Eloy Melonio*
Ele entra numa livraria imaginando-se um monge tibetano. Um vendedor o saúda logo na entrada. “Vou só dar uma olhada”, avisa. Prefere virar-se sozinho. E só vai embora com o objeto do desejo que lhe ilumine a mente e a alma.
Em casa, mergulha numa solidão a dois. Sim, porque tem uma companhia que não se intromete na leitura. Que não ri e não conta uma piada. Que apenas anseia ver seus olhos enfeitiçados pela dança das palavras.
É lamentável dizer, mas falo de alguém sensivelmente desprestigiado. Que vive por aí à caça de bons títulos que o possam entreter ou fazê-lo viver uma aventura inesquecível. Um simples mortal sem biografia que não ocupa uma cadeira de academia. Não ganha prêmios, não participa de concursos ― um pobre esquecido, enfim.
Certo dia, nossa personagem anônima conheceu pela TV seu alter ego: Giulia Prescinato, 13 anos, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2022. No imenso espaço do Expo Center Norte, ela puxava sua malinha de rodinhas ― a mesma que leva para a escola ― de um lado para o outro.
E, irônico, suspira: “Haja devoção!”
Mesmo não se conhecendo, ele e Giulia são dotados da mesma índole. A diferença é que, por um instante, a mocinha viveu um raríssimo minuto de celebridade: “Quero passar o dia inteiro aqui, encher minha malinha de livros”, disse ao repórter. E, certamente, ganhou aplausos dos milhões de telespectadores do Jornal Hoje (Rede Globo) daquele 2 de julho.
E, aí, uma dúvida lhe acendeu a memória: Será que ― para homenageá-la ― sua escola vai realizar uma passeata no bairro? A Academia de Letras de seu estado vai pôr um quadro com sua fotografia na parede de seu salão nobre? O secretário de educação vai reconhecê-la com uma medalha de Honra ao Mérito?
Respostas negativas lhe trazem à estaca zero. Resta-lhe agora esperar que alguém levante sua bandeira para que esses esquecidos possam um dia desfilar num tapete vermelho.
Enquanto ele sonhava, Giulia esbanjava palavras para dizer que não iria embora sem o autógrafo de sua autora preferida. Referia-se à mineira Paula Pimenta, cujo sucesso chegou para valer em 2008, quando seus fãs, numa espontânea divulgação boca a boca, transformaram seu “Fazendo meu filme” num best-seller.
Do outro lado da rua, muitos literatos passeiam indiferentes a essa massa que já entendeu que a leitura os faz mais humanos, “mais inclusivos, mais democráticos”. Dá até para supor que eles só se lembram das feiras porque, por lá, sempre aparecem muitos “esquecidos”.
Longe das bienais e sem seguir o exemplo de Paula Pimenta, a “feirinha nossa de cada dia” não atraitantos leitores. Em geral, os literatos perdem muito tempo olhando para o umbigo um do outro. Nas redes sociais, são feras nos elogios aos colegas e confrades. E o “polegar pra cima” e um“coraçãozinho vermelho”,a sua a marca registrada.
Mas… e os leitores?!
Sim, esses apaixonados por literatura. Não os tenho visto nos lançamentos de livros. E não conheço campanhas para fortalecer a importância da literatura, promovidas por quem de direito. Felizmente, eles são muitos e sabem voar. E, como se alimentam de palavras, precisam pousar nas livrarias e feiras para sobreviver.
Talvez isso justifique a invasão das redes sociais por “consultores” prometendo desvendar os mistérios do jardim da produção literária. Não sei se levam em conta a lição de Mario Quintana: “O segredo é não correr atrás das borboletas… É cuidar do jardim para que elas venham até você”.
Nem tudo está perdido. Resta alguma esperança de um dia vermos o que vi recentemente no lançamento do livro de um amigo. Ao final do evento, um senhor, de terno e gravata, carregava debaixo do braço uma pilha de livros que comprara na AMEI (Associação Maranhense de Escritores Independentes). E tentava identificar os autores desses livros para que os autografasse. Quase não acreditei no que estava vendo. Eu era um desses felizes procurados. Autografei “Travessia” e lhe dei um abraço. Uma cena surreal que nos permite sonhar com dias melhores para autores e leitores.
Certamente,não é tão difícil conquistar leitores como os de Paula Pimenta. Mas isso se faz com livros bem-imaginados e bem-escritos. E com uma boa divulgação. Nem que, para isso, precisemos seguir o exemplo de Monteiro Lobato: “Lê o livro, Rangel, e morre. Lê o Lírio, e suicida-te, Rangel. Se não tens aí, posso mandar-te o meu ― e junto o revólver” (apresentação de “O lírio do vale”, de Balzac, por Ivan Pinheiro Machado, LP&M).
Esta crônica não um puxão e orelhas. É, antes, um convite à reflexão. Precisamos olhar esses esquecidos com olhos mais iluminados. E aprender a lição de Machado de Assis: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa”.
E jamais duvidar que esses “pobres esquecidos”sonham com o dia em que serão verdadeiramente lembrados.
* Contista, cronista, letrista e poeta (9-7-2022).
A crônica intitulada “Um Pobre Esquecido” escrita por Eloy Melonio aborda a temática da falta de reconhecimento e visibilidade para os leitores comuns e autores desconhecidos em contraste com figuras populares na literatura, como Paula Pimenta. A crônica utiliza uma linguagem acessível e um tom reflexivo para transmitir sua mensagem. Eloy Melonio oferece uma visão perspicaz da realidade literária contemporânea. Ele destaca a dicotomia entre os autores consagrados e os anônimos, bem como a falta de reconhecimento dos leitores comuns. O autor emprega uma prosa fluida e acessível, tornando a crônica de fácil leitura e compreensão para um público amplo. Uma das forças desta crônica é a habilidade de Melonio em evocar empatia nos leitores ao dar voz aos “pobres esquecidos”, aqueles que amam a literatura, mas raramente são reconhecidos ou celebrados. A analogia entre Giulia Prescinato, uma jovem leitora, e os anônimos amantes da literatura é poderosa, ressaltando como a paixão pela leitura pode transcender barreiras etárias.
O autor chama a atenção para a falta de envolvimento e a tendência dos escritores a se concentrarem em si mesmos e em suas redes sociais, em detrimento dos leitores. “Um Pobre Esquecido” é uma uma contribuição valiosa para o debate sobre o papel dos leitores e o ofício dos escritores na indústria literária.
O escritor se vê frequentemente desafiado a assumir o papel de um promotor de suas próprias palavras. É fundamental reconhecer a complexa dimensão comercial que envolve a publicação e a disseminação de obras literárias. A obra literária é produto comercializável, o nome do autor se converte em uma marca reconhecível. Os leitores se tornam o público-alvo, e o ato de lançar um livro se transforma em uma estratégia de marketing. A publicação de livros adquire um novo significado, tornando-se uma busca constante por reconhecimento e sustentabilidade financeira. No entanto, se o literato se der a todos esses esforços, nada está garantido.
Temos seis estágios que, quando alcançados, formam um ciclo contínuo de sucesso:
Escrever.
Publicar.
Vender.
Ser lido.
Ser compreendido.
Ser citado.
Quando se é citado, ocorre a reedição, o que leva a mais vendas, mais leituras, maior compreensão e, consequentemente, mais citações. Esse ciclo virtuoso impulsiona o sucesso contínuo do escritor. Isso é o sucesso.
Mas o fracasso está dado ao escritor, é a única coisa que ele já tem e que só lhe cabe tentar reverter. A liberdade do leitor é incontestável e ilimitada, a ponto de permitir que ele desista de ser leitor a qualquer momento. O escritor, portanto, enfrenta um desafio constante e incerto, em que o sucesso depende não apenas da qualidade de sua escrita, mas também de sua habilidade em conquistar e manter leitores fiéis em um mercado literário cada vez mais competitivo, incerto e quase inacessível.
Meu amigo Cesar, seu comentário é outra crônica, talvez mais objetiva ainda. Sinto-me lisonjeado, primeiro por sua leitura minuciosa e, segundo, por seu maravilhoso texto, expandindo a discussão.
Meu caro amigo Eloy Melonio,
Sua crônica provocou uma reflexão valiosa, e estou grato por ter a oportunidade de participar da conversa. É sempre um prazer poder compartilhar ideias e reflexões sobre assuntos tão interessantes como este.
Atenciosamente, César Borralho.