Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

A CAMISETA DE ATLAS e a procura da poesia contemporânea

Paulo Rodrigues*

 

“Onde teremos escorado nossa alma

para abrir a porta deste dia?”.

Antonio Aílton

 

O novo livro de Antonio Aílton tem quarenta e cinco poemas, que estão organizados numa espécie de mapa da memória. Textos polifônicos que iluminam as avenidas da humanidade e intertextualidades suaves, com nomes fundamentais da literatura brasileira como Carlos Drummond e Augusto dos Anjos.

Aílton explora todas as beiras elásticas do poema. Conhece todas as formas do fazer poético desde o soneto ao poema pílula, tão endeusado pelos revolucionários da primeira fase do Modernismo.

O discurso assume um tom mais culto em algumas peças, depois retorna ao nível da oralidade como o fez no poema LUZ: “Aquele amor/ chegando ao futuro/ te pede agora/ sexo no escuro”.

O poeta e sociólogo Ranieri Carli afirma no posfácio: “Há uma enorme dose de reflexão sobre a condição humana de nossos dias, que, por ser pesada, faz da poesia de Aílton igualmente densa. O que não poderia se dar de outra forma, uma vez que o sentimento do mundo atual é de chumbo”. Eu concordo e a reafirmo a força do argumento acima.

Dramático e pulsante em muitas metáforas ao longo da obra. No poema O LOUCO, surge uma crítica ao modelo de acumulação da sociabilidade capitalista:

 

Juntar, juntar

até não caber mais no que carrega

 

Um fardo de ninharias

se acomoda nos ombros do insano

 

Loucura é não perceber

a quanto de nadas se obriga a alma

 

Do pai ao filho, e deste ao próximo

segue, inconscientemente, o saco de sombras

 

É um poema que assume o tom crítico tal qual a imagem construída em POEMA PARA AS UNHAS DA QUEBRADEIRA DE CASTANHAS: “as meninas quebradeiras de castanhas não têm alicate, têm unhas/ rasgando o leite ácido sobre a pele,/ suas pretas unhas são um fato/ que não se transcende nem se transfigura”.

Louis Althusser colocava, com clareza, as implicações no processo de produção e reprodução social da ideologia do proprietário. Afasta-se, portanto, dos aparelhos ideológicos do estado. O poeta assume a íris do trabalhador e denuncia aos homens a exploração. Em seguida, fecha com um verso primoroso: “um poema cresce como digital/ até que exploda, fogo brilhando em carmim”.

Adiante, Aílton dialoga com o poema Procura da Poesia de Carlos Drummond de Andrade: “quem escreve poesia deve fazê-lo equilibradamente/ o poeta não será um deslumbrado por lirismos, um beletrista/ um beneditino em torre de marfim/ um alienado de escol e empáfia”. Drummond no longo poema metalinguístico deixa a lição em torno do fenômeno poético: “A poesia (não tires poesia das coisas) / elide sujeito e objeto. […]teu iate de marfim, teu sapato de diamante, / vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família/ desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável”.

No poema MOVIMENTO 6, que é uma continuidade do ROTEIRO PARA O GUARDA CHUVA DOS POETAS, Aílton irrompe uma reflexão sobre o poeta contemporâneo:

 

O poeta é um ser desamparado

mas dispensa a minha ajuda e a tua

Quer ele seja ríspido ou calado

uma alegria estranha lhe excetua

 

Desamparado e manco por seu fado

não pelo bolso ou palidez da lua

mas porque, ao alimentar o dado,

uma outra voz faminta continua

 

Os destroços no centro da linguagem

é o que une o poeta à sua imagem

e o que lhe é dado organizar

 

Eis porque ele anda a falar sozinho

levando todos nós em seu caminho

que afinal a poesia é bo’e má

 

Louvo o autor de CERZIR pela coragem de se espalhar pelos jogos da poesia, desta quadra histórica. Ele escapa da lógica (do mercado), seguindo as veredas da intuição, reconhecendo os riscos do caminho.

O fácil e dedutível tão praticado entre nós: “ainda não é poesia”.

 

 

Paulo Rodrigues é autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. Venceu o Prêmio Internacional Literatura & Fechadura de São Paulo com o livro Cinelândia. É membro da Academia Poética Brasileira – APB e da Academia Caxiense de Letras – ACL.

 

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Candido Portinari, Estivador – Fonte: https://www.catalogodasartes.com.br/obra/UcDUAt

 

 

Quatro poemas do livro A CAMISETA DE ATLAS, de Antonio Aílton

 

 

ESTIVA

 

Agora que as empilhadeiras eletrônicas

movem malhas de estopa e engradados

de um lado para outro

e os longos braços mecânicos

abastecem os contêineres

sem nada perguntar

os homens do porto

especializam-se

em transportar  um mar

dentro da cabeça

de um lado para outro

 

seus bolsos

obsolescidos

têm muito mais estopa na garganta

e pouquíssima coisa

que ainda perguntar

ao chefe

 

 

ELEGIA

A Harold Bloom

Dez por cento

de inveja e mágoa

(bem abaixo do mercado

de formas afetivas)

Dez por cento

de rancor e vingança

(bem abaixo do mercado da superação)

Dez por cento de reciprocidade

da disputa

por formas linguageiras, territórios

(pouco abaixo do mercado de coca

e do tráfico de animais)

Dez por cento de roubo de água

da vida líquida do poço alheio

Dez por cento

daquela reescritura de ferro-velho

(bem abaixo

do ainda usual mercado de ready-made)

Dez por cento

de artefatos armados

(bem abaixo das pragmáticas

dos eufemismos políticos)

Dez por cento de fatos

eventualmente transfigurados

pelo pathos

Dez por cento de crença real

nas formas afetivas do gênero humano

Dez por cento de memória esvaída

e rumorejo de sentimentos

que perfazem no íntimo

o litígio do tempo

Todo o resto, essa pele morta

varrida para baixo

do silêncio

a ser disputada pelos vermes

enquanto se brinda, olho a olho

a soma dos produtos

eternos

que circulam entre os imortais

 

 

A GARÇONETE

 

Nenhum olhar

examina apenas

uma xícara

de café

 

 

NARIZ DE HILUX

 

A maior arte da política é o cinismo

travestido de pós-humano

Os que são pobres por natureza não precisam dividir seus bens

ou porque não os têm

ou porque nunca os tiveram

Mas não é preciso ter bens para dividi-los, quando se quer

O cínico ri dos outros, que para ele

ou são cães

ou são crédulos

A maior arma do cínico é o nariz

É incrível, seu nariz permanece sempre para cima

como se tudo mais estivesse ao seu dispor, abaixo dele

 

 

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Poeta Antonio Aílton na Praça Goçalves Dias – São Luís/MA