). É professor universitário (UFMA). Criou em 2017 o selo de arte Casa de Vento, através do qual vem publicando seus livros de modo artesanal. É autor de O menino que morava no umbigo do mundo (2006); Cântico de Quitéria (2015 – edição cartonera, 2019 – Casa de Vento); Beleza oculta (2016 – livro objeto, Casa de Vento); Fomes Temporais (2019, Casa de Vento). Participou da antologia poética Babaçu-Lâmina (Editora Patuá, 2019); tem poemas publicados no OXE – Portal da Literatura Baiana Contemporânea; publicou o estudo Nas tramas do existir: o mítico e o feminino da poesia de Myriam Fraga (2021). De 2011 até 2021 publicou o fanzine Círculo Poético de Xique-Xique – projeto desenvolvido na Universidade do Estado da Bahia, que se tornou um espaço aberto, sobretudo, para escritores e artistas visuais do eixo Norte/Nordeste. Desenvolve atividades relacionadas à criação, experiências poéticas e sua expansão na Universidade Federal do Maranhão, campus de Bacabal.
Professor Ricardo é uma potência!
Ricardo e sua mil e uma faces
Vi de perto os belos painéis e trabalhos do prof. Ricardo Nonato e os guardo da memória. Trabalho de grande apuro estético e sensibilidade!