Antonio Aílton
Réstias das manhãs de 2023, os livros de poemas de Paulo Rodrigues e Sandro Fortes, são dois livros que captaram e capturaram epifanicamente a claridade, e que contrastam com os tempos duplamente sombrios dos anos imediatamente anteriores. Tempos sombrios, de um lado, pela ceifa epidêmica da morte e, de outro, pelo quadro de descaso político, dos discursos sarcásticos e das ações violentas contra o humano, que se desenharam social e politicamente no país.
Esses títulos, O espaço da claridade (Viegas 2023) e A claridade da gente (Penalux, 2023) surgem, portanto, como inversões alegóricas e rejeição de sombras, que deixam entrever a poeira e o cisco pairando na atmosfera, sob a luz que se projeta sem alarde, porém firme, até o alcance de uma amplitude que se coloca para nos fazer ver: claridade!
Claro, o centro do livro de Fortes parece ser aquele “espaço” que a claridade abre e organiza, como o agente que é, na sintaxe desse termo. Nós passamos a querer saber qual seja esse espaço que ela abre: um espaço que, no sentido mais específico trazido pelo livro, constitui o espaço da poesia. Assim somos dirigidos a equivaler um ao outro, claridade = poesia. Ou, indo além, claridade = escrita [literária], naquele sentido que o escritor crítico Maurice Blanchot vislumbra sobre o espaço literário, a partir da obra de Mallarmé, Hölderlin, Rilke e outros, como o espaço do desespero e do fascínio, da estranheza e “do mundo obscuro da inspiração”, sendo a literatura a representante máxima da experiência vital, existencial, do escrever, talvez a única habitação possível da persona do escritor, sem a qual este será apenas o eterno des/locado. É o próprio poeta, Sandro Fortes, quem revela a equivalência, no poema homônimo ao título (p. 22):
“O espaço da claridade é o espaço da escrita”
Uma escrita que também se torna a responsável por iluminar, por esclarecer através dos meandros de sua tessitura, de sua prática, já que “uma ideia emaranha-se a outra ideia / tecendo uma túnica, uma cabeleira, uma teia. / As mãos abrem portas atrás de portas…”, o que leva à conclusão, ou melhor, à inversão especular, no final desse poema basilar:
“O espaço da escrita é o espaço da claridade.”
Estamos diante de um poeta que, sim, faz da metalinguagem seu ponto de partida, o que acontece não apenas em O espaço da claridade, mas surgindo também como uma forte presença no seu primeiro livro, Nós somos as palavras (Benfazeja, 2017), no qual entrelaça indelevelmente o humano à linguagem, ser e palavra. Nesta direção, não se pode entender o que estamos chamando de metalinguagem (ou, mais propriamente neste caso, metapoética) como a mera autorreferência da palavra pela palavra ou do poema pelo poema, mas como a condição mesma do existir e do se fazer por meio da palavra e da linguagem. Fortes é um virtuose da poesia; é, em certo sentido, um representante daquele espírito que Mallarmé encarnou tão bem, que abre a clareira do humano enquanto Livro inacabado, a ser sempre (re)escrito, que reúne o mundo, e só o faz pela palavra criadora.
DIANTE DA FOLHA BRANCA
Há uma lâmpada acesa sobre a nudez do muro.
É uma página de liso abandono, de talvez voz,
pele na qual cada inscrição errante é uma carícia.
[…]
Eu sou uma lassidão, uma lucidez e o seu avesso.
Confesso-te um excesso e incontáveis faltas.
Quero ser, quero nascer na claridade dos começos.
(In: O espaço da claridade, p. 35)
Em A claridade da gente, do ativo e engajado Paulo Rodrigues – poeta promotor de projetos, ações e intermediações culturais nos lugares onde vive, e que já vem de livros, inclusive premiados, como Uma interpretação para São Gregório (Penalux, 2019) e Cinelândia (2021) –, a palavra adquire outra ambivalência, já que parte do coloquial sentido da ampla ação social: da gente, e das gentes, é a claridade e a abertura do mundo.
Em seu sujeito coletivo, a gente, nós, somos os agentes/os viventes sem os quais não pode haver claridade, e cujo espaço é o espaço aberto do mundo, do corpo a corpo da vida prosaica. É a vida do trabalhador, do periférico, do homem do campo (e suas memórias), daquele que sofre os revezes do latifúndio; é o menino que passa fome, os explorados pelos patrões cuspidores, as mulheres marias que enfrentam condições estertoras. Os poemas de Rodrigues são povoados por personagens que têm nome: Matilde, Maria da Graça, Dorothy Stang, Pedro, Dona Alzira, Joaquim, Zé da Nazira… Este é o nó do nós, a gente do espaço social da qual fazemos parte, com a qual nos identificamos, que ilumina por sua autenticidade e simplicidade, ao mesmo tempo em que precisa ser iluminada, sobretudo pela justiça, que é exatamente o que Rodrigues reivindica através da sua poesia humanitária, de linguagem corrente, fluida e justa:
REFORMA AGRÁRIA
Pedro e Luciana abraçam
a castanheira
como se fosse uma menina
recém-nascida
retiraram o feijão
da mochila com cuidado.
as formigas passeiam entre os seios,
ele pensa nos filhos
e nem percebe.
os tiros atravessaram
os dois, na mesma altura.
as mãos unidas
em comunhão com as folhas.
o assassino revirou o lixo
do lado de dentro;
colocou uma rosa
ao lado da marmita.
(In: A claridade das gentes, p. 89)
O que vemos aí, por outro lado, é também uma simulação de projeção cinematográfica, em que a vida pode parecer um filme, ou vice-versa. Significa dizer que o poeta está também operando sobre a linguagem para criar elos com as gentes com as quais pretende povoar sua obra, cenas que possam “projetar situações”. Sua poesia, sem reivindicar o papel das palavras, também as agencia para que possam lançar luzes, esclarecer, humanizar. Poesia que guarda também a utopia de eliminar a obscuridade, de tirar do escuro e do silêncio os humildes, os trabalhadores, os operários, os camponeses. Essa é a outra face ambivalente dessa “claridade da gente”, pois pretende que a poesia também seja esse clarão, constitua-se também um espaço crítico que provoque a centelha da consciência, seja veículo de desalienação.
Eis o que Paulo Rodrigues pretende, por seu turno, nos entregar com a claridade que emana da (sua) poesia.
São, portanto, duas obras, as desses autores, às quais não podemos ficar indiferentes no quadro da poesia contemporânea, ainda mais quando vindas de poetas tão significativos, conscientes do seu encargo e com tanto ainda a oferecer. Obras que, justamente, delineiam dois caminhos e duas poéticas importantes, a da perspectiva interna, intimista e metapoética, e a da perspectiva externa, construtivista-social e humanitária, ambos com o mesmo peso, e impulsionando os diferentes pêndulos da receptividade. Poetas que recorrem à mesma inspiração da claridade contra o escuro das nossas formas de ser ou das sombras que nos são lançadas.
Que se fortaleçam então, cada vez mais, sobre as trevas, o espaço da claridade e a claridade da gente.
Antonio Aílton é poeta, crítico literário, professor e pesquisador da literatura.
*Autor de Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2018), e de A Camiseta de Atlas (EDUFMA/FAPEMA, 2023)
Paulo Rodrigues e Sandro Fortes fazem uma poética concisa e consciente. Enquanto Paulo Rodrigues caminha pelo sociopoético, Sandro alimenta a sua poética pelo metapoema. Os dois têm compromisso de dar continuidade ao processo fértil da qualidade da poesia, cada vez mais aferida a questões ideológicas de gênero, étnico-raciais e nos fazendo reféns de um texto com desejo de se ler mais, como são os destes dois poetas.
Antonio Aílton é um crítico literário de excelência máxima. Nos ensina sempre a olhar com atenção a microestrutura textual. Um abraço.
Indiscutível a profundidade e a dimensão da poesia de vocês, Paulo e Sandro, parabéns!